quinta-feira, 11 de março de 2021

Cogito ergo sum


Quando ainda me perguntam o que eu venho achando do mundo e das pessoas que vivem nele eu quase sempre respondo: "é uma questão de sobrevivência e, enquanto eu estiver lendo e pensando por minha própria cabeça, é uma luta que ainda vale a pena". Ou seja, não consigo me imaginar distante do conhecimento nesse campo de batalha. Não é simplesmente uma escolha ou um hobby, mas uma necessidade biológica, como beber água ou almoçar. Não consigo me ver dentro de uma realidade diferente desta. 

Duas semanas atrás eu me deparei com uma matéria na Folha de São Paulo que falava sobre os 30 anos de publicação do romance O mundo de Sofia, do escritor Jostein Gaarder, e eu imediatamente me peguei relembrando de quando o li pela primeira vez e, principalmente, da série de lacunas impressionantes que ele deixou em minha cabeça. Provavelmente não estava, na época, habilitado para entender 10% do conteúdo daquelas páginas. Mais: não tinha ainda a formação desejada para captar sua essência, tendo em vista meus pouco mais de 15 anos. E ainda assim, saí da experiência transformado. 

Passadas três décadas tomo a decisão de relê-lo e com que alegria descubro o quanto Gaarder nos entregou uma obra brilhante, sedutora e que não perdeu um segundo sequer de sua relevância cultural. E tudo isso falando de filosofia! 

Acompanhamos a saga de Sofia Amundsen, uma garota de apenas 14 anos, que começa a receber em sua caixa de correio uma série de cartas um tanto quanto curiosas, trazendo perguntas sobre o sentido da vida e dela própria existir no mundo. Na primeira perguntam-lhe quem é tu, na segunda de onde vem o mundo e na terceira um convite para acompanhar um curso de filosofia. Detalhe: ela não faz a menor ideia de quem lhe mandou essas correspondências, mas mesmo assim embarca nessa viagem rumo ao conhecimento. E foi, sem sombra de dúvidas, a melhor decisão que ela poderia ter tomado.  

Feita e escolha, ela começa a enveredar pelo extraordinário mundo de pensadores que marcaram - e marcam até hoje! - a história da humanidade. Seu professor, Alberto Knox, se apresenta e vai dos mitos ao helenismo nos fazendo devorar cada minuto de Thor, Loki, Odin, Asgard, os vikings, Zeus, Apolo, Hércules, Hera, Homero, os filósofos da natureza, o oráculo de Delfos (com a eterna provocação "conhece-te a ti mesmo!"), Heródoto, Tucídides, Hipócrates e finalmente a trinca grega Sócrates, Platão e Aristóteles. Em suma: um aulão básico de sabedoria. 

Mas é claro que para Knox nos apresentar apenas os gregos é insuficiente em suas intenções e por isso ele segue em frente: esmiuça os indo-europeus e os semitas, dá voz à Jesus Cristo e seu apóstolo Paulo, apresenta a Idade Média, contrasta as visões religiosas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino e passeia pelo Renascimento e o Barroco. Mas isso é apenas preparar o território para a cereja do bolo.

Chega a filosofia moderna e com ela o seu fundador, René Descartes, e o "Discurso do método"; Espinosa correlaciona Deus e a natureza, fazendo uma leitura crítica da Bíblia; Locke funde pensamentos e ideias à sensações; Hume descarta totalmente tudo o que se une à ilusão; Berkeley chama a filosofia e a ciência de inimigas da concepção cristã do mundo; Kant defende sua "Crítica da razão pura"; Hegel chama de espírito do mundo a soma das manifestações humanas; Kierkegaard confronta o romantismo com o individualismo e o sistema com o indivíduo; Marx defende a luta de classes; Darwin chama o ser humano de resultado de uma evolução biológica intensa e Freud reflete sobre o mundo como uma tensão entre homem e o ambiente que o rodeia. 

E quando você, leitor, está prestes a dizer "ufa! quanta coisa!" o autor, ainda insistente, tem tempo para se debruçar sobre a contemporaneidade e, junto com ela, Nietzsche, Heidegger, Sartre e Simone de Beauvoir. Sim. Preparem-se, meus caros leitores, pois trata-se de uma leitura que exige fôlego e paciência, já que há muito sobre o que pensar e debater (algo que a nossa sociedade anda precisando - e muito!). 

Ao fim da leitura me pego pensando no quanto a obra tem o seu lado cogito ergo sum (ou em bom português: penso, logo existo). É um convite àqueles que desejam urgentemente fugir do mundo contemporâneo caótico e imerso no retrocesso. Há, é claro, um lado mais fofo e comercial da história, no qual Sofia encontra personagens históricos e literários de importância, como Noé, ursinho Pooh, Alice, Tom e Jerry, Uncle Scrooge e tantos outros, mas isso é apenas um mero detalhe best-seller. E me vi refletindo em alguns momentos sobre a possibilidade de estar diante de uma metaficção por ser a própria Sofia uma história dentro de outra história ainda mais complexa. Mas deixo essa discussão para os catedráticos e acadêmicos de plantão.          

O que importa mesmo aqui é: fiquei feliz de ler O mundo de Sofia, não somente por estarmos vivendo um tempo de pandemia, mas também porque o mundo anda um tanto habitado por ignorantes contumazes e fabricantes de falsas verdades e ideologias, e é preciso combater essa gente com conhecimento, pois somente ele - a meu ver, pelo menos - é capaz de enfrentar a alienação de frente e com unhas e dentes.  

Se você, como eu, também quer enfrentar esse desafio, procure pelo romance de Jostein Gaarder. Não, acreditem! É de fato um romance e não um livro acadêmico. Porém, é também um pouco mais do que isso. E é desse um pouco mais que estamos precisando. O quanto antes. 


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