quinta-feira, 18 de março de 2021

A nova cara da arte


Quando comecei a me interessar pelo mundo das artes plásticas (eu tinha, acho, por volta de uns 18 ou 19 anos) a primeira coisa que eu entendi logo de cara é que era preciso entender a vida que aquelas pessoas levavam e, principalmente, qual era base da formação cultural delas. Qualquer fragmento mínimo ou necessário, qualquer vício de comportamento, tique, deslize, referência, plágio, como quiser chamar, era de fundamental importância para nós, amantes da arte, entendermos o porquê de suas obras serem daquele jeito. 

E isso serve para qualquer artista do meio que se preze: Gauguin, Van Gogh, Picasso, Pollock, Basquiat, Monet, Gaudí, Goya, Velázquez, Da Vinci, Dalí, até mesmo o recente fenômeno Bansky e suas "provocações urbanas". Todos, sem exceção, já me deixaram encucados, tentando entender onde eles buscaram matéria-prima para seus trabalhos que entraram para a história. E quem já possuiu uma tela deles na parede de sua casa ou em alguma galeria provavelmente, em algum momento, já se pegou pensando nisso também. 

Mas isso, meus caros leitores, é coisa do passado. Sim, pois o lugar da arte daqui para frente, a depender dos novos especuladores, marchands e galeristas, não será na parede da casa de alguém ou mesmo num museu ou centro cultural. Não, senhor! A partir de agora vocês verão suas telas no computador. E não adianta reclamar. 

Encontrei na última semana uma série de matérias, tanto no jornal El País como na Folha de São Paulo, a respeito de Mike Winkelmann (mais conhecido por seu nome artístico Beeple) e a sua tela Everydays: the first 5000 days, produto de um trabalho realizado ao longo de 13 anos fazendo um desenho por dia no seu computador. Para tal façanha ele se utilizou do programa Cinema 4D. 

Na verdade, uma correção: eu me referi à Everydays como sendo uma tela. Nada disso. A obra foi arrematada por 69,3 milhões de dólares numa leilão da Christie's (um recorde que fez com que Beeple entrasse para a lista dos três artistas vivos mais valorizados da história da arte, atrás apenas da dupla Jeff Koons e David Hockney) no formato NFT. E desde já, para quem nunca ouviu falar da expressão, explico resumidamente: tratam-se de certificados digitais colecionáveis. Importante detalhe: também foi a primeira vez que uma peça foi vendida na casa de leilões usando uma criptomoeda (no caso, a Ether). 

A princípio pensei comigo: "esse cara, que se diz artista, deve ser uma modinha efêmera, sem graça, ou alguma bomba da vez". Logo, é preciso localizar o seu trabalho e tirar minhas próprias conclusões. E o encontro facilmente. Afinal de contas, trata-se de uma figura, que embora não entenda absolutamente nada do mercado tradicional de arte (informação essa que ele próprio já confirmou numa entrevista), se tornou um nome promissor nas redes sociais, tanto que já possui mais de 2 milhões de seguidores no Instagram. 

Vou até seu site oficial e fico deslumbrado. É preciso dizer isso em favor do trabalho de Beeple: o cara sabe desenhar. E muito. Contudo, para os mais conservadores, que amam as pinturas clássicas e sabem por a mais b o mal que a fotografia produziu como legado às artes, fazendo com que o rigor estético e o detalhismo dessem lugar ao abstracionismo e um sentimento de vazio, é preciso alertar: é tudo digital. Logo, é preciso um outro olhar diferenciado para essa "nova arte". 

A matéria da Folha diz que o trabalho de Beeple tem "uma estética distorcida e apocalíptica'. E eles estão cobertos de razão. Lembrei-me, imagem a imagem, de todas as grandes obras de ficção científica com que eu me deparei em toda a minha vida (1984, Fahrenheit 451, Neuromancer, Akira, Blade Runner, etc). E é como se tudo tivesse sido reinventando à luz da contemporaneidade e da globalização. São mais de cinco mil desenhos sobre as temáticas mais diversas, viajando de Mickey Mouse à Donald Trump nu, com direito à Buzz Lightyear, Pikachu, Ursinho pooh e até mesmo o ditador da Coréia do Norte, Kim Joon-un.  

Winkelmann trabalha em sua casa diante de dois aparelhos de tv ligados e sem som, normalmente em canais de notícia como CNN e Fox News. E muito por conta disso analistas de arte deste século  veem seu trabalho artístico como um comentário visual abalizado pela cultura da internet (algo, às vezes, meio relacionado aos fabricantes de memes, outro fenômeno forte desta era em que vivemos). Só que, por outro lado, seu trabalho também tem uma apelo bruto e ostensivo, quase como uma mistura de cartum político com a estética videogame. Parece confuso para muitos, eu sei, mas... Mais atual e século XXI do que isso, impossível! É praticamente um mashup cultural.

E não me parece que a moda é passageira, não! Muitos expoentes do mundo da arte contemporânea já falam em mudança de paradigma para o mercado. Parece que finalmente os artistas digitais estão começando a ser reconhecidos pelo seu trabalho. Sim, tem quem queira comprar esta nova forma de arte e mais: pagar uma fortuna por ela. Até a marca Louis Vuitton já se utilizou das estampas de Beeple em sua linha de bolsas. Pois é... O rapaz com cara de nerd e formado em ciência da computação que eu vi na foto está podendo. Mesmo. 

Entretanto, é preciso dar tempo ao tempo e ver onde Beeple e seus seguidores (acreditem: eles aparecerão, pois o assunto agora está na crista da onda) irão parar. Trata-se ainda, a meu ver, da ponta do iceberg. E lógico que os tradicionalistas terão muito do que reclamar ou desqualificar desse novo formato. De certo mesmo? Que a arte continua se transformando o tempo todo. E que o mundo produzido por ela nunca mais será o mesmo. 

Para quem quiser saber mais sobre Beeple, fuçem aqui: https://www.beeple-crap.com/


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