quinta-feira, 25 de março de 2021

Causa mortis


Tom Jobim, mestre da Bossa Nova, dizia que o "Brasil não é para principiantes". Eu, que sempre o achei generoso, digo mais: o mundo não é para principiantes. E muito por nossa própria culpa. Fazemos o que queremos para destruí-lo dia a dia e, no final das contas, dizemos para os demais que tudo não passa de uma reles teoria da conspiração ou fake news ou, quem sabe, intriga da oposição. Pobres coitados! Não sabem o mal que estão fazendo às suas próprias sobrevivências. 

Em Galáxias, peça de Luiz Felipe Reis (que trabalhou em cima de textos do autor argentino J. P. Zooey, autor de Sol artificial) e que tive o privilégio de assistir online na programação do Festival de Teatro Midrash Cultural, é exposta de forma inteligente e complexa aspectos sobre nossa eterna mania de esfacelarmos o mundo de tempos em tempos. E o principal: em nenhum momento eu senti que o tom do espetáculo tinha como intenção fazer eu encarar a realidade como um elo perdido. Pelo contrário. Os criadores da montagem me ofereceram, isso sim, um sopro de esperança. 

A peça começa com uma dupla de irmãos, Juan (Ciro Sales) e Zoe (Julia Lund), que falam a respeito do suicídio de um cientista um tanto excêntrico (interpretado pelo excelente Leo Wainer), cujo estudo visava desvendar o enigma da existência da vida na terra. Ele se matou enquanto assistia pela tv o lançamento do ônibus especial Columbia. E durante a leitura de seu testamento ele pede que seus vizinhos tentem descobrir a causa de sua morte. 

A partir daí o que se vê é uma série de reflexões interessantíssimas sobre nosso papel nisso que chamamos corriqueiramente de mundo. Vida, morte, prazer, trabalho, ética, fé, religião, ontem, hoje, amanhã (caso ele exista), tudo se mescla num espetáculo que, em alguns momentos, lembra um grande congresso acadêmico. 

O cenário é composto de um grande cubo, que aberto dá lugar à residência de Juan e Zoe. Ao lado, uma banda toca ao vivo. Mais do que isso: interfere diretamente no andamento dos diálogos, às vezes fazendo com que nós, espectadores, precisemos ficar bastante atentos para não perdermos uma vírgula sequer do texto proferido pelos atores. E eu, confesso, vi nessa escolha um certo tom de esquizofrenia por parte da montagem. Aliás, esquizofrenia e claustrofobia são duas instâncias que acompanham o ritmo de toda a peça. 

Adorei as escolhas musicais que embalam os monólogos de cada personagem (mérito de Pedro Sodré), a fotografia luxuosa de Leo Aversa e as projeções em vídeo de inúmeras catástrofes contemporâneas (de responsabilidade de Barbara Werneck) para compor essa alegoria sombria, mas extremamente necessária para encararmos esse mundo que não cansamos de maltratar. 

O conjunto geral mistura ficção científica, realismo mágico, as famosas palestras do TED talks, bem como citações à filmes hollywoodianos recentes que abordaram o tema do derrotismo contemporâneo. 

Em outras palavras: nos vemos diante do retrato vivo do niilismo mundial. Um lugar onde fascistas e ignorantes posam de reserva moral da sociedade, enquanto cidadãos de bem parecem acuados e a vida como nós a conhecemos virou uma versão grotesca de uma balada inútil e artificial, uma "festa que nunca termina" (para citar o título de um longa-metragem do cineasta Michael Winterbottom que, para mim, é a epítome do que virou a sociedade contemporânea). 

Viramos reféns de testes, ordens, subempregos e uma total falta de perspectiva para o dia seguinte. E ainda assim nos orgulhamos de nossa própria rotina e mediocridade interior. Ou seja, "a ignorância é uma benção" virou o mantra do século XXI. E embora, ao final do espetáculo, o cientista morra sem descobrir a resposta para sua pesquisa, me fica a sensação de que na verdade quem realmente morreu foi a sociedade. E por pura ignorância. 

Achou pouco? Então, quando puderem, e a pandemia acabar, procurem Galáxias no teatro mais perto. Porque eu sequer arranhei a superfície do problema. 

P.S longo: duas coisas que eu não posso deixar de falar: a peça termina ao som de "walk on the wild side", do cantor Lou Reed, um artista que devotou a sua obra à esmiuçar o submundo da sociedade (e não consigo imaginar outra canção que exemplifique melhor o declínio e o tédio da atual geração). E, em muitos momentos, enquanto degustava o texto apresentado, fiquei pensando em Fausto Fawcett e suas músicas loucas, mas não menos ácidas e relevantes para entendermos no que o atual século se transformou. Entenderam o tom do que os espera? Pois é. Soturno, mas sem perder a ternura. 


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