sábado, 16 de novembro de 2019

Na prática não é bem assim...


Está difícil conversar (que dirá debater!) sobre praticamente tudo no país, mas quando o assunto em questão é a fé as pessoas normalmente descambam para a religião, pois a grande maioria da sociedade só consegue entender a conotação de fé pelo viés de pessoas frequentando igrejas, templos, mesquitas, etc. Ou seja: para muitos você só tem fé quando pertence a um grupo que pensa exatamente como você e frequenta um determinado lugar. 

E quando essa realidade - que já é incômoda por si só - ganha ares de fanatismo e cegueira ideológica proposital, aí então meus caros leitores, é um Deus nos acuda. 

Quando assisti o primeiro trailer de Divino amor, do diretor Gabriel Mascaro (do excelente Boi neón) pensei comigo logo de cara: "vem problema por aí". E disse isso muito pelo fato de estarmos vivendo um momento de muita polarização no Brasil. Pois bem: o filme estreou, a crítica em grande parte elogiou e eu fui correndo aos cinemas para conferir. No entanto, quis dar um tempo para emitir a minha opinião sobre o longa, pois minha relação com dogmas e discursos religiosos é sempre tensa e fadada a discussões (muitas delas desnecessárias). E eis que, após muita autoreflexão, chega o momento de manifestar meu pensamento sobre o que vi. 

Divino amor é crítico, sem no entanto ser desrespeitoso (e vi algumas pessoas escrevendo na internet sobre o filme que ele até poderia, se quisesse). Traz na figura de Joana (Dira Paes, ótima) o fio condutor de uma história que dialoga muito com o país no qual estamos vivendo depois das últimas eleições. 

No longa de Mascaro o Brasil deixou de ser o país do carnaval, da folia, do maracanã lotado, dos feriados prolongados, para se tornar um grande ritual gospel. A festa que agita os "cidadãos de bem" brasileiros não envolve batucadas e samba e sim um ritmo, digamos, mais leve, clean, politicamente correto. Mais do que apenas isso: tudo, absolutamente tudo, é visto sob a ótica da religião. Desde a forma como os filhos serão educados até a disputa por uma vaga de emprego. 

Pior: todo aquele que não segue as premissas religiosas vigentes é visto como um desgarrado, uma espécie de pária dentro da própria sociedade. Bom mesmo é aquele que segue (cegamente, em muitos casos) os preceitos de Deus. 

Contudo, isso na verdade não passa de uma grande teoria sobre o viver em sociedade. Na prática, no chamado mundo real - conceito que vem perdendo fôlego por aqui nos últimos anos - a história não é bem assim. A parábola de que esses homens e mulheres idôneos seguidores do discurso bíblico não traem, não cometem erros, não produzem falhas e distorções de caráter, é de uma ingenuidade contumaz e típica daqueles cujo único mérito em vida é o de cercear a liberdade e a opinião alheia. Ou para resumir de forma direta: não se sustenta. 

Por isso, quando Joana percebe que seu casamento está ruindo e não consegue obter as respostas que almeja de seu líder religioso (ou guru, expressão mais afeita aos dias de hoje) ela sucumbe de forma tão desastrosa, que chega ao ponto de realmente se acreditar uma inútil para a sociedade como um todo. E é nesse exato momento que o filme se torna mais interessante e poderoso. 

Gabriel Mascaro mostra, de forma lúcida, sem se apegar a esterótipos e modismos, a grande hipocrisia - ou lobotomia, como preferir chamar - que rege a existência de pessoas confusas, que não conseguem realizar a própria jornada com seus próprios passos, sem recorrer a "instruções" ou "versículos" como se fossem reles manuais de regras. 

Ao final, mesmo com a ironia proposta pelo diretor envolvendo o nascimento de um novo messias, o que fica claro mesmo (pelo menos, ficou para mim) é que estamos vivendo num país que se transformou num delicado projeto de poder ilógico e sórdido, na medida que não permite a outras pessoas o mesmo direito de se posicionar. Viramos uma hierarquia da fé, mas uma fé tendenciosa e calcada num verborragia falha e sem sentido, usada para castrar ou silenciar todo aquele que se manifeste contra ela. 

Fiquei semanas após ver o longa ruminando suas ideias, a maneira elegante com que foram defendidas, e pensando no que esperar do futuro. Colegas meus, mais derrotistas, diriam: "se ainda houver futuro depois do surgimento dessa gente". E a conclusão a que chego é: não podemos ficar calados, aguardando. Pois tenho receio do que pode vir a seguir. 

Moral da história: é um filme que realça medos e censuras, que como todos os medos e censuras na história desse país, precisam ser combatidos. De frente. Agora mais do que nunca. 

E pensar que, em tese, trata-se apenas de um filme de cinema. E que arte genial - e por isso tão perseguida atualmente pelo governo federal - é o cinema!

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