quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A enciclopédia das taras norte-americanas


Novembro chegou, as pessoas começam a planejar o seu final de ano e a rede de cinemas UCI prepara as comemorações de seu aniversário exibindo, dentre outros filmes, o visionário Pulp Fiction: tempo de violência, de Quentin Tarantino. E só então me dou conta de que sua maior obra-prima completa neste ano 25 anos de existência. E pensar que eu quase deixei a data passar em branco por aqui!

Tarantino, outrora funcionário de uma videolocadora em Manhattan, decidiu passar de cinéfilo à cineasta e narrar histórias que fujam do convencional, daquilo que a priori consagrou hollywood. E certamente o melhor exemplo desse feito dentro de sua gloriosa carreira foi Pulp Fiction. 

O projeto, que foi vencedor da Palma de Ouro em Cannes, recorre ao conceito de pulp (no caso, revistas ou livros sensacionalistas, geralmente publicados em material de segunda classe, e sempre repleto de histórias violentas e com uma forte carga sexual) para construir uma narrativa mista de episódios que flertam diretamente com a tara por violência. 

Aliás, Pulp Fiction é, por si só, uma grande enciclopédia das taras norte-americanas que acompanham a vida daquele povo contraditório e controverso que adora se vender como "a maior nação de todos os tempos". E o roteiro de Tarantino e Roger Avary (ambos vencedores do Oscar de melhor roteiro original) deixa isso claro logo no diálogo de abertura e mantém a franqueza até o último frame. Logo, nunca espere por finais felizes, que dirá uma estrutura convencional, na linha início, meio e fim. A história aqui em questão quer incomodar muito mais do que simplesmente ganhar aplausos dos espectadores.

Repleto de personagens marcantes, como os "cobradores" Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) e Vincent Vega (John Travolta, num papel que o trouxe de volta à grande cena do cinema americano), a rebelde Mia Wallace (Uma Thurman), esposa do chefão, o pugilista fracassado Butch Coolidge (Bruce Willis) e o especialista em limpar cenas de crime Winston Lobo (Harvey Keitel), a trama constrói um universo subversivo, cheio de amoralidade e com críticas as mais diversas a temas como o multiculturalismo, diferenças étnicas, a cultura do estupro - tema que sempre rendeu polêmicas na América, principalmente nas universidades - e até mesmo ao discurso religioso. 

E tudo isso esplendidamente bem acompanhado por uma trilha sonora magnífica (e foi aqui que começou a paixão do diretor pelas playlists, que se tornaram tão famosas quanto seus longas) que inclui Dick Dale and his Del-tones, Kool and the Gang, Al Green, Chuck Berry, Jefferson Airplane, Creedence Clearwater Revival e muito mais. 

Hoje, passadas duas décadas e meia, o filme tornou-se cult e referência de qualidade cinematográfica dos anos 90 por conta de suas inúmeras sequências icônicas, como por exemplo a do concurso de dança, a overdose de Mia e a seringa enfiada em seu coração, Jules lendo Ezequiel 25: 17 antes de eliminar seus adversários, etc etc etc. 

Muitos críticos costumam dizer que Tarantino nunca mais atingiu o mesmo patamar ao longo de toda a sua carreira. Prefiro acreditar que ele era apenas mais novo e tinha mais tempo para ousar (diferentemente do artista já consagrado que é hoje e que precisa negociar com produtoras e patrocinadores para continuar perpetuando suas ideias). Embora, em se tratando de Tarantino, isso seja meio vago, pois ele sempre lutou por sua liberdade criativa e nunca me pareceu que ele tenha seguido rótulos impostos por um determinado mercado exibidor. Enfim... Estou aqui apenas devaneando, pagando de advogado do diabo. 

Ao fim das mais de duas horas e meia de projeção que passaram numa velocidade espantosa, não me deixando cansado em momento algum, uma única certeza: Tarantino é hoje, sem dúvida, um dos maiores - senão o maior - reinventor da sétima arte. Desconstrói estereótipos, reapresenta clássicos num novo formato para as novas gerações, propõe misturas (ou mashups) culturais os mais diversos e prova por a + b que é possível permanecer lúcido sem recorrer à exageros (como tenho visto em grande parte dos chamados blockbusters de hoje em dia). 

E mais: consigo imaginar uma próxima geração falando de seu filme mais famoso quando completar 50, 75, 100 anos. É um filme atemporal em todos os sentidos, principalmente na sua proposta estética. 

Ah! faltou dizer uma coisa: como foi bom poder reassistir isto tantos anos depois... A minha adolescência valeu mesmo a pena!

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