quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O nome dela? Brasil


Vivemos num país repleto de seres invisíveis, por conta de uma burguesia e uma falsa classe média afundada até o pescoço em suas convicções medíocres e na sua eterna mania de posar de grandiosos para o resto da sociedade. Bastou que a pessoa em questão a ser debatida seja um pobre, uma favelada, um assalariado menor, e pronto: está criado o motivo para o eterno discurso de ódio que paira nesse país (e não me refiro exclusivamente aos últimos cinco anos e sim desde que esse país existe). 

Esta semana fui surpreendido por uma peça de teatro que trata desse tema com uma elegância de cair o queixo de qualquer pessoa realmente preocupada com os rumos desse país. Falo de Benedita, monólogo inebriante criado pelo ator e escritor Bruno de Sousa (que, por sinal, merece meus mais sinceros elogios, pois destrói numa interpretação extremamente metonímica e cheia de arquétipos os mais variados). 

Benedita não é só mulher brasileira. É guerreira, sobrevivente de um país que não olha para os seus, principalmente quando eles não pertencem às camadas mais altas da sociedade. E não somente isso: é também lavadeira, benzedeira, curandeira, bruxa, feiticeira e o que mais você puder imaginar. E por conta de sua múltipla personalidade é vista por muitos - ainda mais em tempos onde o evangelismo rompe a barreira da decência e do respeito - como louca, demoníaca, criadora de casos, promovedora de magia negra. 

A partir das roupas que lava para fora conhecemos a história de seus clientes (quer dizer: do povo brasileiro) e vemos um rol infindável de vidas inventadas, contadas pela metade para impressionar amigos e vizinhos. Não existe característica melhor para explicar o cidadão nacional do que o ostentacionismo e Benedita enfia o pé na jaca, chuta o balde mesmo, e expõe as mazelas e intrigas humanas como ninguém. 

Quando entrei na sala de exibição o ator já se encontrava em cena e parecia usar um vestidão largo, carregando no ombro direito um balde. Ledo engano! A parte de baixo do vestido era "sua casa", seus pertences amarfanhados, sua realidade fragmentada. A luz se acende aos poucos e o tema musical de abertura lembra um acalanto (para os leigos: uma canção de ninar). Uma referência à sua infância perdida? Talvez. Prefiro enxergar além: uma vida perdida pela roleta russa do tempo, sempre apertando seu gatilho contra os mais necessitados. 

Benedita "contracena" com seus delírios, suas crises, confessa seus pecados à imagem sacra que a acompanha (aliás, a presença da imagem no palco foi suficiente para que um grupo de evangélicos extremistas se revoltasse e fosse embora do teatro), relembra a vida com o ex-marido mulherengo, que a abandonou na rua da amargura, destila remorso, pragueja, faz feitiço para as pessoas que a sacanearam, etc etc etc. 

Em suma: Benedita é o Brasil nu e cru, um país que adora se lamentar, se fazer de vítima, mas não está nem aí para o seu semelhante (leiam-se: os moradores de rua e desempregados). Que prefere fingir uma vida plena e luxuosa nas redes sociais do que se mostrar como verdadeiramente é. Pois a verdade, como eu já disse em outros artigos, não passa de um ponto de vista e ele pode ser alterado ao bel prazer do ser humano. 

O espetáculo termina e a sala encontra-se esvaziada (acho que foi a menor plateia de um espetáculo a que assisti até hoje). Fico triste por perceber que setores de nossa população se renderam às falácias do discurso religioso opressivo e não conseguem enxergar a arte além de sua própria fé, sua própria crença. Por outro lado, saio realizado pela coragem do artista. É tão raro hoje em dia encontrarmos ousadia, mesmo que a maioria pareça estar do lado equivocado da história, que levanto-me orgulhoso e aplaudo o ator com entusiasmo. 

O Brasil merece mais mulheres como Benedita e menos gente querendo transformar o país numa guerra santa. E a mensagem que me fica é: precisamos rever valores urgentemente, sob pena de nos transformarmos em meras estatísticas vazias da vontade alheia. Não sei onde iremos parar, mas é bom saber que (ainda) há gente corajosa disposta a enfrentar o furacão da intolerância. 

E que essa pátria tome vergonha na cara (antes que seja tarde demais)...

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