De tempos em tempos a sétima arte mundial nos apresenta projetos que são um tour de force na vida de seus realizadores. Histórias que parecem simples em sua execução na teoria, mas na prática são capazes de levar seus diretores ao pronto-socorro ou à falência. Martin Scorsese que o diga! levou quase três décadas para realizar seu megaprojeto Gangues de Nova York, produzido pelo hoje execrado pela indústria, Harvey Weinstein, e já contou em entrevistas o sufoco que passou para tirar a ideia do papel. Há casos mais extremos como, por exemplo, a tentativa do cineasta chileno Alejandro Jodorowsky de realizar o remake de Duna (que havia sido realizado nos EUA pelo diretor David Lynch, sem atrair grande bilheteria). Resultado: o longa nunca saiu do papel e ainda rendeu um documentário sobre a saga ocorrida. E como esquecer do hoje cult O portal do paraíso, de Michael Cimino, que quase levou a Paramount Pictures à ruína?
Nas últimas décadas o melhor exemplo de revés nesse sentido foi o do diretor Terry Gilliam. Há 25 anos ele almeja tirar do papel o projeto de O homem que matou Dom Quixote e, entre tentativas e frustrações sucessivas, de lá para cá já realizou outros seis longas (entre eles, pequenas jóias como 12 macacos, Medo e delírio em Las Vegas - baseado em livro homônimo do escritor Hunther Thompson - e o inusitado O circo imaginário do Doutor Parnassus) até que finalmente conseguisse colocar um ponto final na sua versão da saga de Miguel de Cervantes.
Contudo, o problema não foi totalmente extinguido com o final das filmagens. Houve problemas com a pós-produção, discussões com produtores (chegaram a quase tomar o filme das mãos dele!) e Gilliam chegou a enfartar durante o período. Isso mesmo! Um processo hercúleo comparável à Paradise Now, de Francis Ford Coppola, que também teve um processo de criação conturbado.
E eis que o sufoco finalmente chega ao seu momento de graça com o lançamento de O homem que matou Dom Quixote nos cinemas (cá entre nós: merecia uma distribuição bem melhor por parte dos cinemas, que antigamente aguardavam projetos como esse com êxtase).
E não é que o diretor Terry Gilliam revisita o clássico de Cervantes de forma curiosa e inventiva?
A história se passa na Espanha durante as filmagens de uma adaptação de Dom Quixote realizada pelo jovem cineasta Toby (Adam Driver, que interpreta na verdade um alter-ego do próprio Gilliam). Em meio à decepções com o rumo do projeto, o diretor realiza uma pausa à procura de novas ideias que incrementem a narrativa do filme e se depara, durante um almoço, com uma cópia em dvd de uma versão da mesma história que realizou ainda nos tempos de faculdade. E redescobre o ator Javier (Jonathan Pryce, ótimo!) que havia feito Dom Quixote na ocasião. O problema é que Javier acredita ser de fato o verdadeiro Dom Quixote de la mancha e arrasta o diretor para uma jornada repleta de missões impossíveis.
Porém, a grande sacada proposta por Gilliam aqui é a maneira como ele insere questões que vêm atormentando a geopolítica do mundo nos últimos anos e a maneira como transforma o fiel escudeiro de Dom Quixote, o bonachão Sancho Panza, de mero coadjuvante à figura central da trama. É possível perceber as alfinetadas de Gilliam no roteiro (escrito a quatro mãos com Tony Grisoni) quando menciona a questão dos imigrantes ilegais e dos terroristas, além da forma debochada como lembra do atual presidente dos EUA dentro da trama. Sátira maior do que essa, impossível!
O homem que matou Dom Quixote fala dos fantasmas que assombram artistas de todo o mundo de tempos em tempos. E no caso de Terry Gilliam percebe-se que esse "projeto de uma vida" o perturbou muito mais do que ele próprio deixou transparecer ao longo dos anos. Ele pode até debochar, ironizar, desconversar, mas no fundo, no fundo, é perceptível o quanto que as idas e vindas envolvendo este longametragem mexeram com o seu racional e, também, com a paixão que ele nutre pela história. E nesse sentido a loucura de Dom Quixote cai como uma luva para suas pretensões criativas (embora ele se enxergue mais como um Sancho Panza dentro desta realidade).
Em outras palavras: o filme é uma belíssima catarse literária, narrada com todas as maquinações sórdidas que tornaram o diretor tão famoso e respeitado mundo afora. Convivendo entre artistas megalomaníacos, musas ninfomaníacas e patrocinadores excêntricos, seu Toby se autodesconstrói frame e frame buscando uma verdade que, no final das contas, nunca conseguirá ser mais do que aquilo que sua obra já mostra: um ponto de vista. Se ele deseja fazer do filme sua identidade ou DNA está comungando na fé errada, pois a arte é múltipla e, por vezes, traiçoeira ao nos apontar caminhos. E esse é o melhor legado que Gilliam poderia nos proporcionar a esta altura da vida e da carreira.
Não sei se este será o último longa de Terry Gilliam (espero que não, embora seu recente problema de saúde e a rotina de um cineasta que costuma produzir filmes grandiosos não costumem combinar), mas caso seja fica aqui meu respeito e gratidão por um artista que a meu ver nunca vacilou ou decepcionou em suas intenções. Podem me chamar de bajulador, mas é por causa de pessoas como Gilliam que me tornei cinéfilo, por conta de sua coragem, sua ousadia artística, e por nunca tratar seu público como idiota. Seus filmes são magníficos tanto do ponto de vista estético, como também pela forma como defende suas concepções narrativas. Já trouxe à tela o grupo Monty Python, os contos de fadas dos irmãos Grimm e até mesmo o Barão de Munchausen, sempre de maneira singular, sem rodeios ou invencionices. E com O homem que matou Dom Quixote nos entrega seu delírio mais pessoal, para deleite dos fãs mais apaixonados por sua filmografia.
E como eu poderia terminar esta humilde crítica sem manifestar o meu "longa vida ao mestre"? Desse jeito.
Meu muito obrigado, hoje e sempre.
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