De meus 30 anos para cá todo dia me pergunto qual o papel da humanidade no mundo e, na maioria das vezes, não chego a uma resposta satisfatória, sequer elucidativa. Eu sei o que você, leitor, vai dizer: que este texto promete ser profundamente negativo. E nisto você está certo. A questão é que não há como ser diferente, vide o tema proposto. E pior: saber que esta não foi a primeira, muito menos será a última vez em que a humanidade pisará feio na bola. E pior ainda: O sistema quer que nos acostumemos com a ideia.
Eu não tinha sequer 10 anos de idade quando a tragédia na usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, aconteceu. Na verdade, fiquei sabendo da história da tragédia por conta de um filme que era bastante exibido na extinta Rede Manchete na década de 90 de nome Césio 137 - o pesadelo de Goiânia, do diretor Roberto Pires e de meu pai chegando na sala e dizendo: "essa tragédia aí foi o Chernobyl brasileiro". Pronto. Estava aguçada a minha curiosidade. O que era Chernobyl, afinal de contas? Como não havia o mundo mágico oferecido pelo Google naqueles tempos, fui às bibliotecas de bairro em busca de informações e me lembro da cara de uma das bibliotecárias, perplexa, perguntando quanto anos eu tinha e porque queria saber a respeito daquela história.
Começava ali o meu fascínio por histórias mórbidas e por tudo o que tivesse a ver com jornalismo investigativo. Detalhe: já naquela época me perguntava se um dia a sétima arte ou a televisão iriam ser capazes de reproduzir com minúcias e apuro o caos ocorrido naquele tempo. Pois bem: a HBO conseguiu e prova porque é uma das melhores produtoras de conteúdo audiovisual dos últimos anos. E tudo graças a genialidade e ao trabalho de pesquisa do escritor e produtor Craig Mazin (curiosamente mais associado, ao longo da carreira, à produções cômicas. Vejam só como o meio artístico pode ser surpreendente!).
Quando nos deparamos com a explosão da usina e a reação de apavoramento daqueles que testemunharam o ocorrido de suas janelas, a primeira impressão que fica é: isso aqui, por mais que tentem, vai ser difícil (muito difícil) de explicar. E essa é exatamente a questão que norteia toda a série. A palavra convencimento é distorcida de tantas e tais maneiras que fiquei com a sensação nítida de que a verdade hoje em dia não passa de uma grande manipulação dos fatos.
Há um trio, entretanto, que luta obsessivamente para que os fatos sejam enfim esclarecidos: Valery Legasov (Jared Harris), o especialista em reatores; Ulana Khomyuk (Emily Watson), funcionária do instituto de energia; e Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), uma mistura de relações públicas, gerente de crise e também, a princípio, voz do partido na questão (trata-se, afinal de contas, da URSS de Gorbatchev e da KGB na nuca dos cidadãos). Contudo, eles precisam duelar de foice com uma nação historicamente famosa por ocultar dados e transformar esperanças em aceitações. E o que sobra então para se comemorar? Boa pergunta.
Do ponto de vista técnico a minissérie é um espetáculo à parte. Que o digam as cenas de explosões e as maquiagens dos afetados pela radiação! Há cenas apavorantes de tão realistas. E, ao final dos cinco episódios, só as informações fornecidas sobre o rumo que as investigações tomaram e o desfecho macabro dos protagonistas já vale pela produção televisiva toda.
Outro ponto acertado da produção foi deixar para o último episódio o julgamento dos responsáveis pela tragédia e o festival de distorções que aquilo gerou junto à mídia. Usar a palavra arquivamento soa até poético perto do que eles fizeram com a vida daquelas pessoas e com a sociedade ucraniana como um todo. De real mesmo somente o fato de que a região continua inabitável até hoje e os índices de radiação no lugar continuam altíssimos. Mais trágico que isso, que me venha à memória neste exato momento, só mesmo o horror perpetrado pela nazismo durante a segunda guerra mundial.
Para aqueles que têm mania de rotular tragédias como essa acerca de regimes políticos (numa clara tentativa de acusar o socialismo e suas práticas nefandas) ficou claro aqui, pelo menos para mim, de que atrocidades mundiais como essa não são de uso exclusivo do socialismo ou do capitalismo. Na verdade, sempre acreditei que onde existem políticos existem problemas que poderiam ser evitados, mas nunca são por conta de interesses financeiros. E me parece também ter sido o caso aqui. Sabe aquela história do indivíduo que compra o melhor aparelho de som da loja e compra a extensão e a tomada para ligá-lo no lugar mais chinfrim e depois reclama que o aparelho entrou em curto-circuito? Guardadas as devidas proporções, foi o caso aqui.
O tempo passa e o mundo se recusa a mudar nesse sentido. Continuamos reféns da mesma mentalidade chamada "vamos reduzir custos!", imposta por políticos e estadistas gananciosos. O dinheiro antes do indivíduo. O problema é que aqui tratava-se de uma usina nuclear. Deu no que deu. Hoje, após ter lido tantos artigos e matérias sobre o assunto, vejo o caso com a mesma proporção da bomba lançada pelo Enola Gay em Hiroshima e Nagasaki.
Em linhas gerais, Chernobyl é não somente uma prestação de contas a todos aqueles curiosos (como eu) que sempre quiseram entender minimamente o ocorrido naquele fatídico 26 de abril de 1986, como também a certeza macabra de que a mentira triunfou e continua triunfando ao redor do mundo de tempos em tempos, sempre avalizada pelas atitudes nocivas e prepotentes do Estado. E o mais triste é que a maior parte da população mundial não está nem um pouco interessada nessas questões, pois elas parecem impertinentes diante de assuntos tão vazios quanto fama, status e beleza, dentre outros.
Assista e se assombre. De vez em quando precisamos de um choque de realidade como esse.
P.S: para os interessados no tema (como eu) recomendo também, após assistir a minissérie, a leitura do livro Vozes de Tchernóbil - a história oral do desastre nuclear, da escritora bielorussa Svetlana Alexijevich (vencedora do prêmio Nobel de literatura em 2015), que reúne relatos de sobreviventes da tragédia. E desafio-os a não ficarem com os olhos marejados de lágrimas!
Sem comentários:
Enviar um comentário