quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Se eu quiser falar com Deus


Não é de hoje que eu venho tomando coragem para falar sobre religião ou temas correlatos a ela em um de meus artigos. Digo isso porque o tema em si me incomoda, Muito. E principalmente pela dimensão (ou seria melhor chamar de distorção?) que o discurso religioso vem ganhando no país nos últimos anos. Religião virou motivo de guerra, de dissensões familiares, de brigas (em alguns casos, levando até a morte!) e eu não faço a menor questão de fazer parte do debate. Tanto que não sigo dogmas, pois não acredito que precise pertencer a um grupo ou instituição para ter fé. 

Paralelamente a isso, é visível o crescimento (e posterior sucesso) do gênero gospel nos cinemas. Que o diga a repercussão na internet dos longas A cabana, de Stuart Hazeldine e Em defesa de Cristo, de Jon Gunn. Contudo, como minhas predileções na sétima arte versam sobre outros gêneros, sempre releguei o formato à segundo plano (até que, pelo menos, aparecesse um exemplar que me chamasse de fato à atenção). Foi o que aconteceu com Entrevista com Deus, de Perry Lang, que vinha me deixando curioso nos trailers das sessões de cinema que assistia e pegou dizendo para mim mesmo: "quem sabe a esse eu dê uma chance!". 

Pois bem: chega o controverso (para alguns) feriado da Consciência Negra e com ele a chuva no Rio de Janeiro, fazendo com que eu procure uma opção que não me mantenha preso em casa. Logo, "por que não dar uma chance àquele filme, hein?". Pois é exatamente o que faço. E qual não foi a minha surpresa ao me deparar com uma das melhores propostas de debate que eu vi este ano nas salas de cinema que frequentei. 

Entrevista com Deus traz a história de Paul Asher (Brenton Thwaites) um jornalista que escreve sobre religião para um jornal não-cristão que acaba de chegar do Afeganistão e é recebido com a notícia de que sua mulher o está deixando. Contudo, recebe um convite para uma entrevista inusitada. Comparece ao local e se depara com um homem de meia idade que declara ser Deus e diz ter vindo à terra a seu pedido. 

Começa então um grande debate religioso que envolve temas como ética, moral, salvação, livre arbítrio, céu e inferno, entre outras divergências ainda mais complexas. E mais do que isso: a entrevista intercala com a própria vida de Paul, que se encontra em frangalhos. Detalhe: o jornalista chegou àquele ponto da vida em que sua existência parece ter perdido completamente o sentido e talvez não hajam mais motivos para continuar vivendo. 

Deus (vivido de forma extraordinária e sem arroubos de grandiosidade pelo ator David Strathairn) a todo momento propõe a Paul um jogo mental e analítico - e só para constar: a presença do tabuleiro de xadrez entre eles no primeiro encontro, não está ali por mera coincidência - que o fará questionar sua própria fé e decisões tomadas no passado. Tanto que quando ele descobre o verdadeiro motivo da partida de sua esposa, sua moral sempre tão precisa, certeira, estraçalha, deixando-o no momento mais terrível de sua vida. Porém, as respostas que procura não lhe serão dadas de presente, pois não é disso que trata a implacável vida. 

Perry Lang toca numa questão em seu filme que me rendeu muitas discussões (desnecessárias, a meu ver) ao longo da minha vida: percebe-se nas entrelinhas do roteiro de Ken Aguado o quanto a sociedade contemporânea têm transformado a figura de Deus num grande serviço de utilidade pública. Ou seja, recorre-se a ele sempre que se precisa de uma ajuda (de preferência, monetária) de forma rápida. E do contrário, sequer nos lembramos dele. Não é à toa que nossos dogmas atualmente vivam de dízimos, contribuições, doações, que mais parecem uma versão moderada de "vamos sustentar a igreja, senão ela acaba", isso sem contar as orações de cristãos que se limitam a algum pedido pessoal e mercantil, na linha "me arranja um emprego", "me arranja uma casa", "me ajude a pagar as contas". Triste, eu sei... Mas nem por isso menos real. Um sórdido real. 

O desfecho da história soará simplório demais aos ouvidos de quem confunde fé com interesse (e, cá entre nós, a sala estava quase vazia, diferentemente das sessões de produções cinematográficas feitas pela Rede Record, que adora lobotomizar seus espectadores e fiéis, e por isso vivem cheias), mas era - a meu ver - a única solução possível. Não só para Paul, mas também para toda a humanidade. 

Resumindo minha interpretação do filme: vivemos num mundo contemporâneo onde aprendemos a pedir favores e esmolas, mas não aprendemos a crescer como indivíduos e a lidar com nossos próprios problemas. Buscamos uma existência mais feliz em outro plano, mas não procuramos viver uma vida plena neste plano (então para que serve uma nova encarnação ou plano existencial? Para repetirmos os mesmos erros?), procuramos por salas de espera, onde esperamos por civilizações extraordinárias, mas sequer procuramos entender a nossa própria civilização. E quando debatemos isso com o outro, ele vira o canalha, o insensível, o ateu, o que não entende nada. E "por favor, suma da minha frente!".

Entrevista com Deus será chamado de tolo, de piegas, de formador contraditório de opinião, de balela, de tendencioso. Não tenho dúvidas! Todavia, foi o primeiro filme de cunho religioso nos últimos anos que finalmente se propôs a entender minhas angústias, minhas incertezas, minha descrença com os religiosos, principalmente num mundo onde preferi escolher o terreno da dúvida enquanto todos parecem ter tanta certeza sobre tudo e sobre todos. Em suma, ele prefere contrapor ideias ao invés de corroborar um discurso ou caminho a ser seguido. E essa é, com certeza, sua maior virtude. 

Espero não apanhar muito dos leitores que se permitirem ler esta resenha (sempre que opino sobre religião eu viro alvo de críticas e já fui até chamado de radical por pessoas que eu considerava amigos e acabei por quebrar a cara). Mas de uma coisa tenho certeza, apesar de ser uma criatura que rodeia a dúvida: como é bom saber que eu não sou o único incomodado com o que está acontecendo hoje no mundo quando o assunto é fé!

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