sábado, 3 de novembro de 2018

O país que gostamos de inventar de tempos em tempos


Não é de hoje que a sociedade brasileira se comporta como se o país não passasse de uma sucursal de um filme de super-heróis da Marvel ou da DC Comics. Tornamos nossa pátria - se é que ainda dá para chamar o país disso! - uma versão aterradora e esnobe de maniqueísmo, acreditando piamente que certas pessoas devam ser rotuladas de o bem encarnado, dono de moral ilibada e acima de qualquer suspeita, e outras de mal eterno, sacerdote do que existe de pior em termos de ética. Pobres deles, os rotuladores! Não fazem a menor ideia do que estão fazendo com a nação. 

Prova disso é a chegada de O doutrinador, filme de Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça, que chegou ao circuito exibidor nesta última quinta-feira e utiliza-se da estrutura mista de quadrinhos + cinema que vem fazendo a cabeça principalmente do público jovem nos últimos anos. No entanto, aqui a premissa não visa unicamente a eles. Os adultos em algum momento também irão se interessar por aspectos da trama. 

O doutrinador conta a história de Miguel (Kiko Pissolato, uma grata surpresa no cenário audiovisual brasileiro), um agente da D.A.E - uma espécie de forças especiais ligadas à polícia civil - que vê sua vida mudar completamente quando sua filha pequena morre, vítima de uma bala perdida, quando estavam indo assistir a um jogo da seleção brasileira. O país já vivia dias de corrupção desenfreada com acusações disparadas ao governador da cidade, Sandro Correa (Eduardo Moscovis), e a população rugia nas ruas. Contudo, mesmo com todo o cenário negro dando as cartas, Miguel sempre acreditou no sistema e na justiça. Até aquele momento. 

Nasce então o justiceiro nomeado pela mídia de doutrinador, que passa a caçar os cabeças por trás da falência do Estado. Nesse momento a trama ganha contornos ainda mais quadrinísticos (e nesse sentido, o autor Luciano Cunha - criador da hq que originou o longa - deve ter ficado um tanto satisfeito), com exageros os mais diversos, frases de efeito roubando a cena em meio ao roteiro e muita adrenalina e fisicalidade nas cenas de ação, que não são poucas. Nosso herói conta com a ajuda da hacker Nina (Tainá Medina, que lembra em alguns momentos o estado de espírito da personagem Jessica Jones, vivida na série da Netflix pela atriz Krysten Ritter) para esmiuçar o sistema de segurança que preserva a integridade desses "homens de respeito" que governam o país. 

Há muito o que gostar (e também o que não gostar) no filme. Para aqueles que seguem a mentalidade atual do país polarizado em que vivemos nos últimos anos de atacar o outro lado da discussão política com ofensas e deboches, talvez este não seja o seu filme. Há várias inferências à personagens do atual cenário político nacional e certamente você se verá tentado a atacar o filme ou como fascista ou como defensor de uma moral tendenciosa e comunista, algo aliás que aconteceu recentemente quando do lançamento da série O mecanismo, de José Padilha. Fica a dica. Por outro lado, foi uma grata surpresa ver o cinema nacional enveredando por uma seara que eu (ainda) acredito não temos uma grande expertise no assunto ou mesmo tecnologia necessária para convencer. Enfim... É um filme bem intencionado dentro de nossa cinematografia cheia de altos e baixos (principalmente se colocarmos na balança os últimos, digamos, cinco anos). 

Não poderia, porém, terminar este artigo sem deixar de apontar o grande legado desta produção (que coincide com o desabafo final feito por um dos personagens no próprio longa): o de que continuamos acreditando em salvadores da pátria, figuras sobrenaturais e messias capazes de nos salvar da destruição do país. "É preciso mudar", é o que diz o filme em seus últimos segundos. E mudança é uma palavra que sempre teve um sentido um tanto quanto equivocado em nosso país. Também não é pra menos. O que esperar de um país que vive de jeitinhos, esqueminhas, tratos escusos, e que se orgulha de sua própria ignorância e incapacidade de dar a volta por cima? E não bastasse tudo isso se apega a qualquer modismo que pareça legítimo, seguidor de regras e morais tortas, bem vestido e portando diploma de alguma profissão ou status de renome?

O doutrinador parece meia-boca à primeira vista? Sim. Tem suas falhas e soluções abruptas para justificar problemas sérios de comportamento social? É verdade. Entretanto, ele também traz muito sobre o que pensar neste país controverso. Digo mais: o filme de Bonafé e Mendonça é o país que gostamos de inventar de tempos em tempos, cheio de manias e homens poderosos, capazes de virar a nação de cabeça pra baixo, só para não termos de encarar o mundo real, com seus defeitos e distorções. 

Em outras palavras: veja, mas de olhos abertos, questionando cada momento. Pois as entrelinhas andam merecendo melhor atenção de nossa parte hoje em dia do que o todo excessivamente visível e heróico das páginas de jornal, das redes sociais e dos formadores de opinião contraditórios.  

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