Na última década a sétima arte mundial vem morrendo numa velocidade cada vez mais assustadora. Nunca perdemos tantos gênios ao mesmo tempo! Bergman, Antonioni, Morricone, Belmondo... E os cinéfilos-raiz choram copiosamente a cada partida, pois a renovação não é nada justa. Resultado: aquele sentimento de que, muito em breve, nada de bom sobrará.
No dia de hoje testemunhamos mais um triste capítulo dessa catarse amarga que é a despedida cinematográfica: o diretor Jean-Luc Godard morreu aos 91 anos. E com um adendo ainda mais melancólico: ele recorreu ao suicídio assistido. "Estava esgotado", disseram num comunicado oficial alguns familiares.
Difícil classificar Godard apenas como um pioneiro da Nouvelle Vague que revolucionou não somente o cinema francês, como também o do resto do mundo. Entre brigas e afagos com François Truffaut ele criou não somente uma vanguarda, mas uma forma de pensamento ímpar. Resumindo de forma direta: ele não cabia no status quo de jeito nenhum e deixou isto bastante claro em seus filmes, livros, relacionamentos, na vida em geral.
E quando me refiro aos filmes, são inúmeros os que entraram para a história: Acossado, O demônio das 11 horas, O desprezo, A chinesa, Alphaville, Je vous salue Marie - que foi vetado aqui no Brasil em 1986, pelo então presidente José Sarney, que acreditou tratar-se o longa de uma ofensa aos católicos -, o documentário Sympathy to the devil, sobre a banda de rock Rolling Stones, etc etc etc (e etc na filmografia dele era uma caso à parte).
Godard subverteu tudo o que podia e foi muito boicotado por isso. Acham que se importou com os detratores? Pelo contrário. Fez de novo e de novo aquilo que mais irritava aos outros. Era não somente o seu processo criativo, mas o seu estilo de vida que estava em jogo. O tempo todo.
No quesito vida pessoal, também deu o que falar. A morte do filho com Anna Karina aos sete meses de gestação e o casamento com a jovem Anne Wiazemsky, menor da idade na época, foram assunto para inúmeros (e incômodos) holofotes. E ele passou por de cima de todos como um rolo compressor.
Ninguém assaltou, amou, corrompeu, quebrou estruturas, reconfigurou tudo como nos filmes dele. Tanto que eu tenho uma dificuldade gigantesca (até hoje) de chamá-lo de cineasta. Para mim, Godard era um grande provocador. Da arte e, principalmente, da vida.
Porém, ele também era múltiplo. Cineasta, teórico, cientista político, poeta, experimentador, amado, crítico, ensaísta, chato, gênio, escritor, odiado, clássico, moderno, pioneiro, louco, revolucionário, eterno. E sabe lá Deus mais o quê.
Em 2017 o cineasta Michel Hazanavicius - vencedor do Oscar pelo longa mudo O artista - realizou O formidável, e fez do cineasta o seu protagonista inebriante. Nele, mostrou toda sua fúria, seu inconformismo, seu deboche, e por vezes sua antipatia blasé. E o ator que o interpretou, o queridinho do atual cinema francês, Louis Garrel, parecia mediúnico em sua caracterização. Vejo neste trabalho meio que uma antecipação de sua despedida aqui da terra. Vejam!
Ao passear por inúmeros perfis no Twitter vejo críticos, professores de cinema, pesquisadores e amantes da sétima arte em geral se referindo à sua morte como "o fim de uma era" e também ao "epílogo do cinema do século XX". Estão cobertos de razão. E digo mais: acho quase impossível que surja outro como ele, pois no mundo dos filmes os grandes nunca produziram cópias à altura. E ele era singular por demais.
Mestre, por tudo o que o senhor fez por nós, loucos desvairados e apaixonados por esta tela mágica, fica com Deus! E eu espero que um dia mereça o mesmo lugar no Olimpo onde você certamente se encontra agora.
Do seu eterno admirador.
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