sábado, 24 de setembro de 2022

Memórias do homem multimídia


Nos tempos de faculdade procuramos (quer dizer: os alunos de verdade procuram, pois há muito comprador de diploma nesse mercado obscuro) referências, autores que valham a pena, que moldem nossa formação acadêmica e cultural, que sejam relevantes de alguma forma. E é uma batalha árdua, pois há muita tranqueira dividindo prateleiras em livrarias e megastores com o que realmente acrescenta e sendo chamado de visionário, de revolucionário. 

E nessas horas eu faço cara de "Ah tá... Vou fingir que acredito".

E em meio a tantos falsos autores e magos da chamada auto-ajuda reconheci ao longe Nelson Motta. Embora já tivesse lido o seu prematuro Música, humana música anos antes, foi lá pelos meados dos anos 1990 que realmente comecei a lê-lo com mais regularidade. E confesso: gostei do seu estilo logo de cara. 

O tempo passou, meus cabelos se foram, o joelho esquerdo começou a resmungar e eis que passados os temidos 70 anos, Nelson decide escrever suas memórias. E não é que o faz com uma naturalidade e uma elegância assustadoramente inigualáveis? De cu pra lua - dramas, comédias e mistérios de um rapaz de sorte é um deleite para os eternos fãs desse senhor mais do que multimídia em sua essência.

Escritor, jornalista, cronista, produtor, agitador cultural, dono de casa de shows, ator de documentários, dramaturgo de musicais consagrados pelo público... É simplesmente impossível definir Nelson Motta de maneira breve. Na verdade, você, leitor, até se perde em meio a tantas palavras que o definiram ao longo da vida. Quando mencionamos sua capacidade artística e seu talento inato o céu normalmente é o limite.

Antes de começarmos a destrinchar o volume de mais de 450 páginas conhecemos o Nelson que praticamente todos já conhecem: o criador da boate Dancin' Days, que gerou como legado o grupo As Frenéticas e a novela homônima da Rede Globo; o letrista de "Como uma onda", parceria musical com o cantor Lulu Santos; produtor de discos antológicos da música popular brasileira (que lançou Marisa Monte e reinventou Daniela Mercury); o escritor que lançou obras literárias que viraram best-sellers de maneira bastante natural e espontânea (Vale tudo - o som e a fúria de Tim Maia, Noites tropicais, O canto da sereia, Bandidos e mocinhas, entre tantos outros); o tricolor apaixonado, que namorou de Elis Regina à Marília Pêra.

Já depois de encerrarmos a última página - após ele se declarar apaixonadamente para a atual mulher, Drica - ficamos sabendo mais sobre sua vida pessoal, seus pais exigentes, sua falta de vocação para os estudos, a rotina louca pelos estúdios de gravação, suas desventuras amorosas e meteóricas, sua relação de pai coruja com as filhas, da paixão pelo gato, Max, amigo inseparável, das dores e até mesmo vícios, etc etc etc haja etc.

Por sinal, o verbete etc daria um interessante título para um dos seus livros, tendo em vista que ele nunca para, não pensa em aposentadoria, nunca chega ao fim de nada. Grande Nelson! O único defeito de De cu pra lua? É que ele termina. E isso é realmente uma pena (ou, quem sabe, no mínimo, um ato falho).

E outro detalhe que também é uma pena: depois que comecei a lê-lo, 30 anos atrás, não vi mais ninguém se expressando culturalmente da mesma forma. E isso me parece por demais terrível em tempos de tantos escritores medíocres fazendo sucesso de maneira avassaladora. 

As pessoas que escrevem sobre cultura pop atualmente parecem engessadas, estão presas a um politicamente correto inútil e nada reflexivo. Tudo é motivo para censura, cancelamentos e brigas. Resultado: resta escrever sobre o nada travestido de subfama. E isso, meus caros leitores, é mais do que triste, quase insano. 

Precisamos mudar tudo isso. Precisamos de mais Nelsons Mottas. Resta saber onde encontrá-los. E acreditem: eu tenho procurado. Até agora em vão.   


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