quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Um showman nato


Ele, não tenho a menor dúvida, foi o homem (e o artista) mais sem filtro que a cultura pop e a sociedade brasileira já nos apresentaram até hoje. E quem continua enxergando-o como um mero maluco ou doidão realmente não entendeu uma vírgula do que ele falou ou cantou. 

Quem? Tim Maia, é claro! O pai da soul music nacional, se vivo, estaria completando 80 anos no dia de hoje, e eu me pergunto: como reagiria o Brasil de hoje, cheio de preconceitos e cancelamentos, diante de uma figura tão meteórica e desbocada como ele? 

Falar de sua carreira musical, mesmo para leigos, é chover no molhado porque ele continua relevante, continua tocando, bombando nas pistas e os ouvintes continuam procurando seus vídeos na internet, em busca de suas frases marcantes e sua filosofia própria (sua declaração "tudo é tudo e nada é nada", durante a gravação de um especial para a tv, e sua formação em cornologia sempre abordada em talk shows, viraram sua marca registrada). 

Detalhe importante e imprescindível: ao me referir à sua carreira, não podemos nos esquecer do "polêmico" álbum que gravou quando fazia parte da seita religiosa Universo em desencanto, disco este boicotado pelas gravadoras e que quase decretou o fim prematuro de sua carreira. Ouça-o também. É Tim Maia na veia! 

Mas nada que abalasse o jeito irascível e inquietante do garoto que entregava marmitas na Tijuca, começou a carreira ao lado de Roberto e Erasmo Carlos, foi preso nos Estados Unidos e trouxe de lá uma sonoridade e uma vibe ímpares na então MPB! 

"Me dê motivo", "Gostava tanto de você", "O descobridor dos sete mares", "Azul da cor do mar", "Do Leme ao pontal", "Primavera", "Sossego", "Você", "Um dia de domingo" (no qual divide o microfone com Gal Costa)... É difícil definir Tim em poucas palavras, digo, canções. Ele era uma metralhadora das intenções as mais diversas e transformava o simples, o cotidiano, em espetáculo. 

Um dica rápida para os não-iniciados na obra do mestre: ouça Tim Maia em inglês assim que puderem. Quem me deu o toque foi um senhor de mais de 60 anos dentro da (hoje extinta) loja Modern Sound, em Copacabana. E ele estava cobertíssimo de razão. Minha vida - e meus ouvidos - foram profundamente modificados depois disso. 

Porém, como todo artista rebelde que se preze, havia o lado B da sua história pra lá de megalomaníaca: as drogas, muita bebida, os relacionamentos amorosos conturbados, a fama de não comparecer aos shows e a comida, um inimigo que o perseguiu por toda vida. 

Na extraordinária biografia sobre ele escrita por Nelson Motta, Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia, o autor marca os capítulos da obra em kg, mostrando o quanto Tim engordou ao longo da vida (e o quanto isso lhe trouxe problemas). Em sua última apresentação antes de falecer, via-se claramente um homem ofegante e quase sem voz, lutando arduamente para se manter de pé e não decepcionar os fãs. 

Acreditem: não decepcionou. Nem um pouco. Seu talento e seu legado para a história da música nacional são únicos e irreplicáveis. Acho quase impossível que outro como ele surja.

No final das contas me fica a sensação de que, além de ser um showman nato, ele viveu na época certa. Dificilmente conseguiriam deixá-lo brilhar nos dias de hoje, repletos de politicamente correto e artistas que se escondem atrás de falsos engajamentos sociais e simpatias fabricadas. Ele nunca deixaria de bater de frente com esse século XXI caótico e contraditório. Do contrário, não seria ele o furacão que foi. 

Mas que está fazendo uma falta danada no mainstream, ah!!! Não tenho a menor dúvida! 


sábado, 24 de setembro de 2022

Memórias do homem multimídia


Nos tempos de faculdade procuramos (quer dizer: os alunos de verdade procuram, pois há muito comprador de diploma nesse mercado obscuro) referências, autores que valham a pena, que moldem nossa formação acadêmica e cultural, que sejam relevantes de alguma forma. E é uma batalha árdua, pois há muita tranqueira dividindo prateleiras em livrarias e megastores com o que realmente acrescenta e sendo chamado de visionário, de revolucionário. 

E nessas horas eu faço cara de "Ah tá... Vou fingir que acredito".

E em meio a tantos falsos autores e magos da chamada auto-ajuda reconheci ao longe Nelson Motta. Embora já tivesse lido o seu prematuro Música, humana música anos antes, foi lá pelos meados dos anos 1990 que realmente comecei a lê-lo com mais regularidade. E confesso: gostei do seu estilo logo de cara. 

O tempo passou, meus cabelos se foram, o joelho esquerdo começou a resmungar e eis que passados os temidos 70 anos, Nelson decide escrever suas memórias. E não é que o faz com uma naturalidade e uma elegância assustadoramente inigualáveis? De cu pra lua - dramas, comédias e mistérios de um rapaz de sorte é um deleite para os eternos fãs desse senhor mais do que multimídia em sua essência.

Escritor, jornalista, cronista, produtor, agitador cultural, dono de casa de shows, ator de documentários, dramaturgo de musicais consagrados pelo público... É simplesmente impossível definir Nelson Motta de maneira breve. Na verdade, você, leitor, até se perde em meio a tantas palavras que o definiram ao longo da vida. Quando mencionamos sua capacidade artística e seu talento inato o céu normalmente é o limite.

Antes de começarmos a destrinchar o volume de mais de 450 páginas conhecemos o Nelson que praticamente todos já conhecem: o criador da boate Dancin' Days, que gerou como legado o grupo As Frenéticas e a novela homônima da Rede Globo; o letrista de "Como uma onda", parceria musical com o cantor Lulu Santos; produtor de discos antológicos da música popular brasileira (que lançou Marisa Monte e reinventou Daniela Mercury); o escritor que lançou obras literárias que viraram best-sellers de maneira bastante natural e espontânea (Vale tudo - o som e a fúria de Tim Maia, Noites tropicais, O canto da sereia, Bandidos e mocinhas, entre tantos outros); o tricolor apaixonado, que namorou de Elis Regina à Marília Pêra.

Já depois de encerrarmos a última página - após ele se declarar apaixonadamente para a atual mulher, Drica - ficamos sabendo mais sobre sua vida pessoal, seus pais exigentes, sua falta de vocação para os estudos, a rotina louca pelos estúdios de gravação, suas desventuras amorosas e meteóricas, sua relação de pai coruja com as filhas, da paixão pelo gato, Max, amigo inseparável, das dores e até mesmo vícios, etc etc etc haja etc.

Por sinal, o verbete etc daria um interessante título para um dos seus livros, tendo em vista que ele nunca para, não pensa em aposentadoria, nunca chega ao fim de nada. Grande Nelson! O único defeito de De cu pra lua? É que ele termina. E isso é realmente uma pena (ou, quem sabe, no mínimo, um ato falho).

E outro detalhe que também é uma pena: depois que comecei a lê-lo, 30 anos atrás, não vi mais ninguém se expressando culturalmente da mesma forma. E isso me parece por demais terrível em tempos de tantos escritores medíocres fazendo sucesso de maneira avassaladora. 

As pessoas que escrevem sobre cultura pop atualmente parecem engessadas, estão presas a um politicamente correto inútil e nada reflexivo. Tudo é motivo para censura, cancelamentos e brigas. Resultado: resta escrever sobre o nada travestido de subfama. E isso, meus caros leitores, é mais do que triste, quase insano. 

Precisamos mudar tudo isso. Precisamos de mais Nelsons Mottas. Resta saber onde encontrá-los. E acreditem: eu tenho procurado. Até agora em vão.   


domingo, 18 de setembro de 2022

O samurai cibertech


Uma das maiores frustrações que eu tenho na vida é não saber desenhar. Sério. Então imaginem um garoto de 12, 13 anos atolado de gibis dentro de um quarto, tentando esboçar uma reles imagem, sem obter o menor sucesso. Decepcionante, eu sei... 

E quando o artista em questão é um mestre (leia-se: George Perez, Sergio Aragonés, Will Eisner, Alex Raymond, etc), essa agonia aumenta ainda mais. É o caso de Frank Miller. Acompanho seu trabalho desde que me entendo por gente e a cada novo projeto dele minha curiosidade só faz aumentar. De Elektra assassina à O cavaleiro das trevas, passando pelo magistral Sin City, Miller provou ser um mago da narrativa dentro da nona arte.

Contudo, ele não se rendeu àquilo que o consagrou e quase quatro décadas atrás realizou seu trabalho mais autoral, mas não menos brilhante. Refiro-me à Ronin, uma revolução gráfica dentro da sua própria carreira. E cabe aqui um adendo importante: com esta graphic novel ele praticamente salvou a DC Comics de uma falência (A DC, aliás, ofereceu-lhe a possibilidade de criar esse projeto sem interferir em nada - algo raro na indústria dos quadrinhos -, tirando-o da concorrente Marvel, onde trabalhava na série do Demolidor). 

Na trama, um samurai vê seu Shudoshi morrer pelas mãos do maquiavélico Agat e se torna um Ronin (um guerreiro sem mestre). Ele decide então vingá-lo, mas acaba também abatido pela criatura. Entretanto, por conta de uma espada mágica ele reencarna 800 anos depois numa civilização hightech no corpo de Billy Chalas, um paraplégico com poderes telecinéticos fortíssimos. Já Agat incorpora em Taggart, responsável por Aquarius, uma instalação futurista que ele quer transformar numa poderosa arma de guerra. 

A única pessoa capaz de ajudar Ronin é Casey, uma agente de segurança da instalação que no passado nutriu sentimentos por Billy, o que faz com que uma conexão amorosa aconteça entre eles. Juntos, eles precisam colocar suas diferenças de lado e combater o grande mal. 

Por conta de sua temática complexa, por vezes rebuscada, o público leitor a priori rejeitou o trabalho, distanciando-o de outros projetos do autor. Contudo, com o passar das décadas a graphic novel acabou arrebanhando milhões de fãs ao redor do mundo, tornando-se um grande divisor de águas dentro da sua carreira. 

Provavelmente o grande mérito do álbum está no misto de cores sensuais, atípicas, disfuncionais (mérito da artista Lynn Varley, que sequer trabalhava anteriormente neste mercado) com uma violência estilizada na história, quase surrealista, mas não menos feroz. E Miller acaba, ao fim, compondo uma narrativa visceral e contundente, bem ao gosto dos maiores admiradores da arte sequencial. 

São visíveis as comparações entre estre projeto e obras e autores europeus seminais, como Moebius e a clássica revista Metal Hurlant. Tem até quem diga que é o trabalho do autor com menos cara de Estados Unidos (e não estão totalmente errados, não!).

Ronin une passado e futuro através da ciência e levanta a todo momento questões que andam muito voga até hoje, como por exemplo o descaso com a ecologia e o abuso das corporações, sempre agindo como esferas acima do bem e do mal. Há, inclusive, quem veja na postura da instalação Aquarius um flerte com o cyberpunk, gênero bastante popular dentro da ficção-científica. 

Hoje, 2022, os detratores do passado se ressentem de que Frank Miller não tenha regressado a esse filão, que certamente merecia novos recortes e personagens. Realmente uma pena! O que prova por a mais b que não basta ser gênio, é preciso se reinventar constantemente. Essa é a grande matéria prima dos mestres em qualquer área de atuação e não a mera insistência no que é consagrado.

E antes que eu acabe por me repetir, só me resta dizer: leiam. O quanto antes. Até para poderem ver seu criador-ídolo com outros olhos!   

terça-feira, 13 de setembro de 2022

O provocador


Na última década a sétima arte mundial vem morrendo numa velocidade cada vez mais assustadora. Nunca perdemos tantos gênios ao mesmo tempo! Bergman, Antonioni, Morricone, Belmondo... E os cinéfilos-raiz choram copiosamente a cada partida, pois a renovação não é nada justa. Resultado: aquele sentimento de que, muito em breve, nada de bom sobrará. 

No dia de hoje testemunhamos mais um triste capítulo dessa catarse amarga que é a despedida cinematográfica: o diretor Jean-Luc Godard morreu aos 91 anos. E com um adendo ainda mais melancólico: ele recorreu ao suicídio assistido. "Estava esgotado", disseram num comunicado oficial alguns familiares. 

Difícil classificar Godard apenas como um pioneiro da Nouvelle Vague que revolucionou não somente o cinema francês, como também o do resto do mundo. Entre brigas e afagos com François Truffaut ele criou não somente uma vanguarda, mas uma forma de pensamento ímpar. Resumindo de forma direta: ele não cabia no status quo de jeito nenhum e deixou isto bastante claro em seus filmes, livros, relacionamentos, na vida em geral. 

E quando me refiro aos filmes, são inúmeros os que entraram para a história: Acossado, O demônio das 11 horas, O desprezo, A chinesa, Alphaville, Je vous salue Marie - que foi vetado aqui no Brasil em 1986, pelo então presidente José Sarney, que acreditou tratar-se o longa de uma ofensa aos católicos -, o documentário Sympathy to the devil, sobre a banda de rock Rolling Stones, etc etc etc (e etc na filmografia dele era uma caso à parte). 

Godard subverteu tudo o que podia e foi muito boicotado por isso. Acham que se importou com os detratores? Pelo contrário. Fez de novo e de novo aquilo que mais irritava aos outros. Era não somente o seu processo criativo, mas o seu estilo de vida que estava em jogo. O tempo todo. 

No quesito vida pessoal, também deu o que falar. A morte do filho com Anna Karina aos sete meses de gestação e o casamento com a jovem Anne Wiazemsky, menor da idade na época, foram assunto para inúmeros (e incômodos) holofotes. E ele passou por de cima de todos como um rolo compressor. 

Ninguém assaltou, amou, corrompeu, quebrou estruturas, reconfigurou tudo como nos filmes dele. Tanto que eu tenho uma dificuldade gigantesca (até hoje) de chamá-lo de cineasta. Para mim, Godard era um grande provocador. Da arte e, principalmente, da vida. 

Porém, ele também era múltiplo. Cineasta, teórico, cientista político, poeta, experimentador, amado, crítico, ensaísta, chato, gênio, escritor, odiado, clássico, moderno, pioneiro, louco, revolucionário, eterno. E sabe lá Deus mais o quê. 

Em 2017 o cineasta Michel Hazanavicius - vencedor do Oscar pelo longa mudo O artista - realizou O formidável, e fez do cineasta o seu protagonista inebriante. Nele, mostrou toda sua fúria, seu inconformismo, seu deboche, e por vezes sua antipatia blasé. E o ator que o interpretou, o queridinho do atual cinema francês, Louis Garrel, parecia mediúnico em sua caracterização. Vejo neste trabalho meio que uma antecipação de sua despedida aqui da terra. Vejam! 

Ao passear por inúmeros perfis no Twitter vejo críticos, professores de cinema, pesquisadores e amantes da sétima arte em geral se referindo à sua morte como "o fim de uma era" e também ao "epílogo do cinema do século XX". Estão cobertos de razão. E digo mais: acho quase impossível que surja outro como ele, pois no mundo dos filmes os grandes nunca produziram cópias à altura. E ele era singular por demais. 

Mestre, por tudo o que o senhor fez por nós, loucos desvairados e apaixonados por esta tela mágica, fica com Deus! E eu espero que um dia mereça o mesmo lugar no Olimpo onde você certamente se encontra agora.

Do seu eterno admirador.    


terça-feira, 6 de setembro de 2022

O clássico dos clássicos!


Não é todo dia que um exemplar raro da sétima arte comemora mais de um século de existência. E no caso específico do longa homenageado por este singelo artigo, trata-se de uma obra ímpar, que anteviu muitas das revoluções tecnológicas pelas quais o próprio cinema passou aos longo dos anos. 

Ou em outras palavras: o clássico - e por que não dizer também cult? - Viagem à lua, do diretor George Méliès, completa neste ano 120 anos. E o melhor: sem perder uma vírgula do seu estilo e elegância. 

Que me perdoem os fanáticos por super-heróis, zumbis, vampiros e outras criaturas sobrenaturais, mas a produção de Méliès - que teve como assistente o seu próprio irmão, Gaston - foi precursora até mesmo do futuro dessas películas, pois tem uma estrutura que remete de cara aos grandes blockbusters do século XXI!

Na trama singela um grupo de homens viaja à Lua, sendo levados por uma cápsula lançada de um canhão gigante, mas acabam sendo capturados por seres alienígenas (os chamados homens-lua). Repleto de pequenas inovações - afinal de contas, Méliès era o mestre do gimmick ou trucagem -, o longa agradou plateias por todo os Estados Unidos, mas infelizmente não do jeito que o seu realizador queria. 

Explico-me: antes do cineasta conseguir distribuição para todo o território nacional (como era seu objetivo inicial), técnicos dos filmes de Thomas Edison secretamente fizeram cópias piratas do longa e o distribuíram por todo o país, levando Méliès à falência. Sim, meus caros leitores! A patifaria também é um negócio que atravessa séculos. 

Embora produzido em preto-e-branco teve uma parte encontrada na França em 2002 completamente colorizada à mão. O filme foi, então, restaurado e apresentado no ano seguinte no Pordenone Silent Film Festival, na Itália, que é considerado o maior festival de cinema mudo do mundo.

Para muitos especialistas e críticos de cinema Viagem à lua é a primeira ficção científica da história da sétima arte. E mesmo que muitos a considerem simplória em demasia no que concerne à narrativa (eu não concordo com tal declaração), ainda assim manteve seu charme com o passar das gerações e o contínuo interesse dos verdadeiros amantes do cinema - e não os reles frequentadores de fim de semana que reduzem a arte à meras franquias e reboots.

Não à toa é sempre classificado por mim, ao lado de pérolas como O encouraçado Potenkim, Oito e meio, E o vento levou..., Roma, cidade aberta e tantas outras produções magníficas, como um clássico dos clássicos. 

Em 2011 o megadiretor de cinema Martin Scorsese adaptou para as telas o livro do escritor Brian Selznick A invenção de Hugo Cabret, que tinha entre seus personagens principais o cineasta George Méliès (interpretado por Ben Kingsley), e fez menção a este longa aqui homenageado. Se tiverem a oportunidade de assistí-lo, não a desperdiçem! Até mesmo para conhecer um pouco mais sobre o processo de produção do realizador. 

Faltou dizer alguma coisa? Faltou. Avisar a quem ainda não conhece esta pequena obra-prima que a veja. O quanto antes. Pois nem só de Thanos morrendo, Ethan Hunt saltando de aviões e escalando prédios e assassinos mascarados cortando gargantas vive o cinema mundial. Não mesmo.