De novo a cultura e a arte nacional sofrem um terrível revés. E dessa vez - pelo menos para mim - o baque foi devastador.
Ele era elegância, estilo, voz, postura e nem por isso deixou de fazer o homem do povo, com seus trejeitos e falares, quando o trabalho assim o pediu. Foi padre, governador, travesti, presidiário, escravo, policial, bicheiro de escola de samba, político corrupto... Na verdade, é mais fácil dizer o que ele não foi nas telas.
De Macunaíma à O beijo da mulher aranha, de Orquídea Selvagem (um drama meio erótico de Zalman King protagonizado por Mickey Rourke e rodado aqui no país) à Rainha Diaba (provavelmente o filme que o definiu para muitos críticos), de Eles não usam black-tie à Carandiru. E isso tudo não explica 10% da carreira dele.
Falo obviamente do mestre, da lenda Milton Gonçalves, que nos deixou hoje aos 88 anos. Nos últimos tempos ele andava sumido da tv e do cinema, após um AVC que sofreu em 2020. Uma pena. Qualquer pessoa fã da boa dramaturgia admirou Milton.
Ouví-lo falar inglês era inebriante. Na verdade, a sua voz era um show à parte. Poucos artistas me deixaram a mesma impressão. Milton era o que eu chamo de o ator-referência e com folga. E não somente na atuação, embora tenha destacado esse aspecto da sua carreira. Na tv ele também dirigiu novelas icônicas, como Os irmãos coragem e a lendária Escrava Isaura.
E não posso deixar de destacar também outro viés de sua carreira: a luta pelo reconhecimento dos atores negros dentro da classe artística. Para quem leu obras seminais como A negação do Brasil - o negro na telenovela brasileira, de Joel Zito Araújo (que também virou um documentário sublime), Milton foi uma figura fundamental nessa batalha que permanece até os dias de hoje, em tempos de matança e extermínios à etnia negra nas grandes metrópoles.
Ao lado de figuras como Ruth de Souza, Haroldo Costa, Zózimo Bulbul, Abdias do Nascimento, entre outras feras, lutou com unhas e dentes pelo respeito ao talento dos artistas de cor. E quem acha isso pouca coisa não faz realmente a mínima ideia do que significa ser negro (e artista) num país como o nosso, que em mais de 200 anos nunca discutiu de forma sensata o que foi a escravidão.
A partida de Milton Gonçalves, depois de tantos bons artistas falecidos recentemente, me faz pensar novamente (e ando cansado disso!) no quanto a classe artística anda empobrecendo ano a ano. A mídia infelizmente passou a evidenciar o que existe de pior em termos de arte por conta da falta de boa renovação. Os atores deram lugar aos reboladores de bunda e imitadores de vozes. E o pior: eles estão se achando.
Como prêmio de consolação nos sobra seu legado artístico gigantesco. Em seu perfil no IMDb (que eu fui fuçar logo depois que soube da notícia de seu falecimento) constam mais de 170 créditos. Ou seja: um artista versátil, que fez praticamente de tudo um pouco.
E pensar que ele fora esse ano tema do carnaval da Acadêmicos de Santa Cruz na série Ouro, mas infelizmente não pode desfilar. Triste ironia!
Mestre, fique em paz com uma certeza: sua contribuição para a cultura desta nação jamais será esquecida. E cabe a nós, fãs de longa data, fazermos com que novas gerações a conheçam também, nem que seja na marra. Toda felicidade do mundo, onde quer que você esteja!