Os ociosos que me desculpem, mas vivemos numa civilização onde o corpo (ou a desconstrução dele) é tudo. Passeie brevemente pelo bairro onde você mora e irá se deparar com duas instituições que ditam a pauta da sociedade cada vez com mais força: as igrejas e as academias. E no segundo caso, o crescimento das chamadas academias fitness - onde seus frequentadores são expostos a uma rotina de exercícios praticamente surreal, às vezes inumana - fez com que surgisse um tipo de ser humano quase robótico, até mesmo no falar.
E por que estou falando disso nesse arremedo de crítica cinematográfica? Porque esta semana enfim consegui assistir Titane, filme da diretora Julia Ducournau, vencedor da Palma de Ouro no último Festival de Cannes, e me peguei pensando exatamente no quanto queremos transformar nossas vidas com a mesma vitalidade com que deformamos nossos corpos.
No longa francês, acompanhamos a saga da jovem Alexia (a extraordinária Agathe Rouselle) desde pequena, após sofrer um acidente de carro que fez com que ela precisasse realizar uma cirurgia e colocar uma placa de titânio na cabeça. Contudo, ao invés dela nutrir medo ou pânico pelo automóvel que mudou completamente a sua vida, ela meio que desenvolve uma relação mórbida com ele, de adoração irrestrita.
Os anos passam e ela começa a trabalhar se apresentando como dançarina exótica em feiras automotivas. Como se trata de uma mulher lindíssima, começa a atrair a atenção dos piores tipos de homens possíveis e quando é atacada por um desses exemplares que não se cansam de existir desde que o mundo é mundo (ou seja: os homens que não conseguem ouvir a palavra não do sexo oposto), ela reage e o mata. Mais do que isso: aquilo dispara um gatilho dentro dela e meio que se torna uma reação habitual de sua parte. Ela transforma a violência em parte da sua vida.
Porém, após um de seus crimes inexplicáveis ter sido desmascarado e ela, reconhecida por um retrato falado, Alexia precisa assumir uma outra identidade para sumir por uns tempos e escolhe para isso a foto do filho desaparecido de Vincent (o também ótimo Vincent Lindon), chefe do corpo de bombeiros, um homem viciado em adrenalina e testosterona.
Contudo, há um outro problema ainda mais perturbador que a acompanhará durante todo o tempo em que estiver escondida na casa de Vincent: ela - acreditem! é isso mesmo que vocês irão ler - teve relações sexuais com um carro e ainda por cima engravidou dele. Parece absurdo e é. Digo mais: vejo em Titane uma grande sátira à nossa devoção doentia ao capitalismo, que nos faz muitas vezes tomar decisões completamente nonsense (e, ainda assim, as relativizamos, como se elas fossem as mais naturais do mundo).
Agora esse rapaz, que não é um rapaz, precisa se fazer presente (na verdade, resistir é a palavra) num universo extremamente misógino, que vê na maioria das vezes a figura feminina apenas sob a ótica do prazer efêmero, e ainda por cima tendo que conviver e entender um pai cheio de remorsos e que deixa claro a todo momento que falhou na forma como criou o filho e pretende corrigir isso da maneira que puder. Então? Será que ela conseguirá escapar disso um dia e voltar à sua vida normal?
Esqueçam a franquia Velozes e Furiosos e seus carros tunados, pois aqui o carro em questão é meramente coadjuvante (ou, no máximo, catalisador do grande tour de force que viraria a vida de Alexia). A transformação corporal dela, enfaixando os seios, quebrando o nariz, escondendo da forma que for possível a gravidez, é impressionante e me lembrou em alguns momentos os longas do diretor David Cronenberg.
Sim, pois em A mosca, Crash: estranhos prazeres e Existenz também vemos o que os protagonistas são capazes de fazer com seus próprios corpos quando precisam se autoafirmar, sobreviver ou mesmo buscar um novo caminho rumo ao futuro.
E ao final da projeção, ficou-me apenas uma certeza: a de que eu assisti a um dos longa-metragens mais loucos e insanos - e ainda assim extremamente bem produzido e filmado - que eu assisti na última década. Contudo, é preciso avisar com antecedência: Titane é gosto adquirido e não se destina a todos os públicos. Muito provavelmente os fãs da zona de conforto produzida pelas franquias, remakes e spin offs terão uma enorme dificuldade em comprar essa narrativa.
Mas que quando você entende o que está em jogo e a representação que ela faz do mundo contemporâneo no qual estamos inseridos de maneira quase indigesta, ela dá um show à parte, ah meus caros leitores, não tenham a menor dúvida: até a ficção e o delírio presentes aqui têm a sua razão de ser. E nós não passamos, no final das contas, de corpos e sonhos. Mas adoramos fingir para os outros que somos bem mais do que isso!
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