domingo, 20 de fevereiro de 2022

Não se pode dar um preço ao amor


Nada é mais doloroso e implacável na vida de qualquer ser humano do que a culpa e o ressentimento. Passamos a vida acreditando que nossas escolhas são as melhores possíveis tendo em vista o horizonte que vislumbramos, mas não estamos isentos de amar de forma equivocada, de culpar o outro injustamente ou mesmo de fracassar em nossas intenções. E nem sempre conseguimos consertar nossos erros (e não somente isso: há quem prefira a terrível zona de conforto de frases hipócritas como "eu faria tudo de novo"). 

Esta semana, como faço de tempos em tempos, andei procurando um longa-metragem que abordasse os relacionamentos amorosos de uma forma não tão padronizada. Não queria uma reles love story ou uma comédia romântica e sim uma história que desconstruísse a ideia imaginária que temos do amor idealizado, algo que sempre me irritou, por exemplo, em hollywood e seus romances açucarados em demasia. E eis que me deparo com Veneza, novo longa do diretor Miguel Falabella, e uma grata surpresa cinematográfica desse início de 2021 (que, confesso, deveria ter assistido no ano passado). 

Baseado na peça de Jorge Accame, Veneza se passa dentro de um prostíbulo cuja dona, Gringa (Carmen Maura, em uma interpretação irretocável), não consegue esquecer o homem que amou e dispensou de forma amarga para continuar no mundo da prostituição. Ela passa os dias em tormento, lembrando do que viveram e de uma promessa: que um dia iria à Veneza para reencontrar Giacomo (Magno Bandarz) e pedir perdão pelo que fez. Suas funcionárias não aguentam mais o desespero da pobre mulher, mas a mais compadecida de todas é Rita (Dira Paes), que ao lado de Tonho (Eduardo Moscovis), uma versão rústica do "homem da casa", promete levá-la ao país, nem que seja a última coisa que ela faça. 

Contudo, o que eles ganham no estabelecimento mal dá para pagar as contas. E mais do que isso: como acreditar realmente, num lugar como aquele, onde o amor é comercializado da maneira mais gratuita possível, que a história da Gringa possa ser crível? Para muitas deles, este tipo de sentimento é simplesmente inverossímil ou ilusório. Elas foram doutrinadas a acreditar que, na vida, tudo não passa de um grande negócio. 

Mas após irem a uma apresentação teatral dentro de um circo mambembe, Tonho descobre uma maneira de levarem a Gringa à Veneza sem precisarem sair do país e, nesse momento, a película ganha contornos de ilusão, chegando a me fazer pensar em alguns momentos nos filmes do cineasta italiano Federico Fellini e em Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues (cuja caravana Rolidei, muito mais do que uma mera trupe circense, era um grande receptáculo das catarses humanas). E nesse sentido Falabella realiza seu melhor e mais maduro filme como diretor de cinema. 

Há uma frase dita por um dos membros do circo no início da sessão que pautou meu pensamento durante toda a narrativa: "não se pode dar um preço ao amor". E esse é exatamente o mote que define a angústia da Gringa. Ela culpou seu amado por tê-la transformado numa mercadoria barata, mas demorou demais a perceber que também se vendeu para atender a seus próprios interesses. E quando se deu conta era tarde demais para corrigir a situação, pois a vida passou por ela como um rolo compressor (e a vida, assim como amor, não são ciências exatas, que definimos a nosso bel prazer). 

Veneza é, de forma interessantíssima, um grande experimento sobre o lúdico e o onírico que volta e meia perseguem a humanidade, embora muitos prefiram a certeza imposta pela caretice cotidiana e a velha mania do "se arriscar não é seguro e a vida é por demais implacável com quem a desobedece". E o resultado disso são pessoas amargas, infelizes ou desesperadas (como é o caso da nossa protagonista), tentando reconstruir os cacos que se quebraram, acreditando na possibilidade de uma redenção. 

No segmento final, enquanto embarcamos juntos no sonho e na imaginação da Gringa, que acredita piamente ter tido a chance de consertar seus erros, me peguei pensando na minha própria vida e se eu teria também uma segunda chance para resolver uma história mal resolvida do passado. E nesse momento me dei conta de que o filme de Falabella atingira o seu objetivo.

Para quem se acostumou a ver o ator, dramaturgo, diretor e apresentador do Vídeo Show criando seus personagens cômicos em produções como Sai de baixo, Toma lá dá cá e Polaróides urbanas - seu primeiro longa para a sétima arte - achei este novo trabalho de um requinte e de uma ousadia raras vezes vista no cinema nacional, que muitas vezes adora perder tempo com produções meia-boca e de gosto duvidoso. Em suma: ele acertou em cheio contando uma história simples, sem arroubos ou grandezas. E nosso audiovisual anda precisando de mais opções como esta!

Tempos atrás, o vi dando uma entrevista, não me recordo exatamente em que canal de tv ou programa, em que ele dizia ter a pretensão de transpor algumas de suas próprias peças para o cinema, dentre elas Império (que eu adoro). Espero ansiosamente que ele cumpra a promessa, pois me deparei com um artista seguro, que sabe o que quer e conhece bem o seu próprio trabalho. E é de pessoas assim que se faz uma grande arte. 

P.S: pouquíssimas vezes eu vi um elenco feminino tão bem escalado quanto aqui. Carmen Maura (eterna musa Almodovariana), Dira Paes, Carol Castro, Daniele Winits, Maria Eduarda de Carvalho, Maria Paquim, Georgina Barbarossa, Camila Vives... O cast é um colírio para os olhos, tanto pela beleza quanto pelo talento. E só mesmo quem for muito louco - ou gostar demais de perder tempo com as bobagens audiovisuais do Leandro Hassum e da Ingrid Guimarães - vai perder a chance de ver essa produção que é uma bola fora da curva dentro do nosso cinema. E este que vos escreve adora bolas fora da curva.   


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