Eu aguardei até os 44 minutos do segundo tempo - como costumam dizer os comentaristas de futebol - para escrever sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. E por um motivo extremamente importante: porque vivemos uma época de revisões críticas no país como nunca antes na história e muitos intelectuais acreditam piamente que a Semana que marcou época no país e fundou as bases do que viria a ser conhecido como modernismo é alardeada em excesso e não teve um impacto tão nacional quanto muitos cidadãos pensam.
E isso ficou ainda mais claro para mim ao assistir a entrevista do jornalista e crítico cultural Ruy Castro - autor dos extraordinários O anjo pornográfico, Estrela Solitária e Carmem, dentre outras obras-primas do gênero biográfico - para o programa Roda Viva na TV Cultura. Ele esmiuçou de forma soberba e sem deixar de ouvir atentamente seus entrevistadores (mesmo quando eles discordavam em muitos aspectos) o que foram aqueles cinco dias, de 13 a 17 de fevereiro de 2022, de arte e revolução no Teatro Municipal de São Paulo.
A Semana de 22 aproveitou-se, logicamente, da industrialização e da migração maciça de estrangeiros para São Paulo na década de 1920 (para muitos, o prenúncio do estado se tornando o maior parque industrial do país) e desejava urgentemente quebrar o conservadorismo vigente no período, promovido pelo parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica. O que aqueles homens e mulheres visavam era um novo ponto de vista estético e uma independência cultural. Em outras palavras: o fim derradeiro do status quo como o conhecíamos até então. E eles conseguiram.
E a influência das vanguardas europeias disponíveis na época (cubismo, futurismo, surrealismo etc) influenciaram essa postura arrojada e visionária. Era preciso urgentemente romper com o tradicionalismo que mantinha o Brasil - na visão desses artistas - preso a um passado que não tinha mais o que acrescentar. Eles (e elas) acreditavam que se o país permanecesse naquela toada nunca atingiria o seu real desenvolvimento como nação.
Contudo, relido um século depois o que foram aqueles dias, muitos acreditam que a semana não foi um fenômeno nacional, muito menos agregador de todos os setores da sociedade. Ele era, isso sim, um fenômeno urbano e eminentemente paulista. E a classe elitista da época não apoiou o evento, ao contrário do que muitos pensam. O que, lógico, vem gerando muitas reações negativas por parte de certos segmentos da classe intelectual que preferem acreditar que o grupo abraçou o país como um todo.
O grupo em questão era eclético: entre escritores (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Manuel Bandeira - que não participou fisicamente da semana -, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho), pintores (Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Cândido Portinari), escultores (Victor Brecheret, Hildegardo Veloso), músicos (Heitor Villa-Lobos, Ernani Braga, Guiomar Novaes) e arquitetos (John Graz, Antônio Moya, Georg Przyrembel) via-se claramente a intenção de criar uma arte nacional, com cara nova, desapegada dos ideais moralistas e enfadonhos - segundo eles - do país de então, mesmo que não seguissem um conceito único. Eram, em suma, vozes distintas buscando um caminho que levasse o país à modernização.
Desse período fértil, engajado e reacionário surgiram marcos da nossa literatura bem como das artes plásticas. Paulicéia Desvairada, livro de Mário de Andrade e Abaporu, tela de Tarsila do Amaral, são dois gigantescos legados dessa época, bem como o manifesto Pau-Brasil (1924) e o movimento antropofágico (1928). Entretanto, há uma crítica feroz que é feita atualmente ao fato de que a maior parte do que conhecemos, em termos de registro histórico, sobre a Semana de 22 foi escrita por Oswald de Andrade de forma tendenciosa.
E por que estou mencionando isso? Porque na mesma entrevista concedida por Ruy Castro ele menciona que Oswald acabou se notabilizando como um grande adulterador de fatos e datas desse período. Logo, como acreditar nessa herança cultural, ainda mais num país que atualmente luta arduamente para desmentir seu passado?
Enfim... O principal legado deixado pela Semana de Arte Moderna nesses 100 anos é, não a festa e o ato celebratório em si (muitas homenagens serão feitas nessa semana, seja via televisão ou em museus e centros culturais), e sim a necessidade de perseguirmos a história que ela nos deixou e procurar por incongruências e distorções (coisa que, aliás, nosso país sempre adorou administrar). Portanto, nos preparemos para ter senso crítico e duvidar de muita coisa que será publicada sobre o tema ao longo do ano. Sim, vai ter muita gente tentando se apropriar do centenário para "inventar a sua versão dos fatos" e isso é extremamente perigoso e descartável, principalmente para quem - como eu - adora ler e ficar por dentro dos fatos.
E ao fim deste humilde artigo-homenagem, ainda me fica à mente uma curiosa questão: se hoje estamos rediscutindo a Semana de 22 da forma como estamos, e pelo que a sociedade vem se mostrando ao longo do século XXI, imagina então o que irão falar no próximo centenário, em 2122? E esta resposta eu não só não tenho como dar, como certamente não estarei aqui para presenciar tudo isso. O que, cá entre nós, é uma pena, pois a minha curiosidade é imensa e inesgotável.
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