O ano de 2020 nem começou direito e o escritor americano Jason Reynolds conseguiu. Me destruiu. Por inteiro. E com um livro que a priori parece simples: uma narrativa em versos. Sua desculpa para escolher esse formato? Ele lembra o rap que seus conterrâneos da periferia de Washington ouvem o tempo inteiro. E trata-se de uma história devastadora, como a de tantos homens como Jason, que passa longe da alcunha de privilegiado nesse sistema torpe de cartas marcadas.
O livro em questão é Daqui pra baixo. E a narrativa dura o tempo que seu protagonista leva para descer de elevador. Isso mesmo. Um reles elevador.
Will, o homem a quem devemos seguir os passos, está devastado. E com razão. Ele testemunhou o assassinato de seu irmão mais velho, Shawn. O homem que mais idolatrou em toda a sua vida. E de sua devastação inicial nasce um ódio desmedido que o fará acreditar que a única maneira de seguir em frente é assassinando Riggs, o homem que o matou, membro da gangue Filhos da noite.
Todavia, como toda jornada em busca de vingança, a decisão de Will será atravessada por pessoas que trarão nova luz aos fatos, e ele precisa ouvir essas pessoas antes de ir às últimas consequências. E são essas pessoas, que entram e saem do elevador a cada andar, que fazem do livro um ensaio sobre a dor, sobre o seguir em frente depois de ter perdido tudo o que havia de mais significativo em sua vida.
Daqui pra baixo é, a meu ver, uma grande colcha de retalhos, repleta de reminiscências amargas de um passado que sempre foi fragmentado. É difícil para Will falar em família de forma tradicional. Nada é tradicional na vida de quem vive naquela periferia. Tudo é luta, é revolta, é um convite constante ao desapego. Como criar laços num lugar onde a vida está sempre apontando uma arma, uma faca para a sua jugular, um dedo acusador? O que sobra de verdadeiro para essas pessoas, na maioria das vezes, é aceitar os fatos como são ou fazer os outros se sentirem igual a você.
Daí as três regras básicas: não chorar, não dedurar ninguém e se vingar. De preferência, o quanto antes.
Segundo o autor a história se passa em meros 60 segundos e Will já tomou sua decisão. Sua arma está presa às costas, falta apenas encontrar o miserável que destruiu a sua vida. Porém, além do que se vê no texto, brilhante, coeso, curtíssimo, desses que se lê numa sentada, no máximo em uma hora, o que encontramos é um mar de dúvidas, de lamentações, de histórias mal contadas, de vidas partidas, de mortes escolhidas a dedo. E isso, meus caros leitores, nunca é fácil de digerir.
Se ano passado eu reclamava do caminho que a literatura vinha tomando - cheguei a mostrar meu descontentamento direto com um "livro" do escritor Alejandro Zambra -, posso dizer que esse ano, ao contrário, já começou em grande estilo.
O romance de Reynolds é duro, porém necessário, principalmente para aqueles que não entendem a vida de quem não tem privilégios ou não nasceu com o cu pra lua. Cansei dessas pessoas que acham que morar nos EUA é viver em Miami, Orlando, Nova York, etc, e esquecem que no mesmo país existem regiões como o Bronx e o Harlem, deficientes de tudo.
Precisamos acordar dessa cegueira engajada na qual estamos enfiados. Precisamos olhar a América além da conotação de "a grande nação" (que, honestamente, ela nunca foi). E acredito que Daqui pra baixo seja um excelente começo para aqueles que procuram respostas além do óbvio.
E quem quiser saber mais, que corra agora à livraria mais próxima. Antes que o livro seja recolhido das prateleiras. Até porque, com o atual governo, castrando, desmentindo tudo, chamando o racismo de nutella, vai saber o que vão fazer com uma obra dessas por aqui!
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