O cinema, além de reprodutor da realidade, volta e meia vive da fama de grandes nomes que fizeram da indústria cinematográfica o que ela é hoje. Há cineastas que conseguiram transformar seus sobrenomes em gêneros próprios, emocionando milhões de espectadores ao redor do mundo. É o caso de gigantes como Fellini, Bergman, Kurosawa, Rosselini, Almodóvar, Truffaut, Godard, etc etc etc. Contudo, ninguém transformou essa faceta num negócio lucrativo tão bem quanto hollywood. A meca do cinema é famosa por construir legados que ultrapassam gerações e gerações. Spike Lee, John Cassavetes, Sam Peckinpah, John Ford, Steven Spielberg, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e tantos outros são provas vivas disso.
Há, porém, um outro lado da sétima arte ao redor do mundo que normalmente é boicotado ou varrido para debaixo do tapete por clás de moralistas e demagogos (e eles sempre tentaram catalogar o cinema à sua imagem e semelhança). Falo dos cineastas marginais, do universo underground que também merece o seu quinhão de estrelato e reconhecimento, seja por sua coragem de enfrentar o star system, seja pela ousadia de incomodar com temas polêmicos, que normalmente agridem aos olhos e ouvidos mais puritanos.
E desse segundo grupo é louvável, como fez o diretor Craig Brewer no inacreditável Meu nome é Dolemite, falar de artistas como Rudy Ray Moore. Recentemente, durante uma entrevista a um talk show para divulgar o longa, o comediante Eddie Murphy - que interpreta Rudy no filme - o chamou de "um guerrilheiro do cinema". E não é exagero, não! O cara é realmente um fenômeno se levarmos em consideração o que ele conquistou.
Rudy Ray Moore tinha tudo para não ser ninguém. Vinha de uma carreira praticamente esgotada no stand up comedy, e muitos acreditavam que ele insistia de teimoso que era. Mas ele não desistiu e viu na possibilidade de trazer para o palco as piadas sujas que ouvia nas ruas um filão. Dito e feito. Tornou-se o grande nome do humor adulto na América.
Entretanto, não satisfeito, decidiu: vou produzir meu próprio longa-metragem. E após convencer o ator D'Urville Martin (Wesley Snipes) a dirigi-lo, engendrou uma das maiores empreitadas da história do cinema americano. Mas assim como seu contemporâneo Melvyn Van Peebles e a galera da Blaxploitation teve que enfrentar os tubarões dos grandes estúdios e o eterno corporativismo do setor para realizar o seu maior sonho.
O que mais me interessou no projeto foi o fato de estarmos falando de um marginal do cinema, de um homem que teve de, muitas vezes, mudar de trajetória, alterar seus planos originais, para atingir seu objetivo final. É o exemplar perfeito do filme sobre como fazer um filme quando você não se encaixa no perfil do diretor para aqueles que financiam filmes. Entenderam? É por aí.
O que vemos nas quase duas horas de projeção é um grande convite a conhecermos o mundo dos excluídos, aqueles que a indústria não quer ver no tapete vermelho, pois não atendem aos interesses e necessidades do mercado (na visão deles, é claro!). E mesmo assim eles insistem, arrombam portas, desmentem críticos, viram a estrutura do mercado de cabeça para baixo.
Pessoas como Rudy Ray Moore não precisam de reconhecimento da Academia, muito menos de festas em sua homenagem no cultuado Governors Award. Não, não, não! Eles conseguiram coisa muita maior do que isso. Eles derrubaram muito mais do que a quarta parede (assunto que volta e meia povoa a cabeça de milhares de críticos aqui no Brasil). E cada dia mais eu tenho certeza de que a indústria cinematográfica, e não somente a hollywoodiana, precisa de mais pessoas como ele.
A sétima arte anda carente de coragem, principalmente na América, que se rendeu a formatos, franquias, remakes, etc, de pessoas que não temam uma indústria, um sistema político ou mesmo fanáticos religiosos (algo que temos vivido atualmente em nosso país). E que bom seria se todo ano, ao invés de um novo Michael Bay ou um novo James Cameron, pudéssemos nos deparar com mais artistas autorais ou, ao menos, com mais culhões para apontar as feridas da sociedade e do mundo como um todo!
Para muitos Rudy talvez não passe de um homem oportunista, que forçou a barra para chegar lá, que só queria jogar na cara dos brancos o quanto podia também. Eu vejo além disso. Vejo-o como resistência, como alguém que deveria produzir um legado no mercado cinematográfico. Podem ter certeza: Não haveria Jordan Peele, Steve McQueen, Barry Jenkins e Ryan Coogler (e cito aqui apenas os grandes diretores negros da atualidade) não fossem homens à frente do seu tempo como Rudy Ray Moore.
E como é bom saber que essa história de perseverança e luta foi contada para as próximas gerações. Obrigado!
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