terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Ser pai não é mole, não!!!


Conhecem aquela expressão "ser mãe é padecer no paraíso"? Então... Para quem acha que ser pai é muito mais fácil - mentalidade essa, por sinal, enraizada em nossa cultura que adora vender a imagem de que pai é qualquer um, mãe é uma só -, vocês precisam ler (e reler várias vezes) O guia do pai sem noção, do quadrinista canadense Guy Delisle. 

Delisle desta vez, diferentemente de seus trabalhos anteriores, que têm um caráter meio autobiográfico, meio jornalismo de guerra (e cito aqui como dica para leitores interessados no artista as obras Pyongyang e Crônicas birmanesas), volta-se para sua relação com os filhos pequenos, Louie e Alice. 

Um aviso importante: para quem está acostumado a páginas hipercoloridas, cheias de imagens sobrepostas e desenhos sofisticadíssimos, esqueçam esta obra. O volume é todo desenhado em preto e branco e mesmo as ilustrações não tomam toda a página. É um trabalho minimalista nesse sentido. O que está em jogo aqui é a relação pai e filho no que ela existe de mais engraçada e, por vezes, assustadora. Portanto, fãs de autores como Frank Miller, Guido Crepax, Will Eisner, procurem um outro caminho...

As histórias são curtas, mas cheias de uma delicadeza e uma ironia própria do tema. Afinal de contas, mesmo não sendo pai reconheço a dificuldade de se criar filhos numa sociedade e num mundo louco como esse em que estamos vivendo! 

Entre as muitas e engraçadas histórias, referências ao natal (e, claro, como o papai noel entrega os presentes sem ser visto), ao ratinho do dente (uma versão canadense da nossa fada do dente), filhos engolindo caroços de frutas e ficando apavorados (o irmão mais velho chega a assombrar a irmã caçula, dizendo que nasceria uma árvore dentro dela) e até mesmo um humor ácido envolvendo ladrões de crianças (talvez o momento em que o autor mais lembre suas publicações passadas!). 

Fiz um paralelo interessante entre O guia do pai sem noção e a série Diário de um banana e vejo ambos os trabalhos como complementares. A diferença é que aqui a presença paterna é mais direta no sentido de educar os filhos. Já na série Diário de um banana, falava do despertar da infância e das difíceis escolhas feitas pelo próprio filho. Talvez o personagem da série se sentisse mais à vontade com um pai como Delisle, louco e fora do tom como só ele. Ou talvez eu esteja mesmo é enlouquecendo (algo que sempre acontece quando leio graphic novels e outros materiais gráficos). 

Em alguns vídeos no you tube e resenhas de quadrinhos li que esta série já se encontra no terceiro volume no seu país de origem (e espero, sinceramente, que os outros exemplares também cheguem ao Brasil). Digo isso porque vejo uma saturação muito grande do universo super-herói nas livrarias, e estou sempre à procura de um material que fuja do óbvio imposto pela Marvel e a DC nos últimos anos. 

Os fãs do que eu gosto de chamar de diferente - e ser diferente hoje em dia tornou-se uma tarefa quase impossível! - vão ficar encantados com o resultado deste O guia do pai sem noção. Uma obra gráfica que me fez pensar inclusive no meu próprio pai, que também foi um homem longe do convencional e que sempre me incentivou a encarar a vida de frente, sem rodeios e sentimentalismos. 

Se eu pudesse classificar esse álbum em poucas palavras, diria: "trata-se de uma grande boia salva-vidas para pais de primeira viagem que não fazem a menor ideia de por onde começar a educar os filhos". E tudo isso contado de uma maneira hilária, mas sem perder o didatismo da relação entre pai e filho.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

A arte é sempre perigosa


Arte e mercado, assim como água e óleo, não deveriam se misturar sob hipótese alguma. Infelizmente, graças a nossa malfadada e gananciosa humanidade esta é uma máxima que se recusa a ser seguida. E por conta disso, volta e meia nos deparamos com deslizes e abusos frequentes cometidos neste setor. O que é uma pena, tanto para fãs de artes plásticas (caso específico deste filme que mexeu profundamente com a minha cabeça), quanto para os artistas, que deveriam pensar mais em produzir um legado cultural significativo. 

Com Velvet Buzzsaw o diretor Dan Gilroy se propõe a realizar uma sátira sobre o mundo das artes plásticas e seus caminhos perniciosos. Na verdade, o diretor gosta de mostrar o lado B de segmentos conturbados de nossa sociedade. Ele já havia feito o mesmo quando denunciou os abusos praticados pela imprensa sensacionalista em O Abutre. Porém aqui ele reduz o tom, insere um senso de humor um tanto negro nas entrelinhas do roteiro (que somente os espectadores mais inteligentes e refinados de fato perceberão!) e não aponta seu dedo acusador para uma pessoa em especial. 

Aqui, todos têm a sua parcela de culpa no que tange a transformar a arte numa reles mercadoria milionária. Seja o crítico de arte - figura que nos últimos anos ganhou uma conotação exagerada de astro pop - Morf Vanderwalt (Jake Gyllenhaal), sejam os pintores "de vanguarda" Piers (John Malkovich) e Damrish (Daveed Diggs), seja a galerista e cafajeste de carteirinha Rhodora Haze (Rene Russo), dentre tantos outros oportunistas. 

Neste mundo cinza e cruel, ávido por dinheiro, todos traem todos, todos vão para cama com todos, todos fazem de tudo para arrancar até o último centavo uns dos outros. E isso é encarado com a maior naturalidade. Sob certo prisma esta atitude é até louvável. Tolo é quem trabalha honestamente nesse meio e visto como "alguém que nunca irá de fato subir na vida". E essa é a única prerrogativa válida dentro do jogo de gato e rato a que se propõem os personagens. 

O surgimento de uma vasta obra visionária e perturbadora, produzida por um pintor desconhecido que acaba de aparecer morto no prédio onde mora é o mote necessário para que esses abutres (sim, eles também estão por aqui e não somente produzindo notícias falaciosas) disputem a dedo suas telas. Porém, esse reles resumo não é suficiente para explicar a sanha por poder desses homens e mulheres que se vendem como descobridores de talentos. 

Talvez os crimes de cunho sobrenatural que pairam sobre todos aqueles que tentaram transformar a obra vanguardista achada em mero produto ofusquem à primeira vista a intenção dos espectadores de procurarem uma razão para tanto oportunismo e tantos seres humanos obcecados por fama e poder. Contudo, veja a questão da sobrenaturalidade aqui proposta como um grande disfarce ou cortina de fumaça para que não vejamos as reais intenções da película (e do discurso ácido de seu diretor). 

Assim como vi em Mera Coincidência, de Barry Levinson, a guerra ser transformada numa grande fábula para atender às necessidades de uma classe política cínica e de moral deturpada, vejo em Velvet Buzzsaw uma forma de seu realizador mostrar que a arte como a conhecemos até então (e tornada magnífica por nomes como Van Gogh, Picasso, Cézanne, Da Vinci, etc) está com os dias contados porque perdeu espaço para um discurso midiático que torna tudo reles, banal, efêmero. E o resultado disso é que a arte pura, fidedigna, voltada ao engrandecimento cultural, dá lugar a uma mentira, a um "Era uma vez.." sem sentido, a um desejo de chocar, aplaudir ou detestar (como se esses fossem os únicos sentimentos possíveis a qualquer pessoa que se deparasse com uma tela).

Entre disputas sexistas, o rancor e a inveja produzidos por artistas que não estão mais no auge de sua capacidade criativa e não admitem serem superados por uma nova voz ou talento e a eterna correria por audiência,  exclusividade e originalidade (algo que, honestamente, eu não tenho mais presenciado tanto assim nos últimos anos) há a velha máxima de que o poder não deve ser questionado de forma alguma. A própria galerista Rhodora avisa a seu rival, o crítico, que "a arte sempre foi perigosa" e tal aviso é fundamental para que possamos entender este universo sórdido, baseado única e exclusivamente em números. 

Em outras palavras: o que vale é chamar a atenção e produzir cifras exorbitantes. Talento é coisa do passado, de quando a arte estava servida de bons artistas, homens de real visão, dispostos a dedicarem uma vida a seus trabalhos.  

As últimas cenas do longametragem parecem deixam claro ao espectador a ideia de que o lugar da arte não é, necessariamente, nas galerias e nas mãos de marchands e críticos inescrupulosos. Pelo contrário... A verdadeira arte acontece em pequenos gestos, está sendo vendida nas ruas a preço de banana e talvez nunca cheguemos a dimensionar o seu real valor monetário. Até porque não acredito no artista quando seu trabalho está relacionado à expressão "eu quero ficar rico e famoso". E provavelmente este é o grande legado proposto por Dan Gilroy com seu filme. 

P.S: e teve gente na internet chamando esta película de brega. Ah Esses espectadores de meia tigela que só aplaudem e acham sensacional blockbusters de heróis, zumbis e criaturas fantásticas! Nunca fugirão de suas zonas de conforto, de seus gostos repetitivos e de sua cultura deficitária.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Um homem de culhões


"Os grandes homens partem e a saudade é o que nos fica". Ouvi isto certa vez de um professor e acredito que a frase cabe como uma luva para este sofrido artigo.

Como explicar a morte de um homem da imprensa único, diferente da grande maioria da classe jornalística, mais interessada em chamar atenção para si mesmo do que noticiar fatos e mazelas do país? Honestamente... Impossível. A morte torna qualquer explicação impossível. 

De factual mesmo apenas uma verdade: faleceu o jornalista Ricardo Boechat. 

Ligo a tv e a notícia sobre o queda do helicóptero que o transportava já está adiantada. Meus olhos paralisam na tela sem entender absolutamente nada. A âncora do programa Estúdio i da Globo News diz estar chocada, estarrecida, sem palavras. E ela não é a única. Não é de hoje que acompanho na internet as matérias e o programa do qual Boechat participa. Esse sim era um mito. 

Em meio a tanta imprensa marrom, sensacionalista, mais preocupada com questões levianas, Boechat me ensinou que não se faz jornalismo de verdade sem incomodar interesses. E ele incomodou. Muitos. Que o digam setores da Igreja evangélica, esse império da fé mercantilizada, regado a ouro e ignorância!

Ele dizia o que pensava, doa a quem doer. Para muitos defensores da moral hipócrita "quem fala o que quer, ouve o que não quer", um crime inafiançável. Para ele, Boechat, questão de respeito a profissão. Profissão essa, por sinal, que nos últimos anos vem sendo tão maltratada. 

Por todas as emissoras e veículos por onde passou (e não me cabe aqui contar a história dele para fãs de comunicação e jornalismo que deveriam ter a obrigação de conhecer a sua história grandiosa) falou a gregos e troianos, feito raro. 

Não era de se posicionar como bajulador de segmentos político-partidários ou qualquer outro grupo de interesse. Quando acusava, acusava mesmo. E acusou muito! Recentemente cobrou uma postura mais enérgica da Vale e do Flamengo sobre as tragédias recentes em Brumadinho e no CT do Ninho do Urubu. Grande Boechat! 

Em seu funeral uma multidão de amigos e familiares, até mesmo pessoas anônimas, fãs de seu texto preciso e denunciatório. Que tristeza a saudade por quem parte! Nos despedimos de um grande homem e não nos demos conta de fato. Quem sabe com o passar dos dias, semanas, não acordemos dessa letargia que vem nos governando nos últimos 4, 5 anos, impondo limites, verdades, e caiamos na real. 

Perdemos um sobrevivente da mídia, de um tempo em que imprensa era sinônimo de reportar, denunciar, esclarecer e não fazer festa e sensacionalismo com qualquer assunto. Ricardo Boechat era um homem de culhões, na melhor expressão do termo. Algo que anda em falta nesse Brasil repleto de bunda-moles e tendenciosos. E agora? Como é que fica? Não fica. Infelizmente. 

Descanse em paz, mestre... Ah! E você não tem ideia da falta que vai fazer por aqui!!!

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

O fim da literatura?


Não é de hoje que presto atenção nas prateleiras de lançamentos das grandes livrarias e vejo produtos de baixo calão, de quinta categoria, que não merecem sequer receber a alcunha de livro. E digo mais: a situação piorou - e muito! - depois da ascensão da chamada literatura de auto-ajuda. Livros fofinhos, extremamente chapa brancas, com dizeres positivos em excesso, regras para seguirmos nossas vidas da maneira mais aprazível (e hipócrita) possível. Isso quando não têm capas emborrachadas e mais ilustrações do que texto. Enfim, dirão alguns, a nova "literatura". 

Essa semana me deparei com um desses "livros", que me fez pensar no futuro do mercado editorial e também na possibilidade da literatura de fato estar distinta. 

Eu sei, eu sei... Alguns dirão: "você está exagerando!". Mas algo dentro de mim me faz pensar que grandes nomes da nobre arte literária (entre os meus favoritos: Umberto Eco, Dostoiévski, Nelson Rodrigues, Charles Baudelaire, Jack Kerouac, etc) retorceriam na cova caso de deparassem com um exemplar de Múltipla escolha, de Alejandro Zambra. Há muito tempo uma obra "literária" não me incomodava tanto quanto esta aqui. 

Múltipla escolha é inspirado - segundo palavras do próprio autor - numa prova de aptidão acadêmica (algo correspondente ao nosso vestibular) usada no Chile durante os anos de 1966 e 2002. E o resultado prático dessa "inspiração" é um livro que mais parece um questionário do que qualquer outra coisa. 

Quando moleque e estudante deficitário de matemática (que sempre fui) havia um livro que elegi como meu pai dos burros na matéria. Ele se chamava Questões de matemática. Importante que se diga: ele me salvou da reprovação na disciplina algumas vezes. Pois bem... Durante toda a leitura de Múltipla escolha me peguei pensando naquele velho pai do burros, tamanho o didatismo de sua narrativa. Isso deveria ser um bom sinal, não é mesmo? Infelizmente, para os amantes da boa literatura nacional ou estrangeira, não é. 

O livro de Alejandro Zambra (não consigo classificá-lo em nenhuma categoria: conto, romance, crônica, nada) é uma sucessão de questões sobre gramática, chegando a se confundir com aquelas apostilas que os estudantes de concursos volta e meia encontram nas bancas de jornal. Desde plano de redação até compreensão de texto, passando pelo uso de conjunções, há perguntas para todos os gostos. Me senti, de verdade, fazendo uma prova do ENEM aos quarenta e tantos anos. 

O problema: o que faz um livro desses em meio a grandes autores como João Gilbert Noll, o falecido Amos Oz, Tom Wolfe, Férrez e outros nomes de peso, enfurnado numa prateleira de lançamentos, com direito a destaque no PDV?

O primeiro pensamento a vir à minha cabeça foi: é o fim da literatura como nós a conhecemos. E ficou fácil para mim naquele momento entender a crise pela qual passam as livrarias, com vendas baixíssimas e fechamento de lojas. 

O mercado editorial rendeu-se de vez à mediocridades, excentricidades em fim, autores sem noção e narrativas que parecem tudo, menos ficção. Difícil saber o que sobrará para nós, leitores de fato e não unica e exclusivamente de blockbusters de temporada, livros de colorir e exemplares escritos por "autores" que não possuem sequer experiência de vida, que dirá boas ideias. Meus amigos leitores que leem meus artigos e desabafos aqui neste canal, estamos fodidos e realmente mal pagos!

Talvez tenha chegado àquele momento da minha vida em que reler os clássicos tornou-se a única opção viável. Ou talvez (e talvez é algo que não falta no discurso da atual sociedade em que vivemos) seja melhor procurar outras opções não-literárias. Caso a segunda opção seja mais interessante, resta saber também onde encontrá-las, tendo em vista que o atual cenário cultural anda também um tanto confuso e perdido. 

Chego ao fim deste (o quê? Artigo? Resenha? Desabafo? Estou tão perdido quanto o livro Múltipla escolha) pensando no que a sociedade se tornou como um todo e o que chamamos de relevante atualmente. Certamente não o livro de Alejandro Zambra. E muito menos o que vem sendo classificado como literatura nos últimos anos. 

Então, qual o próximo passo? Haverá um próximo passo? Aceito respostas sinceras e soluções possíveis na caixa de comentários...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

O preconceito está nos pequenos detalhes


Era uma amizade que tinha tudo para não dar certo...

De um lado, Tony Lip (Viggo Mortensen), um iltalianão do Bronx, brucutu até a alma, que não acredita que com diálogo conseguimos enfrentar as barreiras do mundo e por isso usa, quando o necessário, os punhos. Que o diga quando está trabalhando como segurança na boate Copacabana. Seu único porto seguro: a esposa Dolores (Linda Cardellini), os filhos e a família, sempre unida nos bons e maus momentos. 

Do outro, o Dr, Don Shirley (Mahershala Ali, fantástico!), um homem negro, bem apessoado, estudado, de formação clássica, exímio pianista, mas divorciado e afastado dos poucos parentes ainda vivos por decisão próprio. Para muitos, um ermitão que prefere viver sozinho, ajudado por seu auxiliar; mas para que os conseguem ler as entrelinhas, um homem que luta com seus próprios demônios e escolhas infelizes, para chegar ao dia seguinte. E enfrentar uma nova batalha. 

A vida de ambos se encontra quando Doc Shirley precisa fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos (em plena época de racismo exacerbado no país) e precisa de um motorista. A princípio, Tony não se encaixa no perfil que ele procura, mas há algo em sua personalidade que cativa o pianista e ele decide contratá-lo mesmo assim (chegando a "pedir autorização" à esposa dele). 

O resultado? Um road movie completamente inusitado, fora do óbvio, e marcado por um detalhe desagradável que persegue a jornada de ambos por toda a estrada: o preconceito. 

Green Book: o guia, do diretor Peter Farrelly (mais conhecido pelo público brasileiro por suas comédias  Debi e Lóide e Quem vai ficar com Mary?) é o apogeu de um cineasta que eu acreditava estar fadado à sorrisos e gargalhadas fúteis e fáceis. Estava enganado, para minha surpresa. O filme não somente é magnífico como também é um dos grandes cotados a faturar o Oscar de melhor filme desse ano (e, cá entre nós, com reais chances de vitória). 

Durante toda a viagem de Tony e Doc Shirley (que dura oito semanas) o que mais chamou a atenção deste crítico de fim de semana que vos fala não foram as apresentações sublimes do pianista ou mesmo a trilha sonora impecável, com direito a Little Richard e até mesmo a rainha do soul, Aretha Franklin. Não, meus caros amigos e leitores! O que mais me fez refletir foi a sensação de incômodo causada pelo fato de que não é fácil ser negro nos EUA (no mundo em geral, mas na terra do Tio Sam em particular é um tapa na cara!). 

A todo momento somos invadidos por uma blasfêmia ou um desrespeito ou uma ofensa disfarçada de piadinha barata. E Doc Shirley precisa andar cautelosamente em meio a esse gelo fino se quiser concluir sua agenda atribulada. Da parte de Tony, que também é malvisto em alguns setores da sociedade por ser imigrante, isso é suavizado em alguns momentos por pertencer à etnia certa. Mas nem ele está livre de rótulos e estereótipos. E até mesmo ele, antes da viagem, não era a pessoa ideal para se debater sobre preconceito racial. 

Um homem negro sentado no banco de trás do carro enquanto um homem branco dirige? (Muitos sentirão vontade de ver no longa uma espécie de Conduzindo Miss Daisy às avessas). Encher auditórios com plateias entusiasmadas e, no entanto, não poder usar o mesmo banheiro da plateia ou mesmo ter direito a um vestiário adequado? Mais: sequer poder almoçar no mesmo restaurante que eles? Sim, Green Book é um soco na cara (e no ego) dos demagogos que acham que racismo "é coisa da sua cabeça, meu amigo! Há muito de exagero nisso tudo". 

Terminada a turnê e chegado o natal (e ai de Tony que não chegasse em casa para a ceia de natal com a família!), fico perdido entre a desilusão de vermos que passados tantos anos nada mudou tanto assim e Orgãos supremacistas como a Ku Klux Khan, por exemplo, estão ganhando força novamente e o direito a banir "os seres inferiores" e o orgulho de ver um tema desses ser mostrado de forma meticulosa e inteligente, sem exageros (algo que seria impensável no cinema hollywoodiano de cinco, seis décadas atrás). 

Green Book pode até não ganhar o Oscar desse ano, mas que ele certamente já fez mais pela história dos EUA dos últimos anos do que muito político falastrão ou medida provisória para combater a desigualdade social, decreto, lei, etc, ah! disso não tenho a menor dúvida. 

Por quê? Porque não é todo dia que prestamos atenção aos pequenos detalhes. E eles são fundamentais. Pelo menos, se você almeja se tornar um ser humano melhor.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Uma aula de etnia


Falar de racismo? No Brasil? Não dá. Não dá mesmo. A hipocrisia não deixa. De jeito nenhum. Negro é outra coisa no Brasil. Não é gente. É objeto. Não tem direitos, só deveres. Não deveria existir. Só faz mimimi. Reclama mais do que qualquer coisa. Negro é foda, é problema, é confusão na certa, quando não caga na entrada, caga na saída, quando não caga também durante. Quero longe de mim. Negro tinha que morrer. Mas aquela mulata filha do vizinho é um espetáculo, hein!!!

O sentimento que me fica na cabeça ao término do espetáculo teatral Contos negreiros do Brasil é proporcional a essa distorção de valores. Somos racistas nesse país até a medula dos ossos. Mas jamais admitiremos... Nem para nós mesmo. 

A peça, que é inspirada no livro homônimo do escritor Marcelino Freire (que, aliás, recomendo para os fãs da boa literatura brasileira), é uma mistura de teatro, documentário e aula didática sobre esse terrível sentimento que persegue os brasileiros há décadas, o racismo. 

Entro no teatro e logo de cara a primeira surpresa: faço parte da minoria branca na plateia, Muitos no meu lugar se irritariam, ficariam intimidados, mas eu não. Gosto do desafio de estar em menor número. No palco, três pilastras (que durante o espetáculo serão utilizadas como quadros-negros escolares) me fazem pensar, na maneira como estão dispostas em cena, em Stonehenge, um símbolo da revolução de tempos passados. Sei que estou delirando, e sempre faço isso quando vou ao teatro, procuro por referências distantes e próximas do texto que está sendo montado, mas a correlação à primeira vista me deixa esperançoso sobre o teor da peça. Em outras palavras: me deixa agradavelmente ansioso. 

Perto de mim, senta-se uma moça carregando seu filho de colo (filho que chega a ser amamentado durante o espetáculo) e ao meu redor, várias mulheres exibem orgulhosas seus cabelos afro, fazendo menção ao quilombolas (tema que está na moda atualmente no país). Mais uma vez repito: estou ansioso. O espetáculo promete...

O primeiro ator do elenco aparece, Rodrigo França, ator, cientista político, doutorando, um homem negro inteligente. Escreve dizeres em uma das pilastras, apresenta-se e começa a narrar fatos sobre o papel do negro no Brasil e a maneira como a raça vem sendo vilipendiada com o passar dos séculos. Espectadores atrás de mim, como toda aula no país que se preze pois seus exemplares, dormem. Isso mesmo: dormem! Eu não consigo. Estou mesmerizado com a aula-espetáculo (ou será melhor chamar de espetáculo-aula?) 

Em um de seus álbuns mais famosos, a cantora Elza Soares cantava que "a carne mais barata do mercado é a carne negra". Estava coberta de razão. E certamente teria gostado - e muito! - da peça. 

Em uma mísera hora, acreditem se quiser, quatro atores (Rodrigo, Valéria, Marcelo e Milton) revezam-se no palco, exibindo, denunciando e alardeando as práticas mais cafajestes já perpetradas contra a comunidade negra nessa terra outrora chamada de "país do futuro". Realidade essa que só vem piorando nos últimos anos, por conta da onda de conservadorismo que rege o país. O quarteto mistura à língua portuguesa tão massacrada do dia-a-dia o dialeto iorubá (dialeto esse que também é cantado durante a apresentação por parte da plateia, que conhece o repertório de cor). 

Estatísticas aterradoras são apresentadas, evidenciando a dura batalha que encaram homens e mulheres negras no seu dia-a-dia de provação, além de áudios (fiquei imaginando se viessem acompanhado das imagens!) desumanos, sobre a eterna mania dos brancos em desqualificar a classe, por considerá-la não merecedora de nada além da exclusão, do ostracismo, do abandono. O áudio da jovem branca que acusa os cotistas das universidades públicas de vagabundos é assustador de tão direto, maldoso e covarde...

Entre as citações e entrelinhas que compõem a trama insólita e poderosa por si só, um jovem - pelo que entendi, amigo dos atores - atrás de mim grita "Marielle Presente!" com paixão e ao final da apresentação um dos atores fala com orgulho "seremos resistência!!!" enquanto sua parceira de cena, dançarina de formação, exibe seus dotes numa embolada africana. Ao fim da peça-aula-documentário-denúncia meus olhos marejam de lágrimas e os atores pedem a parte branca de plateia de conversemos com nossos amigos sobre o tema, sobre preconceito em geral.

O assunto é espinhoso, mas precisa ser tratado com garra e coragem, pois ano que vem, com a mudança no governo federal a partir de primeiro de janeiro, prevejo - e acredito que os atores da peça também - dias negros e nebulosos. Os cheios de marra ganharam a primeira batalha, mas não a guerra. 

A guerra só termina quando o último soldado cai. E num país como o nosso, de mais de 200 milhões de habitantes, chegarmos à última baixa é tarefa ainda mais complicada e cheia de melindres. 

Logo, que venha o próximo combate!