Era uma amizade que tinha tudo para não dar certo...
De um lado, Tony Lip (Viggo Mortensen), um iltalianão do Bronx, brucutu até a alma, que não acredita que com diálogo conseguimos enfrentar as barreiras do mundo e por isso usa, quando o necessário, os punhos. Que o diga quando está trabalhando como segurança na boate Copacabana. Seu único porto seguro: a esposa Dolores (Linda Cardellini), os filhos e a família, sempre unida nos bons e maus momentos.
Do outro, o Dr, Don Shirley (Mahershala Ali, fantástico!), um homem negro, bem apessoado, estudado, de formação clássica, exímio pianista, mas divorciado e afastado dos poucos parentes ainda vivos por decisão próprio. Para muitos, um ermitão que prefere viver sozinho, ajudado por seu auxiliar; mas para que os conseguem ler as entrelinhas, um homem que luta com seus próprios demônios e escolhas infelizes, para chegar ao dia seguinte. E enfrentar uma nova batalha.
A vida de ambos se encontra quando Doc Shirley precisa fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos (em plena época de racismo exacerbado no país) e precisa de um motorista. A princípio, Tony não se encaixa no perfil que ele procura, mas há algo em sua personalidade que cativa o pianista e ele decide contratá-lo mesmo assim (chegando a "pedir autorização" à esposa dele).
O resultado? Um road movie completamente inusitado, fora do óbvio, e marcado por um detalhe desagradável que persegue a jornada de ambos por toda a estrada: o preconceito.
Green Book: o guia, do diretor Peter Farrelly (mais conhecido pelo público brasileiro por suas comédias Debi e Lóide e Quem vai ficar com Mary?) é o apogeu de um cineasta que eu acreditava estar fadado à sorrisos e gargalhadas fúteis e fáceis. Estava enganado, para minha surpresa. O filme não somente é magnífico como também é um dos grandes cotados a faturar o Oscar de melhor filme desse ano (e, cá entre nós, com reais chances de vitória).
Durante toda a viagem de Tony e Doc Shirley (que dura oito semanas) o que mais chamou a atenção deste crítico de fim de semana que vos fala não foram as apresentações sublimes do pianista ou mesmo a trilha sonora impecável, com direito a Little Richard e até mesmo a rainha do soul, Aretha Franklin. Não, meus caros amigos e leitores! O que mais me fez refletir foi a sensação de incômodo causada pelo fato de que não é fácil ser negro nos EUA (no mundo em geral, mas na terra do Tio Sam em particular é um tapa na cara!).
A todo momento somos invadidos por uma blasfêmia ou um desrespeito ou uma ofensa disfarçada de piadinha barata. E Doc Shirley precisa andar cautelosamente em meio a esse gelo fino se quiser concluir sua agenda atribulada. Da parte de Tony, que também é malvisto em alguns setores da sociedade por ser imigrante, isso é suavizado em alguns momentos por pertencer à etnia certa. Mas nem ele está livre de rótulos e estereótipos. E até mesmo ele, antes da viagem, não era a pessoa ideal para se debater sobre preconceito racial.
Um homem negro sentado no banco de trás do carro enquanto um homem branco dirige? (Muitos sentirão vontade de ver no longa uma espécie de Conduzindo Miss Daisy às avessas). Encher auditórios com plateias entusiasmadas e, no entanto, não poder usar o mesmo banheiro da plateia ou mesmo ter direito a um vestiário adequado? Mais: sequer poder almoçar no mesmo restaurante que eles? Sim, Green Book é um soco na cara (e no ego) dos demagogos que acham que racismo "é coisa da sua cabeça, meu amigo! Há muito de exagero nisso tudo".
Terminada a turnê e chegado o natal (e ai de Tony que não chegasse em casa para a ceia de natal com a família!), fico perdido entre a desilusão de vermos que passados tantos anos nada mudou tanto assim e Orgãos supremacistas como a Ku Klux Khan, por exemplo, estão ganhando força novamente e o direito a banir "os seres inferiores" e o orgulho de ver um tema desses ser mostrado de forma meticulosa e inteligente, sem exageros (algo que seria impensável no cinema hollywoodiano de cinco, seis décadas atrás).
Green Book pode até não ganhar o Oscar desse ano, mas que ele certamente já fez mais pela história dos EUA dos últimos anos do que muito político falastrão ou medida provisória para combater a desigualdade social, decreto, lei, etc, ah! disso não tenho a menor dúvida.
Por quê? Porque não é todo dia que prestamos atenção aos pequenos detalhes. E eles são fundamentais. Pelo menos, se você almeja se tornar um ser humano melhor.
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