Falar de racismo? No Brasil? Não dá. Não dá mesmo. A hipocrisia não deixa. De jeito nenhum. Negro é outra coisa no Brasil. Não é gente. É objeto. Não tem direitos, só deveres. Não deveria existir. Só faz mimimi. Reclama mais do que qualquer coisa. Negro é foda, é problema, é confusão na certa, quando não caga na entrada, caga na saída, quando não caga também durante. Quero longe de mim. Negro tinha que morrer. Mas aquela mulata filha do vizinho é um espetáculo, hein!!!
O sentimento que me fica na cabeça ao término do espetáculo teatral Contos negreiros do Brasil é proporcional a essa distorção de valores. Somos racistas nesse país até a medula dos ossos. Mas jamais admitiremos... Nem para nós mesmo.
A peça, que é inspirada no livro homônimo do escritor Marcelino Freire (que, aliás, recomendo para os fãs da boa literatura brasileira), é uma mistura de teatro, documentário e aula didática sobre esse terrível sentimento que persegue os brasileiros há décadas, o racismo.
Entro no teatro e logo de cara a primeira surpresa: faço parte da minoria branca na plateia, Muitos no meu lugar se irritariam, ficariam intimidados, mas eu não. Gosto do desafio de estar em menor número. No palco, três pilastras (que durante o espetáculo serão utilizadas como quadros-negros escolares) me fazem pensar, na maneira como estão dispostas em cena, em Stonehenge, um símbolo da revolução de tempos passados. Sei que estou delirando, e sempre faço isso quando vou ao teatro, procuro por referências distantes e próximas do texto que está sendo montado, mas a correlação à primeira vista me deixa esperançoso sobre o teor da peça. Em outras palavras: me deixa agradavelmente ansioso.
Perto de mim, senta-se uma moça carregando seu filho de colo (filho que chega a ser amamentado durante o espetáculo) e ao meu redor, várias mulheres exibem orgulhosas seus cabelos afro, fazendo menção ao quilombolas (tema que está na moda atualmente no país). Mais uma vez repito: estou ansioso. O espetáculo promete...
O primeiro ator do elenco aparece, Rodrigo França, ator, cientista político, doutorando, um homem negro inteligente. Escreve dizeres em uma das pilastras, apresenta-se e começa a narrar fatos sobre o papel do negro no Brasil e a maneira como a raça vem sendo vilipendiada com o passar dos séculos. Espectadores atrás de mim, como toda aula no país que se preze pois seus exemplares, dormem. Isso mesmo: dormem! Eu não consigo. Estou mesmerizado com a aula-espetáculo (ou será melhor chamar de espetáculo-aula?)
Em um de seus álbuns mais famosos, a cantora Elza Soares cantava que "a carne mais barata do mercado é a carne negra". Estava coberta de razão. E certamente teria gostado - e muito! - da peça.
Em uma mísera hora, acreditem se quiser, quatro atores (Rodrigo, Valéria, Marcelo e Milton) revezam-se no palco, exibindo, denunciando e alardeando as práticas mais cafajestes já perpetradas contra a comunidade negra nessa terra outrora chamada de "país do futuro". Realidade essa que só vem piorando nos últimos anos, por conta da onda de conservadorismo que rege o país. O quarteto mistura à língua portuguesa tão massacrada do dia-a-dia o dialeto iorubá (dialeto esse que também é cantado durante a apresentação por parte da plateia, que conhece o repertório de cor).
Estatísticas aterradoras são apresentadas, evidenciando a dura batalha que encaram homens e mulheres negras no seu dia-a-dia de provação, além de áudios (fiquei imaginando se viessem acompanhado das imagens!) desumanos, sobre a eterna mania dos brancos em desqualificar a classe, por considerá-la não merecedora de nada além da exclusão, do ostracismo, do abandono. O áudio da jovem branca que acusa os cotistas das universidades públicas de vagabundos é assustador de tão direto, maldoso e covarde...
Entre as citações e entrelinhas que compõem a trama insólita e poderosa por si só, um jovem - pelo que entendi, amigo dos atores - atrás de mim grita "Marielle Presente!" com paixão e ao final da apresentação um dos atores fala com orgulho "seremos resistência!!!" enquanto sua parceira de cena, dançarina de formação, exibe seus dotes numa embolada africana. Ao fim da peça-aula-documentário-denúncia meus olhos marejam de lágrimas e os atores pedem a parte branca de plateia de conversemos com nossos amigos sobre o tema, sobre preconceito em geral.
O assunto é espinhoso, mas precisa ser tratado com garra e coragem, pois ano que vem, com a mudança no governo federal a partir de primeiro de janeiro, prevejo - e acredito que os atores da peça também - dias negros e nebulosos. Os cheios de marra ganharam a primeira batalha, mas não a guerra.
A guerra só termina quando o último soldado cai. E num país como o nosso, de mais de 200 milhões de habitantes, chegarmos à última baixa é tarefa ainda mais complicada e cheia de melindres.
Logo, que venha o próximo combate!
Sem comentários:
Enviar um comentário