Em tempos de fanáticos religiosos e surtados, terraplanistas sem noção e a doença da "volta do comunismo pela milionésima vez" regressando nas mentes (e vozes) de uma geração perdida, estúpida e ignorante, nunca o humor foi tão necessário para lidar com as desavenças e covardias oficiais. E quando me refiro ao humor estou falando de sua vertente mais ácida e direta, que não dá margem a inocência ou interpretações dúbias. Em outras palavras: falo do rir sem rodeios ou desculpas, deixando o outro lado do debate sem graça ou sem chão.
Dito isto, é preciso salientar que hoje, 11 de janeiro de 2023, um dos pais desse humor cara-a-cara, se vivo, estaria comemorando seu centenário. E sua obra nunca foi tão atual como neste momento em que passamos por tantas fraudes, mentiras e exageros em nome de uma suposta fé. Seu nome: Sérgio Marcus Rangel Porto (ou simplesmente Sérgio Porto, mas que a história cultural desse país acabou preferindo chamar de Stanislaw Ponte Preta).
É tarefa mais do que árdua para os marinheiros de primeira viagem explicar o que Sérgio fez ao longo da vida. Mais fácil dizer o que ele não fez - e por pura falta de tempo mesmo, pois sua jornada aqui na terra foi uma correria só. Funcionário do Banco do Brasil, jornalista, compositor, radialista, teatrólogo, cronista, ficcionista em geral, etc etc etc (e eu vou parar, porque no quesito etc ele teve muitos). E isso tudo antes de completar míseros 45 anos, quando faleceu vítima de um infarto.
Duas pautas o acompanharam por toda a sua carreira: a diversidade cultural e a desigualdade social do Brasil. E ninguém, segundo alguns críticos e pesquisadores literários, bateu tanto na ditadura militar quanto ele. E fez isso não com expressões de baixo calão ou luvas de boxeador, mas com a mais fina ironia e sarcasmo que lhe eram peculiares. Debochado notório e farrista contumaz, encantou leitores em todo o território nacional com seu jeito despachado e maluco (tem quem chame de irreverente) de ser.
Dentre seus 14 livros publicados - quatro assinados como Sérgio Porto e onze com o pseudônimo que o consagrou -, o que mais se notabilizou com certeza foi FEBEAPÁ (ou Festival de besteira que assola o país, no qual satirizava o jornalismo feito no período). Ah, Stanislaw! E está assolando até hoje. Acho até que piorou de uns anos pra cá, meu caro! Você não faz a menor ideia do quanto...
Junto com o também escritor, cronista e compositor Antônio Maria (outra lenda da época) criou o que ficou conhecido na imprensa carioca como o "cronista da noite". É também de sua autoria o até hoje nostálgico "As queridinhas do Lalau", um concurso de beleza disputado entre as vedetes mais famosas da época e que teve entre suas concorrentes mulheres lindíssimas como Maria Pompeo, Irma Alvarez, Rose Rondelli, Anilza Leoni e tantas outras.
Outro grande legado cultural deixado por Sérgio, este para a música popular brasileira, foi a redescoberta do cantor e compositor mangueirense Cartola, que andava completamente sumido da mídia lá pelos meados dos anos 1950, tanto que para sobreviver trabalhava como lavador de carros e como vigia num edifício residencial em Ipanema. Sérgio, que escreveu artigos sobre o sambista para jornais de grande circulação, o ajudou a retomar a carreira e regressar aos palcos.
As cariocas, livro de contos que em 2010 ganhou versão televisiva na Rede Globo numa série em 10 episódios produzida por Euclydes Marinho, trouxe à baila todo o talento e expertise do autor para tratar da psique feminina. Com relatos de mulheres dos mais distintos bairros, de Grajaú à Madureira, ele criou uma sublime cartografia sobre as mulheres e mostrou por a mais b que, de sexo frágil, elas não têm é nada.
Contudo, ainda mais importante do que ler e entender as suas obras, é compreender a personalidade de Sérgio. O cronista Paulo Mendes Campos dizia que sua maior característica era "o trânsito livre entre as manifestações da vida". Sérgio não era homem de se calar diante das adversidades, muito menos fazer coro com o óbvio cotidiano ou com a maioria viciada em mesmice. Traçou seu próprio caminho a ferro e fogo, enfrentou quem e o que quis, pagou o preço alto numa época conturbada e cheia de falsos moralismos e ainda assim fez de seu pseudônimo uma marca registrada, assim como Pelé (que faleceu recentemente).
O que sobrou dele nesse século XXI mais perdido do que cego em tiroteio? A necessidade absurda de que precisamos, hoje mais do que nunca, de expoentes como ele, que saibam flertar com a ousadia quando preciso. Figuras sem papas na língua que enfrentem as intempéries da vida de peito aberto, não importa o desafio que elas tragam. O Brasil de hoje - acreditem! - nunca precisou tanto de alguém como ele e nem sequer se dá conta disso.
Stanislaw, mestre, volta! Volta, pelo amor de Deus! Precisamos tanto da sua cara de pau.
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