sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Poucos sobreviverão ao ódio


Eu tenho um sentimento dúbio sobre a culinária e a alta gastronomia de uma forma geral: ao mesmo tempo que sou extremamente curioso sobre quem cozinha e como (vejo zilhões de programas e concursos sobre o tema, embora eu mesmo não cozinhe absolutamente nada), em alguns momentos acho este universo um tanto caótico e divisivo. 

Explico-me: vejo esta realidade proposta pelos chefs de couisine mundo afora completamente fora do mundo real. Eles parecem ter criado um mundo paralelo onde somente os eleitos, a elite cruel e devastadora, pode (e deve) fazer parte. Resultado: uma nefanda alegoria sobre a burguesia atroz que nunca soube viver além do próprio umbigo e da própria pose.

Imagine, então, este cenário transformado num horror psicológico de primeira grandeza? Foi exatamente isso que o diretor Mark Mylod fez em O Menu, das melhores coisas que a sétima arte produziu em 2022, mas que eu infelizmente só consegui assistir agora. Mas quer saber? Fico satisfeito de saber que comecei 2023 com o pé direito, pois o longa é um deleite. 

Premissa simples na abertura da trama: grupo de privilegiados (no geral, eles não passam disso!) viajam para uma ilha isolada, onde aproveitarão uma experiência gastronômica que se promete única. Quando chegam ao local, que é cheio de regras e costumes próprios que não podem ser alterados sob nenhuma hipótese, se deparam com o excêntrico Chef Slowik (Ralph Fiennes, excepcional), que se considera um artífice, um gênio da comida. 

Acompanhado de seus assistentes, apresenta a seus convidados um menu criado com rigor e apuro. E entre um prato e outro conta uma narrativa que tem o intuito de transformar a refeição numa experiência não somente gustativa, como também sensorial. Até que uma série de situações macabras ditam o tom do que será aquela noite inusitada. 

Um informação importante: um dos convidados do jantar não comparece e no lugar dele, uma substituta, Margot (Anya Taylor-Joy), intriga o chefe. Mais do que isso: deixa-o desconcertado. É como se a presença dela tirasse o brilho ou a importância de tudo o que ele criou previamente para aquela noite em particular. E ambos, Slowik e Margot, travarão um duelo à parte durante todo o jantar. 

Entre a insatisfação do chefe com certos convidados que, na visão dele, o traíram ou nunca reconheceram o seu talento e punições bem como tentativas de fuga por parte daqueles que não esperavam que a noite chegasse a tanto, o experimento chega ao seu ápice quando violência e paladar começam a assumir quase que formas análogas. Sim, eu sei... Parece louca a correlação, mas foi exatamente o que eu senti durante toda a projeção do filme. 

Há uma clara distinção entre O Menu e outras produções cinematográficas que trazem a culinária como o cerne ou parte da história (por exemplo, Chef; Pegando fogo; Sem reservas; Comer, rezar, amar, dentre outras): o de Mylod não esconde sua raiva através de ironias, discursos arrogantes e blasés, muito menos disputas entre chefes de cozinha e donos de restaurantes pelo protagonismo do espaço. 

Aqui tudo é intenso, da reles interrupção para ir ao banheiro até a ostentação de quem acha que é mais do que os outros só porque é famoso. Tudo, absolutamente, tudo - mesmo um talher que caia ao chão - é motivo para que a raiva seja ativada e o dono da cozinha se transforme em Michael Douglas no filme Um dia de fúria. Não há razões para subterfúgios. Aquelas pessoas devem pagar com a vida, pois jamais seriam capazes de entender o talento do chefe e ele assim o decidiu. 

O Menu poderia ser gore se o diretor quisesse, mas ele preferiu uma elegância assassina. Há método nos silêncios que antecedem toda a vilania em jogo. E a única que parece a priori entender esse jogo diabólico é Margot. Talvez porque tanto ela quanto o chefe não pertençam de fato àquele mundo, vieram de fora, não nasceram em berço de ouro. Logo, se reconhecem pelo olhar. E, mesmo assim, enfrentam-se como algozes de faro ímpar. 

Ao fim o que sobra ao espectador é apenas uma certeza: por vivermos em castas e não numa sociedade coerente, ética ou lúcida, sobrevivemos ao ódio alheio com todas as nossas forças. Contudo, essa nunca será um batalha fácil ou mesmo ganha. E para chegar ao dia seguinte, a semana seguinte, ao mês seguinte e por aí em diante, é preciso fingir, dissimular, erguer os punhos e lutar com unhas e dentes. E principalmente: entender que nem todos conseguirão sobreviver. Apenas o que subverterem as regras ou trapacearem.

E aos demais, os que não conseguirem, tudo não passará de um "estar no lugar errado, na hora errada". Sinto muito.  


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