quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Janis, 80


Mal ligo o computador e a primeira informação que vejo no twitter é a de que a cantora Janis Joplin, se viva, estaria comemorando 80 anos de idade. Infelizmente ela nos deixou muito cedo (aos 27 anos, vítima de uma overdose de heroína) e os fãs até hoje choram copiosamente. 

E tudo porque Janis, mesmo para aqueles que não curtiam o seu estilo musical ou maneira de cantar, era a voz por excelência. Tem inclusive quem diga que ela "cantava com a alma", por isso levou a música - e o rock - a um outro patamar. Em outras palavras: ela ajudou a construir a ideia do gênero como revolucionário, à frente do seu próprio tempo. 

Porém, é preciso perguntar aos desavisados: você já ouviu Janis Joplin, nem que seja apenas uma mísera vez? Mas ouviu mesmo, sentindo cada palavra escandida em seu corpo e em seu coração? Caso ainda não tenha tido a  honra, não sabe o que está perdendo. Não mesmo. 

É difícil classificar uma voz como a dela. Rebeldia que chama? Não, isso simplesmente não explica o que foi Janis. Quando assisti o filme A rosa, de Mark Rydell (1979), no qual a atriz Bette Midler interpreta Janis numa atuação indicada ao Oscar, entendi imediatamente - embora tenha gostado muito do longa - que, fosse quem fosse a atriz intérprete, não emularia 10% do que ela representou. 

Ouçam, quando tiverem tempo, em algum you tube ou streaming da vida, canções como "Me and Bobby McGee", "Summertime", "Piece of my heart", "Cry baby", "Down on me" (isso para ficar no básico, pois o repertório dela era ímpar) e, se possível, ouçam de novo e de novo. 

Entendam aquela voz, tentem fazer com que ela faça parte do seu mundo particular. Janis, assim como Elis Regina aqui no Brasil, foi das poucas que conseguiu fazer isso ao longo da carreira. Fez de seu canto uma terapia pessoal para muitos, uma experiência de vida. Ouvir Janis cantar era mais, muito mais, do que mero entretenimento. Queríamos, no fundo, conseguir fazer o mesmo (mesmo sabendo que era impossível).

Após sua morte, trágica, ela meio que virou uma lenda urbana em tempo integral. São muitas as histórias sobre ela, verídicas ou não. Alguns afirmam que em seu testamento ela reservara a quantia de 2,5 milhões de dólares para que dessem uma festa após sua morte. Outros dizem que ela abominava maconha, LSD e alucinógenos em geral, pois essas substâncias a faziam pensar demais (e ela queria era esquecer tudo). Outro 'caso famoso' foi seu relacionamento com o roqueiro brazuca Serguei. Foi eleita - acreditem! - o homem mais feio da universidade onde estudou e colegas do campus ainda alegavam que ela traficava maconha com extrema perícia.

Sim, a menina que se encantou com Bessie Smith (dizia que era sua maior influência) e que defendeu o blues até a morte, mesmo contra os roqueiros mais ferrenhos, era do balacobaco. E era justamente essa capacidade de se reinventar, ousar, virar o mundo de ponta cabeça, que virou sua marca registrada com o passar das décadas. Em suma: ela virou sinônimo de tudo o que era mais improvável. 

Infelizmente, Joplin não deixou uma herdeira à sua altura. Houve um momento que eu cheguei a acreditar que a cantora Amy Winehouse (também morta aos 27 anos, que ironia!) pudesse ser essa pessoa... Mas não. Eram vozes extraordinárias, mas cada uma em seu elemento único. Seria um crime compará-las. 

Sobrou, para a felicidade dos fãs da boa música (em tempos de ridículo sonoro e artistas que não passam de reboladores de bundas e imitadores vazios), o legado discográfico. Então repito, aos que conhecem a cantora ou não: ouçam Janis Joplin. Mas ouçam agora, nesse exato momento. Aproveitem esse dia para descobrir aquela que, para muitos, é a maior roqueira que o mundo já viu. Afinal de contas, são 53 anos que ela partiu. E ela continua de uma relevância assustadora na cultura pop. 

E agora que já dei a dica, corre e liga o player. De preferência, no volume mais alto. Aposto que vocês vão me agradecer depois.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Sem papas na língua


Em tempos de fanáticos religiosos e surtados, terraplanistas sem noção e a doença da "volta do comunismo pela milionésima vez" regressando nas mentes (e vozes) de uma geração perdida, estúpida e ignorante, nunca o humor foi tão necessário para lidar com as desavenças e covardias oficiais. E quando me refiro ao humor estou falando de sua vertente mais ácida e direta, que não dá margem a inocência ou interpretações dúbias. Em outras palavras: falo do rir sem rodeios ou desculpas, deixando o outro lado do debate sem graça ou sem chão. 

Dito isto, é preciso salientar que hoje, 11 de janeiro de 2023, um dos pais desse humor cara-a-cara, se vivo, estaria comemorando seu centenário. E sua obra nunca foi tão atual como neste momento em que passamos por tantas fraudes, mentiras e exageros em nome de uma suposta fé. Seu nome: Sérgio Marcus Rangel Porto (ou simplesmente Sérgio Porto, mas que a história cultural desse país acabou preferindo chamar de Stanislaw Ponte Preta). 

É tarefa mais do que árdua para os marinheiros de primeira viagem explicar o que Sérgio fez ao longo da vida. Mais fácil dizer o que ele não fez - e por pura falta de tempo mesmo, pois sua jornada aqui na terra foi uma correria só. Funcionário do Banco do Brasil, jornalista, compositor, radialista, teatrólogo, cronista, ficcionista em geral, etc etc etc (e eu vou parar, porque no quesito etc ele teve muitos). E isso tudo antes de completar míseros 45 anos, quando faleceu vítima de um infarto.

Duas pautas o acompanharam por toda a sua carreira: a diversidade cultural e a desigualdade social do Brasil. E ninguém, segundo alguns críticos e pesquisadores literários, bateu tanto na ditadura militar quanto ele. E fez isso não com expressões de baixo calão ou luvas de boxeador, mas com a mais fina ironia e sarcasmo que lhe eram peculiares. Debochado notório e farrista contumaz, encantou leitores em todo o território nacional com seu jeito despachado e maluco (tem quem chame de irreverente) de ser.

Dentre seus 14 livros publicados - quatro assinados como Sérgio Porto e onze com o pseudônimo que o consagrou -, o que mais se notabilizou com certeza foi FEBEAPÁ (ou Festival de besteira que assola o país, no qual satirizava o jornalismo feito no período). Ah, Stanislaw! E está assolando até hoje. Acho até que piorou de uns anos pra cá, meu caro! Você não faz a menor ideia do quanto...

Junto com o também escritor, cronista e compositor Antônio Maria (outra lenda da época) criou o que ficou conhecido na imprensa carioca como o "cronista da noite". É também de sua autoria o até hoje nostálgico "As queridinhas do Lalau", um concurso de beleza disputado entre as vedetes mais famosas da época e que teve entre suas concorrentes mulheres lindíssimas como Maria Pompeo, Irma Alvarez, Rose Rondelli, Anilza Leoni e tantas outras. 

Outro grande legado cultural deixado por Sérgio, este para a música popular brasileira, foi a redescoberta do cantor e compositor mangueirense Cartola, que andava completamente sumido da mídia lá pelos meados dos anos 1950, tanto que para sobreviver trabalhava como lavador de carros e como vigia num edifício residencial em Ipanema. Sérgio, que escreveu artigos sobre o sambista para jornais de grande circulação, o ajudou a retomar a carreira e regressar aos palcos. 

As cariocas, livro de contos que em 2010 ganhou versão televisiva na Rede Globo numa série em 10 episódios produzida por Euclydes Marinho, trouxe à baila todo o talento e expertise do autor para tratar da psique feminina. Com relatos de mulheres dos mais distintos bairros, de Grajaú à Madureira, ele criou uma sublime cartografia sobre as mulheres e mostrou por a mais b que, de sexo frágil, elas não têm é nada. 

Contudo, ainda mais importante do que ler e entender as suas obras, é compreender a personalidade de Sérgio. O cronista Paulo Mendes Campos dizia que sua maior característica era "o trânsito livre entre as manifestações da vida". Sérgio não era homem de se calar diante das adversidades, muito menos fazer coro com o óbvio cotidiano ou com a maioria viciada em mesmice. Traçou seu próprio caminho a ferro e fogo, enfrentou quem e o que quis, pagou o preço alto numa época conturbada e cheia de falsos moralismos e ainda assim fez de seu pseudônimo uma marca registrada, assim como Pelé (que faleceu recentemente). 

O que sobrou dele nesse século XXI mais perdido do que cego em tiroteio? A necessidade absurda de que precisamos, hoje mais do que nunca, de expoentes como ele, que saibam flertar com a ousadia quando preciso. Figuras sem papas na língua que enfrentem as intempéries da vida de peito aberto, não importa o desafio que elas tragam. O Brasil de hoje - acreditem! - nunca precisou tanto de alguém como ele e nem sequer se dá conta disso. 

Stanislaw, mestre, volta! Volta, pelo amor de Deus! Precisamos tanto da sua cara de pau. 


sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Poucos sobreviverão ao ódio


Eu tenho um sentimento dúbio sobre a culinária e a alta gastronomia de uma forma geral: ao mesmo tempo que sou extremamente curioso sobre quem cozinha e como (vejo zilhões de programas e concursos sobre o tema, embora eu mesmo não cozinhe absolutamente nada), em alguns momentos acho este universo um tanto caótico e divisivo. 

Explico-me: vejo esta realidade proposta pelos chefs de couisine mundo afora completamente fora do mundo real. Eles parecem ter criado um mundo paralelo onde somente os eleitos, a elite cruel e devastadora, pode (e deve) fazer parte. Resultado: uma nefanda alegoria sobre a burguesia atroz que nunca soube viver além do próprio umbigo e da própria pose.

Imagine, então, este cenário transformado num horror psicológico de primeira grandeza? Foi exatamente isso que o diretor Mark Mylod fez em O Menu, das melhores coisas que a sétima arte produziu em 2022, mas que eu infelizmente só consegui assistir agora. Mas quer saber? Fico satisfeito de saber que comecei 2023 com o pé direito, pois o longa é um deleite. 

Premissa simples na abertura da trama: grupo de privilegiados (no geral, eles não passam disso!) viajam para uma ilha isolada, onde aproveitarão uma experiência gastronômica que se promete única. Quando chegam ao local, que é cheio de regras e costumes próprios que não podem ser alterados sob nenhuma hipótese, se deparam com o excêntrico Chef Slowik (Ralph Fiennes, excepcional), que se considera um artífice, um gênio da comida. 

Acompanhado de seus assistentes, apresenta a seus convidados um menu criado com rigor e apuro. E entre um prato e outro conta uma narrativa que tem o intuito de transformar a refeição numa experiência não somente gustativa, como também sensorial. Até que uma série de situações macabras ditam o tom do que será aquela noite inusitada. 

Um informação importante: um dos convidados do jantar não comparece e no lugar dele, uma substituta, Margot (Anya Taylor-Joy), intriga o chefe. Mais do que isso: deixa-o desconcertado. É como se a presença dela tirasse o brilho ou a importância de tudo o que ele criou previamente para aquela noite em particular. E ambos, Slowik e Margot, travarão um duelo à parte durante todo o jantar. 

Entre a insatisfação do chefe com certos convidados que, na visão dele, o traíram ou nunca reconheceram o seu talento e punições bem como tentativas de fuga por parte daqueles que não esperavam que a noite chegasse a tanto, o experimento chega ao seu ápice quando violência e paladar começam a assumir quase que formas análogas. Sim, eu sei... Parece louca a correlação, mas foi exatamente o que eu senti durante toda a projeção do filme. 

Há uma clara distinção entre O Menu e outras produções cinematográficas que trazem a culinária como o cerne ou parte da história (por exemplo, Chef; Pegando fogo; Sem reservas; Comer, rezar, amar, dentre outras): o de Mylod não esconde sua raiva através de ironias, discursos arrogantes e blasés, muito menos disputas entre chefes de cozinha e donos de restaurantes pelo protagonismo do espaço. 

Aqui tudo é intenso, da reles interrupção para ir ao banheiro até a ostentação de quem acha que é mais do que os outros só porque é famoso. Tudo, absolutamente, tudo - mesmo um talher que caia ao chão - é motivo para que a raiva seja ativada e o dono da cozinha se transforme em Michael Douglas no filme Um dia de fúria. Não há razões para subterfúgios. Aquelas pessoas devem pagar com a vida, pois jamais seriam capazes de entender o talento do chefe e ele assim o decidiu. 

O Menu poderia ser gore se o diretor quisesse, mas ele preferiu uma elegância assassina. Há método nos silêncios que antecedem toda a vilania em jogo. E a única que parece a priori entender esse jogo diabólico é Margot. Talvez porque tanto ela quanto o chefe não pertençam de fato àquele mundo, vieram de fora, não nasceram em berço de ouro. Logo, se reconhecem pelo olhar. E, mesmo assim, enfrentam-se como algozes de faro ímpar. 

Ao fim o que sobra ao espectador é apenas uma certeza: por vivermos em castas e não numa sociedade coerente, ética ou lúcida, sobrevivemos ao ódio alheio com todas as nossas forças. Contudo, essa nunca será um batalha fácil ou mesmo ganha. E para chegar ao dia seguinte, a semana seguinte, ao mês seguinte e por aí em diante, é preciso fingir, dissimular, erguer os punhos e lutar com unhas e dentes. E principalmente: entender que nem todos conseguirão sobreviver. Apenas o que subverterem as regras ou trapacearem.

E aos demais, os que não conseguirem, tudo não passará de um "estar no lugar errado, na hora errada". Sinto muito.