É difícil falar sobre lendas porque elas existem num número cada vez menor à medida que os anos passam. Não é em qualquer esquina que encontraremos um Pelé, uma Nadia Comaneci, um Shakespeare, uma Pina Bausch. Não mesmo. E mais: eles são frutos de anos e anos de dedicação, esforço e transpiração (e não inspiração, como muitos preferem dizer). Logo, quando nos deparamos com uma, fica um certo gosto de satisfação na garganta. Afinal de contas, eles têm o necessário - tem quem chame de dom - para apreender a nossa completa atenção pelo tempo que for.
Abigail Izquierdo Ferreira (ou, simplesmente, Bibi Ferreira) era uma dessas. E mesmo que não tivesse feito absolutamente nada em sua carreira artística, ainda assim seria conhecida por várias gerações como "a filha do diretor de teatro Procópio Ferreira", outra lenda inegável desse país.
Mas não pensem que ter o renome da família foi o suficiente para ela, que completa seu centenário em 2022 (Bibi faleceu aos 96 anos, em 2019, de parada cardíaca). A menina que estreou nos palcos aos 24 dias de vida, substituindo uma boneca que desaparecera antes do início do espetáculo Manhãs de sol, escrito por Oduvaldo Vianna (pai) e foi recusada pelas freiras do Colégio Sion por ser "filha de artistas" ralou - e muito - até conseguir o respeito das plateias brazucas e internacionais.
Bibi estudou balé - na verdade tinha o sonho mesmo de ser bailarina e não atriz -, canto e música. Veio de baixo, aprendeu com os melhores do ramo, estudou na Royal Academy of art, fez parte de todos os movimentos teatrais que fizeram a cena no brasil entre os anos 1940 e 1970 (TBC, Arena, Oficina, etc), atuou no longa Fim do Rio, de Michael Powell, trabalhou com Glauber Rocha no cinema novo, montou sua própria companhia, até apresentadora num programa de variedades na TV Excelsior ela foi (e entrevistando a nata da cultura nacional na época).
E isso tudo não explica nem metade do que ela já fez.
Entre as peças que definem sua carreira, é complicado chegar a um consenso e certamente os críticos se dividirão aqui e irão eleger seus favoritos, logicamente. Além de adaptações de clássicos literários como O noviço, de Martins Pena; A senhora, de José de Alencar e A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, ela também participou, dentre tantos outros espetáculos, de Gota d'água, My Fair Lady e Alô Dolly.
Além disso, em sua faceta cantora, realizou shows com repertórios em homenagem à Edith Piaf (este um sucesso arrebatador, quando foi lançado), Amália Rodrigues e Frank Sinatra, bem como viajou o país inteiro com o seu Bibi in Concert, no qual se apresentava com orquestra sinfônica.
E uma curiosidade importante para que o público entenda o quanto Bibi foi eclética em sua carreira: ela dirigiu tanto Brasileiro: profissão esperança, com cantoras do primeiro escalão da MPB, como o Gay Fantasy, show travesti na Galeria Alaska, e que tinha como estrela Rogéria, com quem depois retomou a parceria no musical Roque Santeiro, baseado em peça de Dias Gomes e que fora sucesso como novela na Rede Globo.
Quer saber mais sobre essa senhora formidável? Pois bem: em homenagem ao seu centenário a atriz e jornalista Jalusa Barcellos lança a biografia Bibi - a saga de uma diva, no qual faz um relato afetivo de quem conviveu com a atriz e diretora por quatro décadas. E, além disso, o Teatro Riachuelo, no centro do RJ, traz de volta o espetáculo Bibi, uma vida em musical, de autoria de Artur Xexéo e Luanna Guimarães, e dirigido por Tadeu Aguiar. Quem interpreta Bibi nos palcos é a atriz Amanda Acosta, em atuação elogiadíssima e vencedora de vários prêmios teatrais.
Só faltou mesmo dizer que essa grande dama do teatro vai fazer muita falta no atual cenário cultural do país, que nos últimos anos vem perdendo grandes nomes com frequência e com uma renovação que ainda deixa muito a desejar. Salve Bibi! E principalmente: vida longa ao teatro brasileiro!
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