domingo, 28 de abril de 2019

O riso torto



Este texto poderia, nas mãos de um profissional inescrupuloso do ramo de comédia, se transformar numa grande distorção, acusando este mísero autor de difamar a classe. Longe disso. Longe de mim difamar uma classe que apresentou ao mundo tantos gênios (e eu fui espectador assíduo de vários deles). No entanto, o fato crônico que muitos desta distinta classe não querem debater é: pioramos como realizadores de humor. 

A recente condenação na justiça do humorista e apresentador do The Noite, no SBT, Danilo Gentili, me fez pensar nos rumos que a classe humorística vêm tomando nos últimos anos. Em outras palavras: se o ex-vj da MTV, PC Siqueira, já dizia lá atrás que "está foda ser brasileiro", imagine então para quem vive do riso e, principalmente, quem confunde humor com baixaria e/ou escrotidão. 

Estamos atolados até o pescoço, como nação, numa realidade fúnebre. Vivemos tempos amargos - já disse isso em outros artigos - em que o roto fala mal do esfarrapado e se orgulha de exibir o que não é. Mais do que isso: passamos a idolatrar o ridículo e a difamação como arte nobre. E o resultado desta equação é que nunca antes na história deste país o humor esteve tão a serviço do que existe de mais sórdido e nojento. E não me refiro única e exclusivamente ao território nacional, não!

Faço parte de uma geração (já sei, já sei... vocês dirão que "esse papo de geração não tá com nada", mas vou falar mesmo assim) que se orgulha de ter visto Jô Soares em Viva o gordo e O planeta dos homens, Chico Anísio em Chico City, Agildo Ribeiro em Cabaré do Barata - com sua sátira política aos presidenciáveis -, que ligava a tv dia de semana para assistir os filmes do Jerry Lewis na Sessão da tarde, que assobiou a trilha sonora de Henry Mancini para a franquia de filmes da Pantera cor-de-rosa, parceria do ator Peter Sellers e do diretor Blake Edwards e que quase quebrou o sofá de casa vendo as maluquices de Mel Brooks em O jovem Frankenstein e Drácula: morto, mas feliz, com o extraordinário Leslie Nielsen. Ah! E quase me esqueci dos eternos integrantes do grupo Monty Python...

E após olhar para um passado tão glorioso quanto este, é com vergonha que vejo o mundo da comédia assimilar verdades mórbidas, cafajestes notórios que se escondem atrás de piadas sexistas e misóginas e realidades cruéis (quando não fantasiosas ao extremo).

Os talk-shows, antes palco de homens sábios e inteligentes, entregou-se de vez a piadistas sem noção que não reconhecem a diferença entre maldade e homenagem aos outros. É o tal "humor a qualquer preço", como gosto de chamar. O problema é que comédia não é tão gratuita assim. Pergunte a quem faz o gênero de verdade e corrija-me se eu estiver enganado. 

Comédia não se limita a risos e gargalhadas e sempre a considerei um dos melhores atos políticos já criados pela humanidade. Ela não se presta unicamente a elogiar ou plagiar pessoas públicas e instituições. E muitas vezes mostra um outro lado dessas figuras e corporações que você, espectador, jamais imaginou que estivesse ali, presente ou simplesmente não quis dar a mínima. 

"A comédia é a guerra nas entrelinhas". Li isso anos atrás num livro (que, infelizmente, não me recordo do título), e nunca me esqueci da frase. Robin Williams - outro gênio do humor - sempre falou em enfrentamento, em não deixar a peteca cair, não importa o quanto estejam acusando ou difamando você. E Jim Carrey, que de uns tempos para cá andou se revendo como artista do gênero, me provou com folgas que não existem regras ou parâmetros que contenham o discurso. 

Em suma: ninguém pauta a agenda dos comediantes (não importa o quanto tentem). Contudo, isso não é motivo para tanta vulgaridade e descalabro no setor. Até que ponto podemos chamar de engraçado um apresentador de talk show que ouve às gargalhadas seu entrevistado explicando como realizou uma orgia dentro de sua casa? E o quadro da peça Nós na fita, que foi sucesso nos teatros do subúrbio à zona sul, em que a dupla de "humoristas" celebra uma multiplicidade de palavrões, delimitando o uso perfeito para cada um deles? Isso é de morrer de rir? Tenho minhas dúvidas. 

Acho que a verdade aqui presente é que nos entregamos a uma indústria do grotesco, do falar mal de nossos semelhantes. O humor virou um discurso exibicionista com o claro intuito de colocar o outro no seu devido lugar (como se eles, perpetradores desse discurso, fossem seres humanos muito melhores, idôneos, acima de qualquer suspeito). Sinto muito, mas não compro esta falácia. 

E quando me apresentarem uma versão real do gênero, por favor me avisem aqui. Porque de desgosto eu já ando cheio nesses últimos anos...

sábado, 20 de abril de 2019

O filme proibido


Que bom seria se o ser humano deixasse seu semelhante em paz com suas convicções políticas, econômicas e religiosas! Infelizmente, às vezes tenho a triste percepção de que a humanidade só existe para desmitificar o mundo e, no final das contas, acaba por se transformar ela mesma numa eterna mitologia sem sentido. 

Profundo, não é mesmo? A sétima arte de vez em quando me deixa assim, reflexivo. 

Pois bem: esta semana enfim consegui assistir o tão famigerado Boy erased - uma verdade anulada, do ator e diretor Joel Edgerton, que foi boicotado em nossos cinemas por "ofender" a determinados segmentos religiosos que apoiam o atual governo federal vigente. Digo de antemão: uma infeliz decisão, pois o longa reflete - e muito! - uma triste realidade que anda em voga no Brasil e no mundo afora. 

Boy erased conta a história do jovem Jared Eamons (Lucas Hedges) que descobre, no auge da adolescência, seu interesse por homens. O problema é que ele é filho de um pastor evangélico de visão não somente conservadora, como por vezes extremista (aliás, um interessante trabalho de interpretação do ator Russell Crowe) e ele acredita piamente que seu filho sofre, isso sim, de uma perversão e ela pode ser curada, eliminada de sua personalidade. 

Resultado: ele decide inscrever o filho numa terapia de conversão e é justamente nesse momento que começa o grande martírio do rapaz. Não bastassem os olhares tortos da população e dos colegas de faculdade na rua ele ainda tem de enfrentar o discurso intolerante e repressivo do "orientador" do programa, um homem - diga-se de passagem - sem a menor formação profissional necessária para conduzir tal tratamento.. 

O filme de Edgerton - que vêm se provando bom diretor, com longas como O presente -, mais do que traçar uma linha tênue entre certo e errado (vi alguns sites de cinema rotulando o filme de maniqueísta e, honestamente, não sei se concordo com esta interpretação!), mostra o quanto pioramos como sociedade. 

Vivemos uma era de extremismos, pautada por um discurso religioso ferrenho, que acredita que a solução para todos os problemas da face da terra está exclusivamente na crença em Jesus Cristo, e não nos demos conta do quanto estamos perdendo no quesito diversidade. Ter uma opinião própria, decidir sua própria opção sexual ou mesmo escolher sua própria formação cultural viraram quase motivo de guerra, gerando bunkers ideológicos prontos para serem atacados a qualquer momento por qualquer um que se acredite acima do bem e do mal simplesmente por conhecer os preceitos da Bíblia. 

Mesmo o momento-chave, em que pai e filho põem as cartas na mesa e tentam uma prestação de contas entre eles, é ocultado - ou bloqueado - por uma espécie de muro existencial (muito parecido com o muro, esse sim físico, que o presidente Donald Trump quer impôr aos mexicanos de qualquer jeito). É difícil para este pai velha guarda, que tornou suas escolhas no passado uma blindagem para lidar com os problemas da atual sociedade, confusa, perdida, tentando encontrar o seu próprio caminho, entender o próprio filho. Pior: parece tarefa impossível para ele, como cristão, permitir que sua prole faça suas próprias escolhas. 

Ao final da película a sensação que fica no espectador - pelo menos, foi a que tive - é a de um gosto amargo, de um livro incompleto, em que você deseja ler o desfecho, mas ele não pode ser escrito, por imposição de pessoas que querem regrar o mundo, recontar a história, excluir os diferentes, evitar o futuro porque ele (visão dos conservadores) denigre o passado glorioso, porém manipulado em seus fatos e acontecimentos. 

Fica aqui, da minha parte, um recado para os segmentos religiosos que boicotaram o filme:  vocês deram não somente um tiro no próprio pé, como incentivaram uma geração de cinéfilos e curiosos a, isso, sim, correr atrás do filme nos serviços de streaming, google, etc... Digo isso, porque se existe algo de que o brasileiro médio não gosta é de polêmicas e proibições. Fizeram o mesmo com Je vous salue Marie, de Godard e O último tango em Paris, de Bertolucci no passado e eles se tornaram cults. 

Ou seja: moral da história - quer ser visto? Basta dizer "não pode", "não acrescentará nada à sua vida". 

domingo, 14 de abril de 2019

Um quadro, uma guerra


Já prevejo alguns dos meus leitores mais assíduos me chamando de louco. Quer saber: que chamem. Sim, eu decidi dedicar um artigo exclusivamente à uma pintura. Mais do que isso: uma verdadeira obra-prima da história da arte. E se quiserem me rotular de excêntrico por causa disso, fiquem à vontade! 

Refiro-me à Guernica, obra seminal do pintor Pablo Picasso, pertencente à sua fase mais obscura (fase essa que coincide não somente com o início da Guerra Civil Espanhola e a II Guerra Mundial, como também com o falecimento da mãe do pintor em 1939). Portanto, um período soturno para ele como criador. 

Guernica, mais do que um mero mural, trata-se de um ato político. É uma tela inspirada no bombardeamento da cidade que dá nome à obra, localizada na Espanha, em 26 de abril de 1937 por aviões alemães da Legião Condor que praticamente destruíram toda a região. Seu resultado final, como pintura, é uma severa crítica a devastação provocada pelo nazismo, neste caso apoiado pelo então ditador Franco. 

A primeira vez que fiquei sabendo da existência do quadro de Picasso eu era bem novo, coisa de 10, 11 anos, e confesso: foi meu primeiro momento de perplexidade diante de um objeto artístico. Digo mais: foi quando eu tive a certeza de que minha vida precisava estar relacionada à arte de alguma maneira. Depois deste primeiro vislumbre corri atrás de livros sobre o pintor em bibliotecas públicas e livrarias. Começava ali meu contato com os livros. Resultado: não parei mais e acabei por me tornar este nerd fanático por conhecimento.  

Muitos analistas e críticos de arte não vêem Guernica como uma exaltação à violência e sim como um símbolo de paz, um libelo anti-guerra (e eu concordo com eles em gênero, número e grau). É bem verdade que a tela é dura, forte, em alguns momentos difícil de manter os olhos fixos, tamanho o rigor e a brutalidade de suas imagens, mas trata-se de um choque de realidade mais do que necessário (principalmente neste século XXI repleto de fake news, racismo e misoginia em que vivemos). 

Toda pintada em preto-e-branco, diferentemente de suas fases azul e rosa, intensifica ainda mais a sensação de drama, de niilismo por trás das escolhas visuais. Não se trata simplesmente de "um objeto para se pendurar na parede de sua casa, com o intuito de enfeitar o ambiente, e sim uma arma de ataque e defesa contra o inimigo", como gostava de salientar muitas vezes o próprio artista. 

Todavia, o mais interessante neste espetáculo visual é a capacidade de analisarmos sua composição estética. Em outras palavras: Guernica está repleto de pequenas mensagens e significados. Basta que o espectador tenha bons olhos para percebê-lo. Vamos aos exemplos.

Há um claro ataque à cultura espanhola (e percebe-se isso na presença exuberante e destacada de dois animais na tela: o cavalo e a touro). Com o passar dos anos cheguei a fazer uma correlação forte entre a tela e o livro O verão perigoso, de Ernest Hemingway, um apaixonado por touradas. E alguns elemenros possuem escrituras internas (como se fossem páginas de um jornal). Isso, reforçam alguns críticos, refere-se à maneira como o pintor ficou sabendo da notícia do bombardeio na época: através da imprensa, já que morava em Paris na ocasião. 

As múltiplas imagens de sofrimento - o soldado morto no chão; uma mãe que chora a morte do filho nos seus braços; uma mulher em desespero enquanto sua casa é destruída, em chamas; uma mulher com a perna ferida, que tenta fugir do caos; uma outra mulher com um lampião na mão - são arquétipos do horror causado aos seres humanos, e uma prova viva do quanto a vida humana não valia absolutamente nada para aqueles que perpetraram toda aquela barbárie. 

Isso sem contar a imagem da espada quebrada (alusão à derrota do povo diante do totalitarismo) e, claro, os edifícios pegando fogo (ou seja: não somente a destruição da cidade de Guernica, mas de toda a Espanha durante o período da Guerra Civil). 

Ao final de tamanha exuberância e dor em forma de artes plásticas, vêm à minha mente duas informações imprescindíveis: a primeira, a de que dificilmente outra obra na história da arte mundial conseguirá me passar tamanho volume de informações, não importa o quanto tente; e segundo, eu espero que um dia consiga ver Guernica com meus próprios olhos. Seja eu indo até onde ela está, seja ela dando as caras no Brasil. 

Talvez muitos digam: "acho que é mais fácil você melhorar de vida e ir à Europa vê-la do que ela dar as caras no país". Contudo, eu dizia o mesmo de Abaporu, tela de Tarsila do Amaral definidora do movimento modernista, e consegui vê-la no Museu do Amanhã sem pagar um centavo por isso. Logo, ainda não é tarde para sonhar. 

Enquanto isso... Que o sonho e a grandiosidade por Picasso e sua obra extraordinária permaneçam em minha mente! 

domingo, 7 de abril de 2019

Comemoremos?


Este é um poema triste 
sobre a derrota de uma nação 
repleta de homens sem memória
e de interesses escusos. 

Caso se sintam ofendidos 
não culpem o autor
e sim a quem praticou tais atos.

(E não, eles não são inocentes ou ingênuos.
Longe disso!)

Começa desse jeito:


"Não foi bem assim", 
disse o Presidente recém-empossado 
menos de 100 dias no comando do país. 
"Não foi bem assim", 
disseram seus ministros,
patentes iguais ou superiores à sua
orgulhosos de sua arrogância. 
Não foi bem assim", 
gritaram nos quarteis a plenos pulmões
generais, coroneis, majores
esgares de ódio nos olhos vermelhos, raivosos. 
"Não foi bem assim", 
concordaram os eleitores alienados, 
pau mandados nocivos
produtos de massa amorfa 
desinformada
esculhambada 
introvertida
lobotomizada. 

"Não foi bem assim", 
gritaram todos juntos 
um coro lamentoso (digo: enganoso)
cheio de vontade de incomodar. 

"64 foi lindo, 
salvou o país, 
salvou todos nós da miséria,
não fossem eles... sei não!".

"Errado é sempre o outro", 
dizia meu professor de história do segundo grau
(hoje chamam de ensino médio)
gozado!
hoje em dia ninguém mais fica na média
não foi à toa que a aprovação automática voltou... 

Tudo que era ruim 
ruim mesmo 
voltou
(não sei pra quê).

Ruas cheias para comemorar o...
O quê mesmo?
Já não lembro mais. 
Não participo há tempos 
de nada que envolva multidões de ignorantes. 

De ignorante já basta o país 
índices educacionais inferiores a Serra Leoa
e universitários orgulhosos de seus diplomas 
que não passam de papeis sem serventia alguma 
pois nas ruas nunca antes coabitaram tantos camelôs. 

Estão comemorando a data, o ano,
lá se foram 55 anos
(e tem gente querendo que tudo isso volte)
repito: não sei pra quê.

"A festa é fruto desse desespero torpe e mordaz que rege nossos habitantes, sedentos por justiça. De preferência, para eles", 
explica um filósofo de butique
num desses muitos programas de tv 
que fingem debater a política interna deste país. 

Certa vez um grande pensador disse 
que enquanto não houver educação por aqui 
nada mudará 
pois quem não estuda não pensa, muito menos reflete 
não toma decisões hábeis. 

Em outras palavras: 
vira um inútil.

No entanto, 
o que chamamos de educação, afinal de contas? 
Portadores de certificados de conclusão evasivos?
Meu Deus,
tende piedade de nós!

Na zona sul ruas lotadas de "cidadãos de bem"
que requisitam seu direito à serem... bestiais. 
O passado virou sinônimo de mentira 
de história para boi dormir.
"Não foi nada disso!", 
grita uma mulher raivosa na casa dos 80 anos, 
mais de 50 vivendo no regime casa-trabalho-casa
e se achando reserva moral da sociedade que ela mesmo não conhece.

E os filhos e os filhos dos filhos e os filhos dos filhos dos filhos dessa senhora  a chamam de sobrevivente desses tempos gloriosos...
Coitados! 

Eu ligo a tv e contemplo fileiras de bobalhões maquiados 
camisas da seleção de futebol no corpo
rostos em verde e amarelo 
cantando o hino nacional errado 
mão no peito 
semblantes sofridos 
mas orgulhosos de exaltarem a abominação. 

Sim, foi isso mesmo que você leu. 

Vivemos tempos abomináveis
de escuridão imposta a fórceps
de notícias fake bem construídas
de distorções necessárias para seguirmos em frente. 
"Pois só assim seremos democráticos de fato", 
complementa um deputado federal na plenária no dia anterior, 
acusado de crime de peculato 
mas que adora chamar o povo de vagabundo. 

Até mesmo nas reuniões familiares 
ficou difícil travar qualquer espécie de debate.
O candidato que "uniria a nação"
tornou-se o homem que afastou parentes 
delimitou regras de comportamento para todos aqueles 
que divergem de suas opiniões. 

Pai contra filho 
irmão contra irmão
genro, cunhada, neto, primo, sobrinho 
não sobra um.

Ser diferente nem pensar! 

O que é diferença mesmo?

Ah! 
tem a história dos filhos pequenos!

O menino que não vestiu azul 
apanhou dos colegas na escola 
e foi chamado de bicha pelos pais deles
a menina que não vestiu rosa 
foi chamada de anormal 
pelas amiguinhas que se vestem de miniputas 
para ir a boates e danceterias 
mas se apresentam como damas da sociedade. 

Detalhe: 
os pais não educam mais seus filhos 
não têm tempo. 

De novo: 
foi isso mesmo que você leu. 

Enquanto isso, 
na casa da família Silva...

Tio!
Que foi? Vai fazer sua palavra cruzada, menino!
Qual o sinônimo de filho da puta?
Quantas letras? 
Nove. 
Religioso. 
Pai, se alguém te ouve falando isso...
Eu não conto pra ninguém se você também não contar.
Tá bom. 

Pois é...
Tá ruim pra todo mundo
com fé ou sem. 

Voltemos à comemoração?
eu sei, eu sei... mas ainda não terminou.
ela foi planejada para durar o dia inteiro.

O enxame de engravatados
privilegiados de raiz
bem sucedidos 
religiosos de respeito
conhecedores da moral e dos bons costumes 
esvazia taças de champanhe veuve cliquot 
enquanto entoam gritos de 
"direitos iguais para todos!". 

E quem recriminou o ato 
que vá pra Cuba ou pra Venezuela 
é logo ali!

Enquanto isso
mal sabem eles
a lama invade Minas Gerais e Rondônia
as escolas são tomadas por atiradores de elite menores de idade
e corruptos compram corruptos para aprovar uma tal de "reforma"
(Ah se Martinho Lutero e Ítalo Calvino ouvissem isso!)

Eu sei que a estrada por aqui 
nunca foi de fato em linha reta, 
mas nos últimos anos, cá pra nós, 
virou uma curva infinita
maior do que a Estrada de Santos que o Roberto cantou. 
Entramos num túnel que não tem fim 
lâmpadas quebradas 
breu total 
e os pivetes doidos para fazer arrastão. 

"São menores", 
diz a imprensa sensacionalista.

Depois de tanta notícia ruim 
eu decido desligar a tv 
jogar o jornal no lixo 
e ir dormir mais cedo
(o dia hoje não mereceu meu respeito).

Deito na cama 
e me lembro de um detalhe:

No passado 
o Drummond (você sabe, o poeta) 
perguntou para o José:
e agora?
Agora 
eu pergunto pra você 
que conseguiu ler esse "poema" até o fim:
como é que fica?

Fica? 

Quando eu acordar 
te digo. 

terça-feira, 2 de abril de 2019

O Woody Allen do cinema nacional


Quase dei mole e deixei passar o falecimento do ator, dramaturgo e cineasta Domingos de Oliveira que nos deixou no último dia 23, para tristeza dos fãs da boa narrativa (artigo de luxo, quase em extinção no Brasil atual, cheio de fake news e gente querendo recontar a história do país à sua imagem e semelhança). 

Muitos viam Domingos como um reles burguês que falava única e exclusivamente das alegrias de seu povo (no caso, a classe endinheirada e avessa a qualquer comportamento que não seja o dela mesmo). Eu, no entanto, analisando tudo o que li e vi dele, digo aqui que não concordo com tal visão. 

Conheci a obra de Domingos, na verdade, através de sua filha, a atriz Maria Mariana, que escrevera a peça Confissões de adolescente, um sucesso entre os adolescentes da minha época de leitor de Marcos Rey e Orígenes Lessa (publicados pela hoje cult coleção vaga-lume da Editora Ática). Eu não sabia que ela era filha dele e acabei usando minha falta de conhecimento como mote para encontrar seus textos em algum lugar, antes mesmo da internet vingar aqui no Brasil. 

Durante muito tempo li seu blog, disponível no site da Casa da Gávea e fiquei admirado com sua inteligência e conhecimento literário. E disse para mim mesmo: preciso ver o cinema dessa cara com mais frequência. 

Ainda não consegui assistir sua cinematografia do jeito que eu desejo, mas do que vi, posso afirmar: foi um dos poucos realizadores cinematográficos que expôs as distorções da elite, sua eterna mania de apontar os defeitos dos outros às gargalhadas e, no entanto, não conseguir lidar com os seus próprios. E na hora de mostrar os defeitos sempre carregou na fina ironia, mostrando o quanto a dor e o ressentimento podem aparecer nas entrelinhas de tanto deboche e esnobismo. 

Em sua série (uma quase trilogia) que engloba Amores, Separações e Feminices, realizou um grande ensaio sobre o niilismo de uma geração que adora vender a imagem de autosuficiente, pregando o velho discurso de "não preciso de ninguém", "estou além dos problemas vividos pela classe assalariada". Não se iludam! Tudo não passava, no final das contas, de uma grande e infeliz fachada. 

Seu filme mais famoso continua sendo o primeiro, Todas as mulheres do mundo (de 1966), que traz como protagonista sua mulher na época, Leila Diniz (que depois viraria musa do cinema nacional, chegando a ficar conhecida como uma mulher à frente do seu tempo por sua imagem grávida de biquíni na praia). 

Entretanto, recomendo aos fãs da sétima arte o ótimo BR 716, seu último longa, em que foi personificado pelo ator Caio Blat. Ali, ele realiza um retrato da falência da burguesia carioca, sempre amarrada a velhos ideais e querendo posar de vitoriosos o tempo todo. Posso afirmar com tranquilidade: o filme funciona como grande fio condutor para entender a vida desse homem de sábias palavras. 

Seu teatro também não foge à polêmica em muitos momentos, mas uma polêmica sempre misturada a um humor refinado. Gostava de dizer para meus colegas cinéfilos que via Domingos como o nosso Woody Allen, pois ele gostava de mostrar a insegurança da elite e a fragilidade das relações humanas. E mesmo que eles não concordassem à primeira vista ou achassem minha opinião exagerada, entendiam meu ponto de vista. Principalmente aqueles que leram Todo mundo tem problemas sexuais, um de seus espetáculos mais debochados e Allenianos, no qual é encarnado por Pedro Cardoso, hoje vivendo em Portugal. 

Em 2011 a atriz Maria Ribeiro realizou um documentário (praticamente uma homenagem) sobre o diretor e mostrou uma outra faceta dele: a do cara querido pela classe, que adorava reunir os amigos em sua casa, no teatro, no set ou onde mais fosse capaz de gerar um bom bate-papo. 

O cinema nacional perde um de seus nomes mais cariocas (e olha que já havíamos perdido não tem muito tempo o também ótimo Hugo Carvana!) e deixa no peito dos fãs da boa sétima arte uma saudade que não tem tamanho exato. Uma pena. Precisamos de mais gente como Domingos hoje em dia. 

Descanse em paz, mestre!!!