segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Rachel de Queiroz, 2 visões sobre o Nordeste


Em meio a tantos livros espalhados em pilhas dentro de casa, acabo por fazer uma escolha inusitada e pego um volume com duas peças da escritora Rachel de Queiroz.

Os textos: "Lampião" e "A beata Maria do Egito".

Achei a leitura de ambas atualíssima, em tempos de fanatismo religioso a todo vapor no Brasil e desdém à cultura popular nordestina.

Na primeira acompanhamos a saga do cangaceiro Virgulino e sua amada Maria Bonita, relida de forma particular pela autora. E no texto seguinte vemos a ascensão de uma jovem líder religiosa que compra a briga do Padre Cícero, visto como inimigo pelo Estado.

Traições, embate entre fé e lucidez e a descoberta de um região do país que não vive as mesmas benesse da área metropolitana ditam as tramas de forma coesa e singular.

Ótima opção para quem quer fugir de best-sellers vazios e essa babaquice que o mercado editorial chama de auto-ajuda (mas que, no fundo, nunca ajudou ninguém).


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Breve reflexão sobre Os Fabelmans


Termino a sessão numa sala vazia pensando: hollywood não é mais a mesma.

"Os Fabelmans, de Steven Spielberg, é uma carta de amor ao cinema", dizem vários tabloides e sites sobre cinema. 

A frase é clichê toda vida e nem o diretor que encantou gerações gosta dela como definição para seu último trabalho. E o filme certamente diz muito mais do que isso. 

De chato mesmo só a pífia bilheteria que acabou ofuscada pela ovação quase uníssona da crítica, que parece ter eleito o longa como o seu favorito ao Oscar desse ano. 

E em meio ao belíssimo relato semiautobiográfico do diretor que nos entregou E.T, Tubarão, Contatos imediatos do terceiro grau, A lista de Schindler, Jurassic park e tantas outras obras de arte, um dado curioso: o público boicotando nas telas o homem que praticamente inventou as matinês. E tudo em prol de baboseiras com selo Marvel ou DC. 

Eu poderia me perguntar se a sétima arte enlouqueceu de vez, mas não... É apenas um novo público, que prefere a alienação de heróis e criaturas sobrenaturais à histórias de vida sólidas, de gente que sempre soube produzir arte e cultura como ninguém. 

E isso é uma pena. Mais do que isso: uma covardia. Resta saber até quando...  


sábado, 11 de fevereiro de 2023

Dorothy visita o circo dos horrores


Depois de passar toda a minha adolescência lendo clássicos da literatura brasileira e internacional (com destaque para meu eterno encantamento com Shakespeare e Fernando Pessoa) descubro a beat generation meio por acaso. E me deslumbro de cara. Eles enfrentavam o sistema, negavam o estabilishment americano com unhas e dentes. Eram outsiders até a raiz do cabelo. E com Jack Kerouac aprendi que os loucos, os incompreendidos, os relegados à segundo plano, mereciam toda a atenção do mundo. 

On the road pôs meu mundo particular de cabeça pra baixo. E ele se encontra lá até hoje. Eu sei... Vocês devem estar se perguntando: "Mas esse texto não é uma crítica cinematográfica?". Sim, meus ansiosos leitores! Mas eu não consegui evitar esta introdução, pois ela dialoga abertamente com o filme que será analisado a seguir. 

Assim como Kerouac e os beats, o cineasta David Lynch também abriu meus olhos para esse mundo que a mídia, o Estado e a sociedade hipócrita teimam em varrer para debaixo do tapete. E o seu primeiro longa que conseguiu fazer isso comigo talvez não seja o preferido do diretor para muita gente, mas certamente tem a dose ideal de loucura mesclada à fantasia - como ele bem gosta de contar suas histórias. Falo de Coração selvagem.  

Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern) são um casal que se ama alucinadamente. Contudo, a love story que os acomete é diferente de qualquer padrão do gênero que você, espectador, já possa ter visto previamente. Eles ultrapassam qualquer normalidade. Parecem grudados num só corpo. E é exatamente essa postura doentia do casal que perturba Marietta Fortune (Diane Ladd), mãe de Lula. Por isso, ela fará de tudo para separar os dois. 

Após uma briga em que Sailor mata seu adversário ele vai preso. Anos depois ele é solto, o casal se reencontra e cai na estrada. Estão dispostos a levar essa história romântica às últimas consequências. Marietta, revoltada, contrata alguém para matar Sailor e dar fim aquele casal. O resultado? Um anti-road movie de consequências mórbidas. 

São muitas as imagens psicodélicas e furiosas que regem o filme. Aliás, que regem a carreira de Lynch, mestre em criar estereótipos os mais diversos. Personagens meio excêntricos meio malditos (como o golpista Bobby Peru, vivido por Willem Dafoe), menções ao clássico O mágico de Oz (até a Bruxa má do Oeste persegue o carro do casal numa cena), incêndios, cenas de sexo tórridas, Sailor cantando frente a uma banda de rock, até mesmo a canção cult "Wicked Games", de Chris Isaak, diz muito sobre a personalidade desse casal. 

Em seu íntimo, Lula é a versão dark e confusa da ingênua e doce Dorothy com seus sapatinhos vermelhos atravessando a estrada de tijolos amarelos à procura do mágico que a tire daquele lugar. Só que aqui, mais grave, todos se mostram traidores, embusteiros, canalhas. Visam seus interesses únicos (e sórdidos). E isso deprime Lula ao longo da viagem. 

Já Sailor está anos-luz de ser o mágico, o libertador. Ele parece mais um apetite sexual, com sua jaqueta de pele de cobra, prometendo a ela cantar "Love me tender", de Elvis, quando tiver a certeza de que Lula é a mulher de sua vida (detalhe curioso: nessa época ele era casado com a recém falecida Lisa-Marie Presley, filha do rei do rock).

Então o que esperar desse encontro, dessa história, que parece bem mais uma ode ao desespero do que uma jornada de autoconhecimento, como estamos acostumados em outros road movies? Certamente uma visita de Dorothy ao circo dos horrores em que se transformou a humanidade. E, nesse caso particular, nem mesmo os fortes têm certeza se sobreviverão. 

É, meus caros amigos, Lynch não facilita pra ninguém. E como eu sempre procurei o caminho espinhoso em livros - como dito no parágrafo de abertura - e filmes, fico em êxtase a cada tomada, cada decisão, até o desfecho com cara de musical B improvisado (tá, vão me criticar aqui... mas foi a sensação que eu tive). 

Para quem não conhece essa joia rara do cinema americano, está esperando o quê, meu filho? Corre atrás! Já não se fazem mais experiências como essa em hollywood. Pelo menos não com a mesma frequência da década de 1990. E isso, eu sei, é triste. Muito triste. 


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Uma fenda no tempo musical


Alguns discos - memoráveis, é bom que se diga! - nos fazem sair pela pista de dança bailando, alucinados. Já outros, fora do óbvio, ao final da ultima faixa nos remetem a sentimentos como "que porra é essa?" e nos deixam sem chão. E há ainda um terceiro grupo: o daqueles que são verdadeiras e incontestáveis experiências sonoras, únicas, ímpares.

The dark side of the moon, álbum clássico da banda Pink Floyd que completa 50 anos em 2023 e permanece autêntico da primeira à última faixa, certamente faz parte deste terceiro time e com folga.

A primeira vez que eu o ouvi - e eu tinha um pouco mais de 14 anos, estudante do ensino médio, garimpando livros e discos em sebos - acreditei se tratar de uma grande viagem interplanetária rumo a um mundo inexplorado. Na segunda, refiz minha analise e pensei: "Não. Trata-se de uma fenda no tempo em forma de música, isso sim". E de lá pra cá venho meio que desconstruindo essa ideia.

Em meio a guitarras elétricas inebriantes, vemos outros elementos (alguns deles não necessariamente partes integrantes do universo musical) ganhando protagonismo e fazendo meu cérebro se perguntar a todo momento porque estão ali.

Refiro-me aos relógios despertadores em "Time" (com folga a música mais famosa e interessante do disco), a voz inebriante e poderosa da backing vocal em "The great gig in the sky" e da máquina registradora contabilizando cifras em "Money". Esses sons não roubam a cena. Pelo contrário: complementam ideias. 

E o Pink Floyd, no quesito rock n' roll, sempre esteve muito além da alegria festiva dos Beatles, do hard rock do Led Zeppelin bem como do mais sujo heavy metal. Em outras palavras: eles sempre foram experimentais em essência. Essa sempre foi a grande marca registrada da banda e mesmo depois que os integrantes seguiram em carreira solo.

No caso de Dark side ele poderia com todo mérito, se quisesse, se tornar a trilha sonora de qualquer longa cinematográfico de ficção científica das décadas de 1980 e 1990. Assistiria tranquilo filmes como Tron e Outland: comando titânico embalado por essas canções que fogem à primeira (e segunda vista) de qualquer convenção social.

Sim, The dark side of the moon divide opiniões entre roqueiros clássicos e moderninhos. E cá entre nós: está tudo bem. Acho até louvável essa postura do trabalho. Para os não iniciados na banda demanda tempo e eu recomendo a esses que comecem por outros trabalhos. É preciso uma audição prévia do grupo para entender quais as intenções aqui. 

Mas depois que você, ouvinte, pega o jeito e deslancha... ah! é um deleite. 

Li hoje um artigo na revista Rolling Stone que diz que o ano de 2023 foi meio que inicializador de muitas bandas e boas ideias acerca do rock (dentre elas, este disco). Logo, procurem. Deem uma chance a essa inovadora revolução. 

Até porque se levarmos em consideração o que a indústria fonográfica virou nos últimos anos, com tanta voz deturpada por autotune e tanta coreografia distraindo o público, não é todo dia que trabalhos inusitados como esse acontecem. E chamam tanta atenção.