sexta-feira, 24 de junho de 2022

O fenômeno das videolocadoras


Saudade de entrar naquela loja em Ramos, súbúrbio da Leopoldina, e falar com o Tino, dono da locadora, ex-bombeiro aposentado, perguntar sobre os lançamentos da semana ou do mês. E ele sabia que eu era fã do Terry Gilliam, do Woody Allen e do Roger Corman (um cineasta que, infelizmente, anda esquecido e precisa ser resgatado pelas novas gerações).  

Para aqueles que hoje vivem a era dos streamings e a falsa sensação de diversidade ou variedade dos catálogos é difícil entender que, não muito tempo atrás, esse mundo era dominado por um fenômeno: o das videolocadoras. 

Era um estabelecimento simples, nem tão grande assim, repleto de prateleiras, cheias de filmes, no princípio VHS (ou fitas de vídeo), posteriormente DVDs. Divididos em seções catalogadas por gêneros - terror, guerra, faroeste, comédia, etc - e separadas entre as produções recém-chegadas e os filmes antigos. 

Sábados e domingos eram os dias que mais enchiam e alguns desses estabelecimentos faziam promoções e pacotes. Na locadora a qual eu era sócio pagamos um valor referente a 15 filmes e alugávamos 30! E tinham listas de reservas para os filmes mais procurados. Por causa delas, eu levei dois meses para conseguir rever Batman, de Tim Burton, em vídeo (isso depois de assistí-lo no cinema umas três vezes!).

E então você, locatário, se dava conta de que fazia suas próprias listas, mesmo que mentais: 


O filme que eu mais aluguei: Os goonies, de Richard Donner.

O gênero que eu mais assistia: terror.

O diretor que eu mais revi: Stanley Kubrick.

O dia que eu mais ia na locadora: sexta.

A minha musa de hoje, amanhã e sempre: Natalie Wood.

O herói de ação foda: Sylvester Stallone. 

E etc etc e haja etc...


Havia a seção dos filmes eróticos e nós, adolescentes, tentávamos burlar os funcionários da locadora e adentrar aquele espaço. Nunca conseguíamos. Havia até uma funcionária em particular, com seus óculos fundo de garrafa, que marcara o meu rosto. Ela sempre sabia quando eu ia tentar invadir aquele espaço e antecipava a sua vigilância. Nunca consegui enganá-la. Depois até rimos disso e nos tornamos amigos. 

Anos depois ouvi que em São Paulo os cinéfilos de locadoras eram ainda mais fanáticos do que aqui no Rio e eu acredito. São Paulo quando ama, quando é apaixonado, é acima da média. Sempre. 

Foi por causa das videolocadoras que eu comprei o meu primeiro caderno espiral e comecei a escrever minhas primeiras críticas. Às vezes pequenos apontamentos ou aspectos de um filme ou outro, uma trilha sonora aqui, um figurino ali, a maquiagem do Rick Baker em Um lobisomem americano em Londres, filme de John Landis, acolá. 

O clube dos cinco, a franquia Indiana Jones, Rocky, Rambo, O exterminador do futuro, Curtindo a vida adoidado (hoje mais conhecido como "o filme mais famoso da sessão da tarde"), Alien, Gatinhas e gatões, Dirty Dancing, o cinema brucutu com Van Damme, Chuck Norris, Dolph Lundgren, Wesley Snipes e companhia limitada, Sexta-feira 13, A hora do pesadelo, Halloween, os clássicos com John Wayne, William Holden e Clint Eastwood que o meu pai pedia para alugar pra ele... 

Tudo isso e mais o que a minha memória não lembrou nesse exato momento fez parte desta história. Para situar os viciados em cronologia, leia-se: o final dos anos 1980 e início dos 1990. 

Hoje tudo isto é visto como cult, como vintage, e acho tudo isso um tanto saudável. Sou um nostálgico por natureza. Mas só quem viveu realmente, quem esteve lá, quem saiu de casa com a sua listinha no bolso da bermuda e voltou com as fitas (ou DVDs) embaixo do braço, sentou na sala em frente ao aparelho, duelou com a maldita tecla tracking que nunca ajeitava a imagem quando ela estava tremida, fora de foco, e ficava puto quando o filme não trazia trailers, só esse indivíduo sabe realmente o que foi esse período mágico. 

Quando a Blockbuster chegou por aqui, dentro de mim eu já sabia: "acabou". Não era mais a mesma coisa. Era tudo perfeito demais, irretocável demais, cheio de regras em demasia. Deu no que deu. E não foi à toa que o futuro disso foi a Netflix. Mas essa é uma outra história... que não cabe aqui. Nesse delírio juvenil escrito por um quarentão que não esquece o quanto foram bons aqueles dias, semanas, meses. 

Repito: saudade de entrar naquela loja em Ramos. E o mais triste é saber que a máquina do tempo só existe (ainda) no Delorean da franquia De volta para o futuro. Que inveja do McFly! 


domingo, 12 de junho de 2022

E.T telefone minha casa


Você entende de uma vez por todas que cinema não se trata apenas de ver filmes quando, mesmo criança e ainda sem compreender nada sobre a vida, se depara com um longa que virou o seu mundo de cabeça para baixo. E ele nunca mais saiu daquela posição. 

Eu tinha apenas seis anos quando fui ao Cine Olaria, na zona da Leopoldina no Rio de Janeiro, com minha mãe assistir E.T - o extraterrestre, de Steven Spielberg. Não fazia a menor ideia de quem era Spielberg e nem sequer a sinopse do filme eu conhecia. E ainda assim eu decidi naquele exato momento: "eu quero que isso, essa coisa chamada cinema, faça parte do resto da minha vida". E assim foi. 

E agora, em 2022, E.T completa quatro décadas de existência sem perder uma vírgula do seu charme. 

A história de Elliott (Henry Thomas), que vive uma rotina enfadonha num subúrbio dos EUA junto com a mãe e os dois irmãos e aguarda ansioso que o pai volte para casa e cuja existência é completamente modificada quando descobre que um alienígena está escondido na sua garagem, ganhou multidões ao redor do mundo e o selo de "filme infantil de uma geração". Contudo, ele sempre foi bem mais do que isso. 

Spielberg, que já era lendário por Tubarão e Contatos imediatos do terceiro grau, aqui entrega o seu filme família por excelência e nele vemos muitos dos dilemas do próprio diretor (como, por exemplo, a difícil relação com o próprio pai).

O extraterrestre, por sua vez, representa a essência da amizade - algo que Elliott até então nunca teve - e é, por si só, também um espécime perdido numa terra estranha, tendo em vista que se perdeu de sua nave e agora precisa de ajuda para voltar pra casa. 

Como pano de fundo para compor a narrativa, o cientista clichê que aguarda ansioso, há anos, por esse contato imediato (e que também possui muito da solidão de Elliott), referências ao halloween e a rotina escolar dos norte-americanos e, claro, cenas mais do que inesquecíveis para a história do cinema, como a eterna fuga das bicicletas. 

E passados 40 anos ainda me pergunto o que faltou para que Spielberg realizasse uma continuação desse clássico (embora, em meu íntimo, eu acredite que no final das contas ele acabou fazendo a coisa certa!). Mais: por que esta fórmula de sucesso nunca se repetiu? Embora J. J. Abrams tenha tentado com Super 8, a verdade é única: nunca mais hollywood conseguiu reproduzir de maneira genial a relação entre o garoto solitário e o melhor amigo alien. O que, confessemos, é uma pena! 

Ao fim, E.T constrói como legado final um interessante ensaio sobre a infância e a traumática transição para a vida adulta numa época em que o cinema americano ainda tentava se libertar das constantes revoluções e questionamentos promovidos pela nova Hollywood na década anterior. 

E eu, para minha eterna alegria (pois não fossem longas como este não estaria até hoje escrevendo sobre sétima arte), continuo me lembrando daquela criatura que, com o dedo brilhando, curou o dedo cortado do menino e o convidou para ir embora com ele na sua nave. Honestamente... Se eu fosse o Elliott, tinha ido. O mundo piorou muito de lá pra cá.   

sábado, 4 de junho de 2022

A dama do teatro


É difícil falar sobre lendas porque elas existem num número cada vez menor à medida que os anos passam. Não é em qualquer esquina que encontraremos um Pelé, uma Nadia Comaneci, um Shakespeare, uma Pina Bausch. Não mesmo. E mais: eles são frutos de anos e anos de dedicação, esforço e transpiração (e não inspiração, como muitos preferem dizer). Logo, quando nos deparamos com uma, fica um certo gosto de satisfação na garganta. Afinal de contas, eles têm o necessário - tem quem chame de dom - para apreender a nossa completa atenção pelo tempo que for. 

Abigail Izquierdo Ferreira (ou, simplesmente, Bibi Ferreira) era uma dessas. E mesmo que não tivesse feito absolutamente nada em sua carreira artística, ainda assim seria conhecida por várias gerações como "a filha do diretor de teatro Procópio Ferreira", outra lenda inegável desse país. 

Mas não pensem que ter o renome da família foi o suficiente para ela, que completa seu centenário em 2022 (Bibi faleceu aos 96 anos, em 2019, de parada cardíaca). A menina que estreou nos palcos aos 24 dias de vida, substituindo uma boneca que desaparecera antes do início do espetáculo Manhãs de sol, escrito por Oduvaldo Vianna (pai) e foi recusada pelas freiras do Colégio Sion por ser "filha de artistas" ralou - e muito - até conseguir o respeito das plateias brazucas e internacionais. 

Bibi estudou balé - na verdade tinha o sonho mesmo de ser bailarina e não atriz -, canto e música. Veio de baixo, aprendeu com os melhores do ramo, estudou na Royal Academy of art, fez parte de todos os movimentos teatrais que fizeram a cena no brasil entre os anos 1940 e 1970 (TBC, Arena, Oficina, etc), atuou no longa Fim do Rio, de Michael Powell, trabalhou com Glauber Rocha no cinema novo, montou sua própria companhia, até apresentadora num programa de variedades na TV Excelsior ela foi (e entrevistando a nata da cultura nacional na época). 

E isso tudo não explica nem metade do que ela já fez. 

Entre as peças que definem sua carreira, é complicado chegar a um consenso e certamente os críticos se dividirão aqui e irão eleger seus favoritos, logicamente. Além de adaptações de clássicos literários como O noviço, de Martins Pena; A senhora, de José de Alencar e A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, ela também participou, dentre tantos outros espetáculos, de Gota d'água, My Fair Lady e Alô Dolly.   

Além disso, em sua faceta cantora, realizou shows com repertórios em homenagem à Edith Piaf (este um sucesso arrebatador, quando foi lançado), Amália Rodrigues e Frank Sinatra, bem como viajou o país inteiro com o seu Bibi in Concert, no qual se apresentava com orquestra sinfônica. 

E uma curiosidade importante para que o público entenda o quanto Bibi foi eclética em sua carreira: ela dirigiu tanto Brasileiro: profissão esperança, com cantoras do primeiro escalão da MPB, como o Gay Fantasy, show travesti na Galeria Alaska, e que tinha como estrela Rogéria, com quem depois retomou a parceria no musical Roque Santeiro, baseado em peça de Dias Gomes e que fora sucesso como novela na Rede Globo.

Quer saber mais sobre essa senhora formidável? Pois bem: em homenagem ao seu centenário a atriz e jornalista Jalusa Barcellos lança a biografia Bibi - a saga de uma diva, no qual faz um relato afetivo de quem conviveu com a atriz e diretora por quatro décadas. E, além disso, o Teatro Riachuelo, no centro do RJ, traz de volta o espetáculo Bibi, uma vida em musical, de autoria de Artur Xexéo e Luanna Guimarães, e dirigido por Tadeu Aguiar. Quem interpreta Bibi nos palcos é a atriz Amanda Acosta, em atuação elogiadíssima e vencedora de vários prêmios teatrais.

Só faltou mesmo dizer que essa grande dama do teatro vai fazer muita falta no atual cenário cultural do país, que nos últimos anos vem perdendo grandes nomes com frequência e com uma renovação que ainda deixa muito a desejar. Salve Bibi! E principalmente: vida longa ao teatro brasileiro!