quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O homem que inventou as matinês


Certa vez, durante um programa sobre sétima arte transmitido pelo canal a cabo TNT, o crítico de cinema Rubens Ewald Filho disse sobre o diretor Steven Spielberg que ele "praticamente inventou a matinê". E ele estava absolutamente certo. Digo mais: Steven Spielberg reinventou a maneira da sua geração e das próximas gerações pensarem e assistirem cinema. E falo isso com a experiência de quem, ainda moleque, aos míseros seis anos de idade, encarou uma fila gigantesca no cinema Olaria para assistir E.T - o extraterrestre acompanhado de minha mãe. E acreditem: aquele momento mudou completamente a minha vida. 

Não bastasse tudo o que tive o prazer inenarrável de ver através dos olhos desse mestre (e foram muitos momentos grandiosos: A lista de Schindler, O resgate do soldado Ryan, Contatos imediatos do terceiro grau, Tubarão, Encurralado, Inteligência artificial, Jurassic park: o parque dos dinossauros, etc etc etc), no ano passado a documentarista Susan Lacy decidiu realizar para a HBO um documentário sobre a sua vida. Eu pirei. Acho que se eu pudesse, se eu tivesse influência no meio, teria pedido à diretora para participar do set, só para assistir a produção do longa. Porém, por se tratar de um filme produzido para o mercado televisivo, ele não teria lançamento nos cinemas. Então, como assistí-lo?

Moral da história: durante um ano venho labutando, procurando incansavelmente na internet, por um link, um arquivo, um site que me leve ao filme. E nada. Até que nesta última semana recebo a indicação de um colega cinéfilo - e fanático também por Mr. Spielberg - dizendo: "entra nesse site aqui". Meus olhos foram as lágrimas no mesmo instante. O documentário ali, na íntegra, e ainda por cima legendado (coisa que nem sempre é fácil de encontrar nesse mundo internético louco e que adora seguir suas próprias regras). E o principal: valeu cada segundo da minha noite. 

Spielberg, de Susan Lacy, é filme obrigatório para fãs do diretor e também para aqueles que não conhecem bem seu trabalho ou mesmo passaram a vida tentando rotulá-lo daquilo que ele não era, com intuito de diminuir sua obra. São mais de duas horas de depoimentos, espetáculo visual sem precedentes e também o esmiuçar de seu processo criativo, suas ideias, dilemas, dificuldades ao longo da vida. 

A melhor parte? Além das imagens dos filmes que o eternizaram, é claro!, certamente poder rever atores, atrizes, produtores, diretores que com ele trabalharam nesses últimos 50 anos depondo sobre a grande aventura que foi trabalhar com ele. Richard Dreyfuss, Laura Dern, Drew Barrymoore, Ben Kingsley, Liam Neeson, Ralph Fiennes, Christian Bale, Leonardo Dicaprio, Tom Hanks, Daniel Day Lewis, Martin Scorsese, Francis Ford Copolla, Brian de Palma, George Lucas... Uau! A lista é gigantesca. 

Seus casamentos, o divórcio da atriz Amy Irving, os filhos, a relação traumática com a família, a briga de 15 anos com o pai, o fascínio pela segunda guerra mundial, sua negação na juventude à condição de judeu, tudo está lá, compondo com sua cinematografia o retrato de um homem que enfrentou seus demônios e fantasmas de frente, sem contudo perder a delicadeza e o principal: sem deixar de contar uma história que toque o coração do público (sua marca registrada). 

Muitos tentaram catalogá-lo. Quando começou a rodar filmes mais sérios, como A cor púrpura e O império do sol, foi criticado por fugir de seu estilo comercial, direto, chegando a ser chamado de pretensioso. Quando tentou enveredar pela comédia, com 1941 - uma guerra muito louca (um dos fracassos de bilheteria mais visíveis em sua carreira de sucesso), foi classificado na maldosa categoria "esse não é você, volte para os filmes de aliens e criaturas, cheios de efeitos especiais". E mesmo assim driblou e calou a boca de todos eles. 

A frase que melhor explica no longa essa relação contraditória de Spielberg com os críticos de seu trabalho é dita pela atriz Sally Field, com quem trabalhou em Lincoln, "sempre tentaram dizer sobre seu trabalho que não era o bastante, nem intenso o bastante, nem obscuro o bastante, nem comercial o bastante... Porém, sequer se esforçaram por entendê-lo, entender a gênese do seu trabalho". Perfeito. Passei minha vida ouvindo as pessoas chamarem Steven Spielberg de diretor infantil. No entanto, em Munique seu protagonista faz sexo com uma mulher grávida, em A lista de schindler judeus são executados a sangue frio, e a câmera não se esquiva do disparo um minuto sequer, em Amistad os escravos são torturados diante das lentes... Se isso é ser infantil, eu gostaria de saber o que esses críticos definem como infância. 

No ato final, a diretora lembra - de forma acertada, a meu ver - dos parceiros de set que junto com o diretor fizeram a magia acontecer ao longo das décadas: Janusz Kaminski, John Williams (o alter-ego musical de Spielberg), Kathleen Kennedy, Michael Kahn, Tony Kushner, Vilmos Szigmond e claro a esposa Kate Capshaw que o próprio Steven chama de "minha fortaleza". 

Quando percebo a proximidade dos créditos finais os olhos marejam novamente. Se o trabalho de Lacy fosse uma minissérie de 10 horas de duração ainda assim eu ia querer assistir mais e mais. Ela toca na minha ferida. Expôs o homem que me tornou cinéfilo. Obrigado, Susan! Serei eternamente grato. E detalhe: o que eu tenho de fazer para comprar um DVD desse filme? Onde eu encontro? Eu quero. Muito. 

Ao final da sessão uma certeza: dificilmente Spielberg, o homem que falou de família, de rompimentos e reconciliações, que apaixonou crianças e adultos, nos levou das lágrimas aos sorrisos, terá um substituto (a presença de J.J. Abrams no filme não me convenceu do contrário). Ele é uma força da natureza, um legado de hollywood que, tenho certeza, ainda terá muito o que dizer aos fãs. Basta que esperemos. 

P.S: ah! o remake de West Side Story está vindo aí...

domingo, 25 de novembro de 2018

A mentira nossa de todo dia (Reflexões/VII)


Li numa matéria no jornal El País feita por um antropólogo cultural que "vivemos o triunfo da mentira neste começo de século XXI" e me peguei pensando no quanto esta declaração tinha de poderosa para entendermos o país em que vivemos nos últimos anos. E a conclusão à que chego é: por mais esperançoso que seja, a tendência é piorar. E muito. 

Quando mais novo lembro que a mentira no Brasil já era encarada como um artigo de luxo, um mecanismo de defesa para não termos que lidar com ela, a desprezível verdade. Achávamos a mentira um porto seguro para nossas malévolas intenções e eu, ainda menino, me perguntava quanto tempo aquela mentalidade duraria. Pois é...

Recentemente passamos por um novo processo eleitoral do qual não consegui discernir o que era verdade do que era mentira. Vivemos as eleições das fake news e terminei todo o processo chegando à conclusão de que elas (as fake news) servem aos interesses dos dissimulados, dos covardes e gananciosos que nunca saem do poder, ficam ali alimentando-se da ignorância do povo que se orgulha de ser eleitor, sem no entanto saber de fato votar de forma lúcida (por uma razão muito fácil de entender: fomos adestrados, não ensinados a pensar). 

Contudo, as famigeradas eleições escondem um vilão muito maior: o do racismo, da homofobia, da misoginia, do preconceito em suma, disfarçado de indiferença, de "não é comigo", "não tenho nada a ver com isso", "não é problema meu; eu tenho mais o que fazer". 

A mentira, meus caros leitores, está presente em todos os lugares que se possa imaginar, e dá passos largos em suas maquiavélicas intenções para o futuro do país (e do mundo). Nos States, o "presidente" (não consigo acreditar em milionários tomando o poder!) labuta diariamente para desmantelar todos os projetos e conquistas do antigo governo que o antecedeu. Aqui, vocês sabem... Vocês sabem quem ganhou, mas não quero falar dele. Até porque seu governo não começou. Ainda não. Mas há que se ficar de olho nas mentiras que virão por aí. Pois entra governo, sai governo, é somente as mentiras permanecem. Mais sofisticadas, é bem verdade, mas nem por isso menos perturbadoras e destrutivas. 

Pinóquio, personagem de Carlo Collodi que Walt Disney imortalizou, o menino cujo nariz crescia toda vez que mentia, viraria santo perto do que nossos dirigentes, figuras públicas, celebridades, fazem abertamente na tv e em seus discursos. Digo mais: seria inocentado pelo tribunal do Santo Ofício como injustiçado. Muitos me chamarão de exagerado - expressão que já ouço relacionada a mim desde a adolescência -, mas quem consegue ler as entrelinhas sabe do que estou falando. 

Mentir não é mais pecado do lado de baixo do Equador como em outras épocas. A mentira se presta às transações mais sórdidas e, por que não dizer também?, geniais dessa versão globalizadora da humanidade. Se seres humanos pudessem ser medidos por sua capacidade mentiresca, provavelmente estaríamos fadados à extinção. E nem mesmo as outrora angelicais crianças sobreviveriam ao julgamento final. 

Eu sei... O artigo de hoje pegou pesado. Eu sei. Mas precisava ser dito antes que se perdesse em meio às inúmeras ideias e reflexões que têm povoado a minha mente nos últimos anos. A mentira, meus amigos, é quase um caso de vida ou morte no país e precisa ser investigado o quanto antes, sob pena de nos tornarmos serial killers da verdade. 

A continuarmos por esse caminho tenebroso onde o errado é vendido como certo, o duvidoso é tratado como sinônimo de cristandade, de virtude, de "exemplo de honestidade", onde até mesmo conceitos mais simples como beleza, música, literatura, tornaram-se simulacros da falsidade, confesso: tenho receio de que não terminaremos este século. 

O texto de hoje é amargo porque precisa ser. Somos um povo que precisa de um choque de realidade vivendo num mundo que está ruindo dia a dia (dêem uma boa olhada no que está acontecendo na Europa, nos protestos que vêm rolando nos últimos anos nos EUA, nas tentativas infames de tentarem diminuir as consequências do aquecimento global, etc etc e haja etc). E não nos damos conta. Correção: não damos a mínima, pois não nos afeta individualmente. E vamos para as emissoras de tv para falar em coletividade, sustentabilidade, pacificação, numa retórica que só serve para mostrar o quanto nos tornamos confusos e irreais. 

Antes a esperança não venceu o medo (embora tenha tentado). Agora é a mentira que dá as cartas em meio a uma sociedade violenta, doente, umbiguista e cultuadora de homens falhos que não passam de fraudes ambulantes. Devemos jogar a toalha? Ainda não. Esperemos o dia de amanhã. Porque isso nós sempre soubemos fazer bem: esperar o dia de amanhã. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Se eu quiser falar com Deus


Não é de hoje que eu venho tomando coragem para falar sobre religião ou temas correlatos a ela em um de meus artigos. Digo isso porque o tema em si me incomoda, Muito. E principalmente pela dimensão (ou seria melhor chamar de distorção?) que o discurso religioso vem ganhando no país nos últimos anos. Religião virou motivo de guerra, de dissensões familiares, de brigas (em alguns casos, levando até a morte!) e eu não faço a menor questão de fazer parte do debate. Tanto que não sigo dogmas, pois não acredito que precise pertencer a um grupo ou instituição para ter fé. 

Paralelamente a isso, é visível o crescimento (e posterior sucesso) do gênero gospel nos cinemas. Que o diga a repercussão na internet dos longas A cabana, de Stuart Hazeldine e Em defesa de Cristo, de Jon Gunn. Contudo, como minhas predileções na sétima arte versam sobre outros gêneros, sempre releguei o formato à segundo plano (até que, pelo menos, aparecesse um exemplar que me chamasse de fato à atenção). Foi o que aconteceu com Entrevista com Deus, de Perry Lang, que vinha me deixando curioso nos trailers das sessões de cinema que assistia e pegou dizendo para mim mesmo: "quem sabe a esse eu dê uma chance!". 

Pois bem: chega o controverso (para alguns) feriado da Consciência Negra e com ele a chuva no Rio de Janeiro, fazendo com que eu procure uma opção que não me mantenha preso em casa. Logo, "por que não dar uma chance àquele filme, hein?". Pois é exatamente o que faço. E qual não foi a minha surpresa ao me deparar com uma das melhores propostas de debate que eu vi este ano nas salas de cinema que frequentei. 

Entrevista com Deus traz a história de Paul Asher (Brenton Thwaites) um jornalista que escreve sobre religião para um jornal não-cristão que acaba de chegar do Afeganistão e é recebido com a notícia de que sua mulher o está deixando. Contudo, recebe um convite para uma entrevista inusitada. Comparece ao local e se depara com um homem de meia idade que declara ser Deus e diz ter vindo à terra a seu pedido. 

Começa então um grande debate religioso que envolve temas como ética, moral, salvação, livre arbítrio, céu e inferno, entre outras divergências ainda mais complexas. E mais do que isso: a entrevista intercala com a própria vida de Paul, que se encontra em frangalhos. Detalhe: o jornalista chegou àquele ponto da vida em que sua existência parece ter perdido completamente o sentido e talvez não hajam mais motivos para continuar vivendo. 

Deus (vivido de forma extraordinária e sem arroubos de grandiosidade pelo ator David Strathairn) a todo momento propõe a Paul um jogo mental e analítico - e só para constar: a presença do tabuleiro de xadrez entre eles no primeiro encontro, não está ali por mera coincidência - que o fará questionar sua própria fé e decisões tomadas no passado. Tanto que quando ele descobre o verdadeiro motivo da partida de sua esposa, sua moral sempre tão precisa, certeira, estraçalha, deixando-o no momento mais terrível de sua vida. Porém, as respostas que procura não lhe serão dadas de presente, pois não é disso que trata a implacável vida. 

Perry Lang toca numa questão em seu filme que me rendeu muitas discussões (desnecessárias, a meu ver) ao longo da minha vida: percebe-se nas entrelinhas do roteiro de Ken Aguado o quanto a sociedade contemporânea têm transformado a figura de Deus num grande serviço de utilidade pública. Ou seja, recorre-se a ele sempre que se precisa de uma ajuda (de preferência, monetária) de forma rápida. E do contrário, sequer nos lembramos dele. Não é à toa que nossos dogmas atualmente vivam de dízimos, contribuições, doações, que mais parecem uma versão moderada de "vamos sustentar a igreja, senão ela acaba", isso sem contar as orações de cristãos que se limitam a algum pedido pessoal e mercantil, na linha "me arranja um emprego", "me arranja uma casa", "me ajude a pagar as contas". Triste, eu sei... Mas nem por isso menos real. Um sórdido real. 

O desfecho da história soará simplório demais aos ouvidos de quem confunde fé com interesse (e, cá entre nós, a sala estava quase vazia, diferentemente das sessões de produções cinematográficas feitas pela Rede Record, que adora lobotomizar seus espectadores e fiéis, e por isso vivem cheias), mas era - a meu ver - a única solução possível. Não só para Paul, mas também para toda a humanidade. 

Resumindo minha interpretação do filme: vivemos num mundo contemporâneo onde aprendemos a pedir favores e esmolas, mas não aprendemos a crescer como indivíduos e a lidar com nossos próprios problemas. Buscamos uma existência mais feliz em outro plano, mas não procuramos viver uma vida plena neste plano (então para que serve uma nova encarnação ou plano existencial? Para repetirmos os mesmos erros?), procuramos por salas de espera, onde esperamos por civilizações extraordinárias, mas sequer procuramos entender a nossa própria civilização. E quando debatemos isso com o outro, ele vira o canalha, o insensível, o ateu, o que não entende nada. E "por favor, suma da minha frente!".

Entrevista com Deus será chamado de tolo, de piegas, de formador contraditório de opinião, de balela, de tendencioso. Não tenho dúvidas! Todavia, foi o primeiro filme de cunho religioso nos últimos anos que finalmente se propôs a entender minhas angústias, minhas incertezas, minha descrença com os religiosos, principalmente num mundo onde preferi escolher o terreno da dúvida enquanto todos parecem ter tanta certeza sobre tudo e sobre todos. Em suma, ele prefere contrapor ideias ao invés de corroborar um discurso ou caminho a ser seguido. E essa é, com certeza, sua maior virtude. 

Espero não apanhar muito dos leitores que se permitirem ler esta resenha (sempre que opino sobre religião eu viro alvo de críticas e já fui até chamado de radical por pessoas que eu considerava amigos e acabei por quebrar a cara). Mas de uma coisa tenho certeza, apesar de ser uma criatura que rodeia a dúvida: como é bom saber que eu não sou o único incomodado com o que está acontecendo hoje no mundo quando o assunto é fé!

domingo, 18 de novembro de 2018

São eles os reis da pista agora...


Quem são esses rapazes e moças que revolucionam a dança todo dia nas ruas, nos programas de tv, nos reality shows? Palmas para eles! O mundo precisa de novas ideias de vez em quando.

Passei por esses dias perto da Praça da Bandeira e me deparei com um grupo de jovens na casa dos 18, 20 anos, adeptos da street dance (ou dança de rua, como conhecemos mais popularmente por aqui)  mostrando suas coreografias aos pedestres que por ali passavam. Fiquei encantado! 

Por muitos anos fui reticente à causa deles. Talvez por estar acostumado a ver grandes dançarinos como Gene Kelly, Fred Astaire, Mikhail Baryshnikov, Gregory Hines, Michael Jackson, aprontando das suas em clipes e filmes, e acreditar que pessoas comuns, de subúrbio, não fossem capazes de chegar a tanto, que dirá superar o balé clássico, o sapateado e a revolução coreográfica promovida pelo rei do pop. Estava redondamente enganado. Eles estão por aí, com seus estilos diferentes, cabelos e roupas multicoloridas, fazendo das suas. Os breakers, pioneiros do gênero, certamente ficariam orgulhosos. 

A história do street dance confunde-se com a do funk, mas também tem suas raízes jamaicanas (leia-se: o Afrika Bambaataa, quando as gangues deixaram as armas de lado e resolveram suas diferenças num outro tipo de campo de batalha). Na apresentação que assisti as apache lines, linhas imaginárias que separam os dançarinos de equipes rivais, estavam presentes e mostravam um pouco do espírito daquela época. Era confronto, não guerrilha com direito a tirar a vida de seu semelhante. 

O universo do hip-hop que tornou o street dance a força que é hoje, é dividido em quatro elementos de extrema importância: o rap (sem música não há batalhas que sobrevivem), os DJs (que fazem a massa agitar à base de pancadões e hits furiosos), o grafites (expoente máximo da cultura visual - e marginal - desse segmento) e, claro, a dança. 

E cabe aqui um capítulo à parte para falarmos brevemente dos estilos e modalidades que fazem a cabeça desse povo dançarino: o funky chicken (ou locking), mais coreografado, que tomou as pistas de assalto nos anos 80; o popping (à base de contrações musculares); o boogaloo (feito a partir de movimentos circulares com o quadril); o brooklyn rock; o breaking (pioneiro no gênero) e finalmente, o mais aceito entre adeptos, o freestyle (que, muitas vezes, incorpora vários estilos ao mesmo tempo). Nesse último estilo em especial há competições milionárias e famosas premiando o melhor dançarino na categoria. E esses eventos também já tomaram o país de assalto. 

Ou seja, aquilo que começou a passinhos pequenos em nossas terras, na década de 1970 e 1980, com Nelson Triunfo e Gerson King Combo, até sua consolidação como movimento hip-hop organizado nos anos 199o, agora adentrou o universo televisivo com extrema força e estrutura extraordinária. Procurem pelos realities de competições no gênero exibidos na tv cabo ou mesmo as equipes que comparecem à programas como American Idol e X-Factor e tirem suas próprias conclusões!

Recapitulando: aquele garoto, de pouco mais de 18 anos, que achava uma enorme loucura, aqueles rapazes de cabelões à la black power, dançando nos viadutos negrão de lima da vida e outras "passarelas" mais animadas, hoje vê mesmerizado a grandiosidade que aquela brincadeira se tornou, com patrocinadores de renome, equipes ultraprofissionais disputando com unhas e dentes cada título, isso fora a quantidade de produções cinematográficas em hollywood na linha Se ela danço, eu danço feitas anualmente. 

Em outras palavras, o quarentão aqui parece que envelheceu em demasia e não viu o tempo escorrer pelos dedos, oferecendo novas possibilidades, ritmos e estilos. 

Prometo ficar de olho de forma mais atenta daqui pra frente.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

A lenda dos quadrinhos


É difícil começar este texto. É difícil até mesmo tentar entender a notícia. "Ele partiu", "ele morreu", "ele se foi". Não há frase que justifique ou suavize sua partida. Só nos resta (digo: a nós, fãs de comics e graphic novels) a amarga realidade: morreu, nesta segunda-feira, o genial Stan Lee. 

Primeiramente: se você não sabe quem é Stan Lee pare agora, pois este texto não é para você. Este texto é para os fanáticos por quadrinhos e nerds por opção. E mesmo para esses é difícil explicar em poucas palavras quem foi Stan Lee. Explicá-lo renderia, no mínimo, uma tese de doutorado (e mais: a ser defendida numa das universidades da Ivy League)

Mas resumindo em poucas palavras - se é que isso é possível, em se tratando de tal gênio artístico - ele foi o criador (junto com outras feras do ramo como Steve Ditko e Jack Kirby, só para ficar nos gigantes, pois sim, ele não realizou tudo sozinho; seria puro esnobismo dar a ele todos os méritos por tudo o que a Marvel se tornou durante as décadas!) de grande parte dos heróis que nós, no auge da infância e da adolescência, escolhemos admirar, seguir, acompanhar, bajular, ou qualquer outro verbo que explique essa relação quase doentia entre leitores e personagens. 

Falo mais especificamente de Homem-Aranha, Capitão América, Thor, Homem de Ferro, X-Men, Quarteto Fantástico, Pantera Negra, Nick Fury, Doutor Destino... Melhor parar por aqui porque a lista é imensa e se eu esquecer de alguém, sempre vai ter um fã chato para reclamar depois. 

E isso tudo se tratando de um cara que começou, acreditem!, como preenchedor de textos. Isso mesmo. Que evolução não é mesmo?

Além da obra, que fala por si só, Stan Lee também ficou famoso nos últimos anos por suas aparições super engraçadas nas adaptações para o cinema de muitos dos seus personagens. Conheço gente que ia ao cinema e ficava esperando pacientemente sua rápida aparição para dar uma gostosa gargalhada (chegaram a fazer piada na época em que os filmes da concorrente DC Comics iam mal das pernas, dizendo "bem que o Stan Lee podia aparecer rapidinho para dar uma força aos caras!"). 

Sua fama tornou-se tão vivaz que virou figura recorrente na série de tv The big bang theory, sempre tirando sarro com a cara do Sheldon (Jim Parsons), o mais, digamos, nerd do quarteto principal. O episódio que o personagem tenta invadir a casa de Stan Lee é um dos meus preferidos até hoje!

Contudo, nos últimos anos, ele vinha mal de saúde, internando de quando em quando, por conta de uma pneumonia diagnosticada em fevereiro deste ano e em alguns tablóides, começaram a comentar da dificuldade do velho mestre gravar suas participações nos longas, algo que ele adorava fazer. E eis que chega o momento em que a conta é cobrada e Stan nos deixa aos 95 anos. 

Se há uma pessoa na indústria dos quadrinhos que vendeu com a própria alma o seu trabalho, o seu talento, esse indivíduo foi Stan Lee. Ele poderia ser o avô que eu não conheci. Sempre boa praça, sempre solícito, nunca se negando a dar entrevistas e pequenas dicas sobre os próximos projetos a seguir. 

É com muito pesar que termino este mísero artigo com lágrimas nos olhos. Esse homem foi uma das pessoas que me ensinou a ler, que fez da minha infância algo extremamente divertido. Fica com Deus, Stan! Você merece e merecerá cada honraria que receberá de seus fãs nos próximos dias. 

Será que na próxima encarnação - se houver - eu encontrarei as revistas que você escreveu de novo? Espero ansiosamente que sim.


domingo, 11 de novembro de 2018

A banda que definiu a minha geração


Lembro da primeira vez que ouvi a banda Queen. Foi inebriante em todos os sentidos. A voz de Freddie Mercury, a guitarra de Brian May, a bateria de Roger Taylor, o delírio, a gritaria dos fãs (era o vídeo de um show em wembley). Lembro também da primeira vez que vi na MTV o clipe de "I want to break free", com Mercury vestido de mulher, saia de couro preta, camisa rosada, brincões. Achei um tapa na cara dos provocadores que atiçavam Freddie e sua opção sexual. Ousadia pura. 

O Queen entrou na minha vida desde o primeiro minuto porque eu assim o quis. E mesmo assim lembro de "colegas" me perguntando se eu fazia parte da galerinha (em outras palavras: se eu também era gay e por isso gostava do grupo). Coitados! Não conseguiam curtir um artista além de suas vidas pessoais. Volta e meia reencontro com um ou outro, agora mais velhos. Estão ainda piores do que naquela época. 

Pergunto-me o que eles iriam pensar se fossem ao cinema assistir ao longametragem Bohemian Rhapsody, de Bryan Singer (que mais uma vez prova ser um bom diretor quando não está realizando filmes de super-heróis, que o catapultaram à fama em hollywood). Pena que ele acabou demitido durante a produção, acusado de assédio por uma das muitas mulheres que andam apoiando o movimento Me too atualmente nos EUA. 

Bohemian Rhapsody é um projeto que já nasceu polêmico. Seja pela maneira como a opção sexual do protagonista (vivido no longa pelo ótimo ator Rami Malek, mais conhecido aqui no Brasil pelo protagonista na série de tv Mr. Robot) seria abordada no longa, seja pela eterna mania de certos fãs de defenderem a ideia mordaz de que certas bandas são imortais e não devem ser transpostas para fora de seu cenário original (no caso, os palcos, turnês e festivais). Mesmo assim, Singer comprou a briga e realizou um filme no mínimo honesto (para os fãs mais exaltados) e no máximo uma viagem nostálgica (para aqueles que gostam de lembrar de momentos pontuais da carreira da banda). 

Tudo aquilo que você espera de uma cinebiografia está presente aqui: A voz do vocalista do grupo preservada (não adianta: ninguém ia querer assistir o filme se fosse o ator mesmo cantando... Certas vozes são eternas!), as brigas entre os integrantes, os rachas com gravadoras (aqueles que viram o Queen passar por seus escritórios e mesmo assim o esnobaram), os relacionamentos amorosos envolvendo o protagonista, desde a musa original até os... aham... vocês sabem, as canções mais famosas e como cada uma delas entrou num momento preciso da vida daqueles quatro rapazes. 

Isso sem esquecer, é claro, de quando a AIDS entra na vida de Mercury, tornando a jornada rumo ao sucesso um verdadeiro "andar pelo gelo fino" e a relação obsessiva com Paul Prenter, que quase levou ao fim da banda. 

A grande apoteose de Bohemian Rhapsody é, sem dúvida, a recriação quase mediúnica do show feito pelo Queen no Live Aid em 1985, não deixando de lado momentos específicos que poderiam até ser suprimidos, mas que o diretor fez questão de mostrar para exemplificar o seu fascínio pela banda. Procurem no you tube o vídeo original da apresentação. Tenho certeza que ficarão boquiabertos. 

Entretanto, os brasileiros sentirão uma pontada de orgulho ao ver a lembrança do coro no Rock in Rio (também em 1985) cantando "Love of my life" lado a lado com Freddie, outro daqueles momentos que nunca saíram da minha cabeça e que tornaram a história do rock n' roll certamente mais divertida e gratificante do que ela já é. Eu confesso que quase fui às lágrimas nessa hora, lembrando-me do dia em que a cena aconteceu. 

Bohemian Rhapsody tem suas falhas (como toda cinebiografia que se preze), mas acerta no quesitos nostalgia e emoção. É um filme extremamente emotivo e joga com seu público durante todos os 134 minutos de projeção. Digo: se houvesse mais meia hora de filme, ainda assim eu não deixaria a peteca cair, não acharia exagerado. A banda tem sim história pra contar. E muita. 

Saio do cinema pela segunda vez em pouco menos de um mês (a primeira foi com Nasce uma estrela, e o espetáculo oferecido pela cantora Lady Gaga) em êxtase e orgulhoso de saber que o gênero musical - que muitos consideram datado, ultrapassado, envelhecido - ainda tem garrafas a vender a seu público. Basta um realizador competente com uma boa história nas mãos e pessimismos podem sim ser varridos para debaixo do tapete. E esse parece ser exatamente o caso aqui. Fãs do grupo: não deixem de ir. Foi exatamente o que eu, fã do grupo há décadas, estava esperando. 

Ah! Esqueci um detalhe importante: foram esses caras que me ensinaram a ser fã, que definiram a minha geração.

Nota: vejo no facebook comentários a respeito de pessoas que foram à sessões do filme e criticaram as cenas gays envolvendo Freddie Mercury. Meu Deus! O conservadorismo está acabando mesmo com o país. E além do mais o Queen sempre foi muito mais do que a opção sexual de seu vocalista. Pena que no Brasil, país que adora escândalos e picuinhas, muitos não entendam isso...

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Marionetes sacanas


Não se enganem com os bonecos em cena, caros espectadores: Avenida Q, de Jeff Whitty, não é para menores. Pelo contrário: trata-se de uma das maiores ousadias (ou brincadeiras com o conceito de infância, como preferir rotular) que eu pude assistir nos últimos tempos. Só não foi ainda melhor porque não estava presente no teatro, ao vivo, para apreciar. 

Isso mesmo: assisti o espetáculo graças a, mais uma vez, bem-vinda ajuda do you tube, meu amigo internético de todas as horas, que exibe a versão de julho de 2009, gravada no Teatro Clara Nunes, na íntegra (e cheia de elogios na caixa de comentários, comparando a versão nacional, dirigida pela dupla arrasa-quarteirão Charles Moeller e Cláudio Botelho, com a americana, com direito a frases do tipo "não deixa nada a dever a versão made in USA. Muito boa!!!!").

Avenida Q é, no final das contas, uma grande cartilha moral sobre os desvalidos - ou outsiders - que vivem em qualquer lugar do mundo, lutando com unhas e dentes para sobreviver à uma vida difícil e cheia de reveses e curvas sinuosas. E dentro desse simulacro da dificuldade, vemos os mais diversos expoentes daquilo que o Brasil e o mundo aprendeu a chamar nos últimos séculos de "necessitados". 

Homens e bonecos dividem a atenção do público com metáforas sobre questões da maior pertinência para nosso convívio social: homossexualidade; conservadorismo; relacionamentos amorosos; racismo; a vida noturna na internet; triângulos amorosos; rir da miséria alheia; desemprego e muito mais. E tudo com um toque inteligente e refinado e um humor sarcástico, na ponta da língua (e fazendo a plateia cair na gargalhada a todo momento).  

Dentre as vozes que permeiam esse universo temos Princeton, um jovem formado, mas sem rumo na vida, que acaba de chegar na Avenida Q (único lugar em que ele pode pagar o aluguel, e ainda sim com dificuldades) onde pretende dar uma reviravolta em sua história; Kate Monstra, cujo sonho é construir uma escolinha para seres de sua própria espécie; o casal Brian (Renato Rabelo) e Japaneuza (Cláudia Netto), ele um eterno desempregado, tentando ganhar a vida como comediante, ela uma psicóloga sem clientes, juntos sobrevivendo na ponta do arame;  Trekkie Monstro, uma criatura viciada em internet e pornografia; Gary Coleman (Maurício Xavier), um ex-astro infantil cuja vida só lhe deixou de sobra a missão de trabalhar como zelador na avenida; Nick e Rod, parceiros de quarto na pensão, o primeiro um homossexual enrustido, o segundo um maladrão, super desorganizado que adora incentivar os outros a se libertar, mas não tem coragem para tomar uma atitude com a própria vida; e Lady de Vassa, uma quase Lady Gaga versão Puppet, cantora da noite e viciada em sexo.

Dentro do elenco fica meu destaque para os atores André Dias (que manipula os bonecos Princeton e Rod) e Sabrina Korgut (responsável por operar a Kate Monstra e Lady de Vassa). Aliás, o trabalho de criação com os bonecos feito por Fernando Gomes é magnífico. Fiquei embasbacado com a liberdade de movimento das marionetes. Não imaginava que estávamos tão avançados nesse setor!

Já na parte técnica gostei muito da direção musical de Marcelo Castro (a banda que acompanha o elenco é excelente) e o trabalho de cenografia de Rogério Falcão, em alguns momentos, me fez lembrar da Graphic Novel Avenida Dropsie, de Will Eisner, principalmente nas cenas mais escuras, à meia-luz, criando um clima quase noir. Pretendo dar uma olhada na internet à procura de mais trabalhos dele!

Ao cerrar da cortina, a plateia aplaude com entusiasmo e o elenco merece. Mesmo que muitos achem o texto em vários momentos abusado em excesso, cheio de palavreados chulos e posturas acusatórias a certos comportamentos típicos da sociedade hipócrita em que vivemos, é facilmente perceptível que o humor ácido, direto é intencional e faz parte da proposta: brincar com a ideia de que teatro envolvendo marionetes é apenas para crianças. Nada disso. É possível transpor a temática para o universo adulto sem perder o sorriso. E a prova está aqui. São mais de duas horas de sacanagem pura, sem ofender ninguém. 

Se algum dia reestrear na sua cidade, procure. Vale cada segundo. 

Para quem quiser assistir o espetáculo na íntegra, segue abaixo o link: 
https://www.youtube.com/watch?v=qhcZqg_wkJY

sábado, 3 de novembro de 2018

O país que gostamos de inventar de tempos em tempos


Não é de hoje que a sociedade brasileira se comporta como se o país não passasse de uma sucursal de um filme de super-heróis da Marvel ou da DC Comics. Tornamos nossa pátria - se é que ainda dá para chamar o país disso! - uma versão aterradora e esnobe de maniqueísmo, acreditando piamente que certas pessoas devam ser rotuladas de o bem encarnado, dono de moral ilibada e acima de qualquer suspeita, e outras de mal eterno, sacerdote do que existe de pior em termos de ética. Pobres deles, os rotuladores! Não fazem a menor ideia do que estão fazendo com a nação. 

Prova disso é a chegada de O doutrinador, filme de Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça, que chegou ao circuito exibidor nesta última quinta-feira e utiliza-se da estrutura mista de quadrinhos + cinema que vem fazendo a cabeça principalmente do público jovem nos últimos anos. No entanto, aqui a premissa não visa unicamente a eles. Os adultos em algum momento também irão se interessar por aspectos da trama. 

O doutrinador conta a história de Miguel (Kiko Pissolato, uma grata surpresa no cenário audiovisual brasileiro), um agente da D.A.E - uma espécie de forças especiais ligadas à polícia civil - que vê sua vida mudar completamente quando sua filha pequena morre, vítima de uma bala perdida, quando estavam indo assistir a um jogo da seleção brasileira. O país já vivia dias de corrupção desenfreada com acusações disparadas ao governador da cidade, Sandro Correa (Eduardo Moscovis), e a população rugia nas ruas. Contudo, mesmo com todo o cenário negro dando as cartas, Miguel sempre acreditou no sistema e na justiça. Até aquele momento. 

Nasce então o justiceiro nomeado pela mídia de doutrinador, que passa a caçar os cabeças por trás da falência do Estado. Nesse momento a trama ganha contornos ainda mais quadrinísticos (e nesse sentido, o autor Luciano Cunha - criador da hq que originou o longa - deve ter ficado um tanto satisfeito), com exageros os mais diversos, frases de efeito roubando a cena em meio ao roteiro e muita adrenalina e fisicalidade nas cenas de ação, que não são poucas. Nosso herói conta com a ajuda da hacker Nina (Tainá Medina, que lembra em alguns momentos o estado de espírito da personagem Jessica Jones, vivida na série da Netflix pela atriz Krysten Ritter) para esmiuçar o sistema de segurança que preserva a integridade desses "homens de respeito" que governam o país. 

Há muito o que gostar (e também o que não gostar) no filme. Para aqueles que seguem a mentalidade atual do país polarizado em que vivemos nos últimos anos de atacar o outro lado da discussão política com ofensas e deboches, talvez este não seja o seu filme. Há várias inferências à personagens do atual cenário político nacional e certamente você se verá tentado a atacar o filme ou como fascista ou como defensor de uma moral tendenciosa e comunista, algo aliás que aconteceu recentemente quando do lançamento da série O mecanismo, de José Padilha. Fica a dica. Por outro lado, foi uma grata surpresa ver o cinema nacional enveredando por uma seara que eu (ainda) acredito não temos uma grande expertise no assunto ou mesmo tecnologia necessária para convencer. Enfim... É um filme bem intencionado dentro de nossa cinematografia cheia de altos e baixos (principalmente se colocarmos na balança os últimos, digamos, cinco anos). 

Não poderia, porém, terminar este artigo sem deixar de apontar o grande legado desta produção (que coincide com o desabafo final feito por um dos personagens no próprio longa): o de que continuamos acreditando em salvadores da pátria, figuras sobrenaturais e messias capazes de nos salvar da destruição do país. "É preciso mudar", é o que diz o filme em seus últimos segundos. E mudança é uma palavra que sempre teve um sentido um tanto quanto equivocado em nosso país. Também não é pra menos. O que esperar de um país que vive de jeitinhos, esqueminhas, tratos escusos, e que se orgulha de sua própria ignorância e incapacidade de dar a volta por cima? E não bastasse tudo isso se apega a qualquer modismo que pareça legítimo, seguidor de regras e morais tortas, bem vestido e portando diploma de alguma profissão ou status de renome?

O doutrinador parece meia-boca à primeira vista? Sim. Tem suas falhas e soluções abruptas para justificar problemas sérios de comportamento social? É verdade. Entretanto, ele também traz muito sobre o que pensar neste país controverso. Digo mais: o filme de Bonafé e Mendonça é o país que gostamos de inventar de tempos em tempos, cheio de manias e homens poderosos, capazes de virar a nação de cabeça pra baixo, só para não termos de encarar o mundo real, com seus defeitos e distorções. 

Em outras palavras: veja, mas de olhos abertos, questionando cada momento. Pois as entrelinhas andam merecendo melhor atenção de nossa parte hoje em dia do que o todo excessivamente visível e heróico das páginas de jornal, das redes sociais e dos formadores de opinião contraditórios.