Certa vez, durante um programa sobre sétima arte transmitido pelo canal a cabo TNT, o crítico de cinema Rubens Ewald Filho disse sobre o diretor Steven Spielberg que ele "praticamente inventou a matinê". E ele estava absolutamente certo. Digo mais: Steven Spielberg reinventou a maneira da sua geração e das próximas gerações pensarem e assistirem cinema. E falo isso com a experiência de quem, ainda moleque, aos míseros seis anos de idade, encarou uma fila gigantesca no cinema Olaria para assistir E.T - o extraterrestre acompanhado de minha mãe. E acreditem: aquele momento mudou completamente a minha vida.
Não bastasse tudo o que tive o prazer inenarrável de ver através dos olhos desse mestre (e foram muitos momentos grandiosos: A lista de Schindler, O resgate do soldado Ryan, Contatos imediatos do terceiro grau, Tubarão, Encurralado, Inteligência artificial, Jurassic park: o parque dos dinossauros, etc etc etc), no ano passado a documentarista Susan Lacy decidiu realizar para a HBO um documentário sobre a sua vida. Eu pirei. Acho que se eu pudesse, se eu tivesse influência no meio, teria pedido à diretora para participar do set, só para assistir a produção do longa. Porém, por se tratar de um filme produzido para o mercado televisivo, ele não teria lançamento nos cinemas. Então, como assistí-lo?
Moral da história: durante um ano venho labutando, procurando incansavelmente na internet, por um link, um arquivo, um site que me leve ao filme. E nada. Até que nesta última semana recebo a indicação de um colega cinéfilo - e fanático também por Mr. Spielberg - dizendo: "entra nesse site aqui". Meus olhos foram as lágrimas no mesmo instante. O documentário ali, na íntegra, e ainda por cima legendado (coisa que nem sempre é fácil de encontrar nesse mundo internético louco e que adora seguir suas próprias regras). E o principal: valeu cada segundo da minha noite.
Spielberg, de Susan Lacy, é filme obrigatório para fãs do diretor e também para aqueles que não conhecem bem seu trabalho ou mesmo passaram a vida tentando rotulá-lo daquilo que ele não era, com intuito de diminuir sua obra. São mais de duas horas de depoimentos, espetáculo visual sem precedentes e também o esmiuçar de seu processo criativo, suas ideias, dilemas, dificuldades ao longo da vida.
A melhor parte? Além das imagens dos filmes que o eternizaram, é claro!, certamente poder rever atores, atrizes, produtores, diretores que com ele trabalharam nesses últimos 50 anos depondo sobre a grande aventura que foi trabalhar com ele. Richard Dreyfuss, Laura Dern, Drew Barrymoore, Ben Kingsley, Liam Neeson, Ralph Fiennes, Christian Bale, Leonardo Dicaprio, Tom Hanks, Daniel Day Lewis, Martin Scorsese, Francis Ford Copolla, Brian de Palma, George Lucas... Uau! A lista é gigantesca.
Seus casamentos, o divórcio da atriz Amy Irving, os filhos, a relação traumática com a família, a briga de 15 anos com o pai, o fascínio pela segunda guerra mundial, sua negação na juventude à condição de judeu, tudo está lá, compondo com sua cinematografia o retrato de um homem que enfrentou seus demônios e fantasmas de frente, sem contudo perder a delicadeza e o principal: sem deixar de contar uma história que toque o coração do público (sua marca registrada).
Muitos tentaram catalogá-lo. Quando começou a rodar filmes mais sérios, como A cor púrpura e O império do sol, foi criticado por fugir de seu estilo comercial, direto, chegando a ser chamado de pretensioso. Quando tentou enveredar pela comédia, com 1941 - uma guerra muito louca (um dos fracassos de bilheteria mais visíveis em sua carreira de sucesso), foi classificado na maldosa categoria "esse não é você, volte para os filmes de aliens e criaturas, cheios de efeitos especiais". E mesmo assim driblou e calou a boca de todos eles.
A frase que melhor explica no longa essa relação contraditória de Spielberg com os críticos de seu trabalho é dita pela atriz Sally Field, com quem trabalhou em Lincoln, "sempre tentaram dizer sobre seu trabalho que não era o bastante, nem intenso o bastante, nem obscuro o bastante, nem comercial o bastante... Porém, sequer se esforçaram por entendê-lo, entender a gênese do seu trabalho". Perfeito. Passei minha vida ouvindo as pessoas chamarem Steven Spielberg de diretor infantil. No entanto, em Munique seu protagonista faz sexo com uma mulher grávida, em A lista de schindler judeus são executados a sangue frio, e a câmera não se esquiva do disparo um minuto sequer, em Amistad os escravos são torturados diante das lentes... Se isso é ser infantil, eu gostaria de saber o que esses críticos definem como infância.
No ato final, a diretora lembra - de forma acertada, a meu ver - dos parceiros de set que junto com o diretor fizeram a magia acontecer ao longo das décadas: Janusz Kaminski, John Williams (o alter-ego musical de Spielberg), Kathleen Kennedy, Michael Kahn, Tony Kushner, Vilmos Szigmond e claro a esposa Kate Capshaw que o próprio Steven chama de "minha fortaleza".
Quando percebo a proximidade dos créditos finais os olhos marejam novamente. Se o trabalho de Lacy fosse uma minissérie de 10 horas de duração ainda assim eu ia querer assistir mais e mais. Ela toca na minha ferida. Expôs o homem que me tornou cinéfilo. Obrigado, Susan! Serei eternamente grato. E detalhe: o que eu tenho de fazer para comprar um DVD desse filme? Onde eu encontro? Eu quero. Muito.
Ao final da sessão uma certeza: dificilmente Spielberg, o homem que falou de família, de rompimentos e reconciliações, que apaixonou crianças e adultos, nos levou das lágrimas aos sorrisos, terá um substituto (a presença de J.J. Abrams no filme não me convenceu do contrário). Ele é uma força da natureza, um legado de hollywood que, tenho certeza, ainda terá muito o que dizer aos fãs. Basta que esperemos.
P.S: ah! o remake de West Side Story está vindo aí...