Antes mesmo da palavra - e por conseguinte, da cultura - nerd surgirem da maneira como surgiram, eu já era um exemplar raro dentro da fauna adolescente que eu frequentava lá pelos meados dos anos 1980. Quando todos só queriam saber de farra, pegar a chave do carro do pai emprestado, beber e fumar para ver qual o barato que rolava, eu vivia mesmo era nas filas de cinema e teatro (o Tablado foi praticamente uma segunda residência) e aproveitando cada segundo que eu podia lendo.
E quando digo lendo, falo de absolutamente tudo. Até bula de remédio ganhava espaço nessas horas!
E dentro dessa minha vertente leitor as histórias em quadrinhos, tirinhas de jornais e os comics de forma geral tiveram uma participação gigantesca. Nunca entendi - vou logo confessando de cara - essa mania que o mercado tinha de chamar os quadrinhos de arte marginal. Só pensa isso que nunca leu.
E entre Turma da Mônica - que, obviamente, nunca faltou na estante da minha geração -, Recruta zero, os heróis da Marvel e DC e o genial Will Eisner com seu Spirit, eu descobri os "visionários" que criaram a extraordinária Chiclete com Banana, para mim a mais brazuca das publicações nacionais. Luiz Gê, Glauco, Roberto Paiva, Glauco Mattoso. Laerte Coutinho e, claro, o magistral Angeli, inseriram naquele universo tudo o que, até então, não cabia sequer na imaginação dos moralistas.
Eles realizaram, sim, a grande revolução dos quadrinhos no país, associando humor e escracho à sexo e drogas, mas de uma maneira nada convencional. E a minha geração queria aquilo muito mais do que qualquer sala de aula.
E eis que para a tristeza e lamento dos fãs Angeli, aos 65, decreta a aposentadoria de sua carreira, por conta de um diagnóstico de Afasia (doença degenerativa que nos últimos meses vêm ganhando destaque após a decisão do ator hollywoodiano Bruce Willis, da franquia Duro de Matar, em também encerrar a carreira pelo mesmo motivo).
Angeli começou a rabiscar cedo, aos 14 anos, para a revista Senhor e para alguns fanzines, e logo a seguir foi contratado pela Folha de São Paulo. Teve seu trabalho publicado na Alemanha, França, Itália, Espanha e Argentina, mas nenhum outro país fora do Brasil recebeu tão bem a sua obra quanto Portugal, que compilou seu trabalho e chegou a produzir uma série animada com seus personagens icônicos.
E por falar neles, difícil escolher um preferido num painel tão versátil e fora de qualquer padrão. A grande maioria dos leitores certamente tem uma identificação maior com Rê Bordosa, a junkie porralouca (que chegou a ser dublada num longa de animação pela cantora Rita Lee) e os machões de plantão rendem loas à Bob Cuspe, o punk anarquista, mas sua obra não se rendeu exclusivamente a ambos.
Com os adolescentes Luke e Tantra e sua obsessão por perder a virgindade, os velhos hippies Wood & Stock, Os Skrotinhos (e, claro, sua versão feminina), a ninfomaníaca Mara Tara, o guru espiritual Rhalah Rikota, o voyeur e fetichista Ed Campana, o roqueiro - e morador do Leblão - Ritchi Pareide, o paranormal Rampal, o egocêntrico Walter Ego, Los três amigos, Rigapov - o imbecil do apocalipse e Hippo-Glós, o hipocondríaco (que foi inspirado no teatrólogo Cacá Rosset), dentre tantos outros, externou uma plêiade de tipos sociais e humanos os mais diversos. E o mais importante para os leitores: sem o menor pingo de juízo (como era bem a cara dele).
Além dos quadrinhos e cartuns, ele também foi redator do programa infantil TV Colosso (1993 - 1996) na Rede Globo e desenvolveu quadrinhos animados para a internet e o canal a cabo Cartoon Network. E Nos últimos anos ele acabou ficando mais conhecido pela série Angeli - The Killer, produzida pelo Canal Brasil, do que por seus próprios trabalhos. Mas não se iludam! Isso em nada diminui seu talento gráfico.
Para conhecer um pouco mais sobre a obra do Angeli, procurem (o quanto antes) nas lojas e sebos:
Cinema
Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll, de Otto Guerra (2006)
Dossiê Rê Bordosa, de César Cabral (2008)
Angeli 24 Horas, de Beth Formaggini (2010)
Bob Cuspe: Nós Não Gostamos de Gente, de César Cabral (2021)
Quadrinhos (todos da Quadrinhos na Cia.):
Todo Bob Cuspe
Toda Rê Bordosa
O Lixo da História
Só faltou dizer duas coisas: 1) uma pena, mesmo! ele parecia ter ainda tanto a propor e 2) chega ao fim uma era nas HQs nacionais. Quem não concorda comigo, que me prove o contrário!