É um filme? É uma peça? É uma leitura dramatizada? É uma crônica policial? É uma provocação deslumbrante? É tudo isso e mais um pouco ao mesmo tempo? Sim, Nelson Rodrigues é tudo isso e mais um pouco, durante toda sua vida e sua obra. E poder apreciar uma releitura de seu trabalho no final de um ano em que se fez de tudo para que o país não desse certo, é com certeza uma dádiva. Não entenderam? Explicar-me-ei.
É quarta-feira e vou ao cinema dentro do Imperator para assistir à adaptação de O beijo no asfalto feita pelo ator (e agora diretor) Murilo Benício. Para minha tristeza, poucos assentos estão ocupados. O que só reforça minha incerteza sobre os rumos que o nosso cinema vem tomando, perdendo espaço para filmes de super-heróis que não dizem a que se destinam além de entupir nossos cérebros de efeitos especiais e séries televisivas de cunho duvidoso (leiam-se: zumbi, seres sobrenaturais, etc) que nada mais são do que o pastiche dessa nossa sociedade caótica e cada dia mais perdida.
A peça original é de conhecimento geral dos fãs de Nelson: Arandir (vivido na tela por Lázaro Ramos) vê um homem ser atropelado em plena Praça da Bandeira e o acidentado, antes de morrer, pede a ele como último desejo um beijo. Beijo esse que Arandir lhe concede como um ato de piedade. Contudo, mal sabia ele que aquele singelo gesto seria justamente o que levaria a sua vida dali em diante a um passeio pelo inferno.
Arandir é cercado pela indústria do preconceito que rege esse país desde priscas eras (sim, meus caros leitores! Não é de hoje que vivemos num país tão cheio de manias e repressões). Seja por parte de Amado Ribeiro (Otávio Muller, fantástico!), o jornalista cafajeste do jornal A última hora, que adora mandar os outros calarem a boca, adepto do sensacionalismo a qualquer preço e das (hoje mais que famosas) fake news; seja por parte de seu sogro, Aprígio (Stênio Garcia), extremo conservador que alimenta a duras penas um segredo que envolve tanto Arandir quanto sua esposa, Selminha (Débora Falabella); seja por parte do delegado Cunha (Augusto Madeira), expoente máximo da hipocrisia policial e social, que usa até mesmo a imagem da filha irretocável, acima de qualquer suspeita, para vender uma faceta de "homem distinto, de moral ilibada" para os demais.
Sem ter para onde correr, acuado, Arandir se depara com uma dupla e cruel acusação contra ele: a primeira, direta, de ser um homossexual que engana a própria família, uma aberração aos olhos da sociedade íntegra; a segunda, esta indireta, a de ser negro, portanto um indivíduo menor, dentro de uma sociedade que não esconde - nunca escondeu - o seu racismo. Vencido nesta batalha inglória, se vê abandonado por todos e ainda é acusado de ter perpetrado o crime contra o atropelado. Mais trágico (e rodriguiano) impossível!
Como pano de fundo, a genialidade e ousadia de Murilo Benício que escolhe um caminho diferenciado para contar esta história mais que consagrada em nossos palcos. Intercala leituras dramatizadas entre o elenco do filme e cenas gravadas dentro do teatro. Um recurso, aliás, que eu vi recentemente no filme Ricardo III: um ensaio, dirigido pelo também ator Al Pacino (não sei se Murilo assistiu ao longa, mas em muitos aspectos os dois filmes dialogam entre si).
Ao final da sessão ouço aplausos entusiasmados dos poucos espectadores que compraram a briga de ir assistir o longa. Sim, digo briga porque o filme é um grande ato político, de resistência, em meio a um país que nos últimos anos só fez flertar com o retrocesso e a opressão de uma minoria recalcada e que não admite perder - seja espaço ou renda - por nada neste mundo.
Nelson Rodrigues prova mais uma vez porque é o maior de nossos dramaturgos com uma peça que não só flerta com o romance policial como antevê muitas das distorções vistas hoje na sociedade contemporânea: a discussão acerca do homossexualismo (comprada ferrenhamente pelos grupos que integram o LGBT), a indústria das matérias jornalísticas falaciosas, fabricadas muitas vezes com a intenção de confundir ou incriminar grupos de interesse específicos e a velha moral da chamada "família tradicional", muitas vezes eclipsada por uma ética dúbia.
E com enorme deleite me deparo com o anjo pornográfico (singelo "apelido" ou "rótulo" que o autor ganhou de um crítico) desconstruído de forma criativa e, por que não dizer?, inovadora. Nossa sétima arte anda precisando de mais boas ideias como esta!
P.S: enquanto os créditos de filmagem passam diante de nossos olhos, o bate-papo final entre os atores - e de extrema ligação com o Brasil dos últimos anos - já vale pelo filme todo. Vejam o longametragem até o final, por favor!
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