sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A ignorância é um fenômeno global


Dentre os gêneros cinematográficos mais comerciais o chamado filme-catástrofe, no meu entender, é aquele que as pessoas menos estão interessadas em perceber as entrelinhas. Elas ficam, em sua grande maioria, tão fascinadas com as cenas de destruição e morte, que esquecem de todo o resto. Toda a polêmica que também se encontra muitas vezes ali, diante de seus olhos, tão visível que chega a doer, não importa. Eles, os espectadores, preferem os efeitos especiais, o CGI, o exagero promovido pela adrenalina. E que se danem as denúncias sobre o mundo contemporâneo e a sociedade falha, torta, vil. 

E quando vivemos numa era repleta de negacionismos e extremistas os mais diversos, essa interpretação fica ainda mais prejudicada, pois eles, os que negam, só olham para o seu próprio umbigo, desdenham de qualquer outra verdade que não seja a sua, complicam todo o processo. Só estão interessados na sua própria vaidade ou prepotência. Não olhe para cima, novo filme do diretor Adam McKay - de longas que misturam o humor ácido com a crise política como poucos, não necessariamente agradando a todos os públicos - sofre desse dilema. Digo mais: acredito que de todos os filmes dele é o que mais sofre desse dilema, ainda mais no mundo de hoje, apegado em demasia à idiotice. Mas caso você não pertença à essa classe, sugiro que dê pelo menos uma olhada. 

A cientista e doutoranda Kate Dubiasky (Jennifer Lawrence) descobriu em uma de suas observações a trajetória de um cometa e passa suas informações para o seu professor, o Dr. Randall Mindy (Leonardo Dicaprio, naquele que eu considero o personagem mais surtado de toda a sua carreira). Ele analisa os dados e tem como resposta que ele, o cometa, está em rota de colisão com o planeta terra, e o atingirá num prazo um pouco maior do que seis meses. Perplexos com a notícia, decidem avisar a Casa Branca. E é justamente nesse momento que começa de fato o maior dos seus problemas. 

Imaginem que o mundo fosse acabar daqui a metade de um ano e você descobrisse que as pessoas só estão de fato interessadas no quanto irão ganhar com essa notícia ou com o abafamento dessa notícia. Esse é o mote do nosso filme. Um adendo: não é de hoje que a própria humanidade transformou a discussão sobre o fim do mundo numa grande piada de humor negro. Vide aquela história da profecia maia de que o mundo acabaria em 21 de dezembro de 2012 (que virou até filme babaca do Roland Emmerich, de Independence Day). E qualquer debate depois disso perdeu completamente a relevância. 

A Casa Branca debocha dos cientistas (chega, inclusive, a explorá-los). A imprensa debocha dos fatos descobertos pelos cientistas. A sociedade debocha dos cientistas. Pior: os transforma em memes, em loucos, em surtados. Até mesmo o namorado de Kate entra na onda e termina com ela via mensagem de texto. Sim, é louco, eu sei... Mas o problema é que o mundo como nós conhecemos também já enlouqueceu faz tempo. A gente é que simplesmente não percebeu e prefere a piada barata à certeza dos fatos. É mais fácil acreditar na zona de conforto produzida pela ignorância. Por sinal, cabe aqui um aparte: que me perdoe quem pensa o contrário atualmente, mas a ignorância virou um fenômeno global de alta rentabilidade. 

Não olhe para cima está repleto de tipos sociais os mais macabros possível, e ainda assim os achamos divertidos, fofinhos, inofensivos: a presidente dos EUA - vivida de forma impecável por Meryl Streep - é o retrato da bestialidade em forma de gente. Não é à toa que na grande nação atualmente tem gente até invadindo o capitólio e exaltando Hitler! O filho da presidente e seu chefe de gabinete é o estereótipo da futilidade e da arrogância, aquele tipo de indivíduo que realmente acredita ser a pessoa mais indispensável do mundo. A âncora feminina do telejornal mais assistido pela América não passa de uma ninfomaníaca gostosona. O guru que alimenta o desejo de milhões com seus celulares de última geração enquanto acredita piamente que algoritmos decidirão o seu futuro e o da civilização como um todo tem interesse na não-destruição do cometa, pois ele possui componentes capazes de aumentar ainda mais o seu patrimônio. E a musa pop do país é uma figura tatibitate que está mais interessada no fim do seu relacionamento amoroso efêmero do que na extinção do planeta. 

Acharam pouco? Isso é só a ponta do iceberg, já que o contexto geral piora - e muito!

Some a essa catarse humana de idiotas e irresponsáveis o mau uso da tecnologia, à serviço da mentira e da leviandade, a polarização que vai crescendo no país à medida que os dias passam e a chegada do cometa vai se tornando mais iminente e até mesmo a corrupção de um dos cientistas que descobriram o problema a esse sistema cruel e diabólico e pronto: estamos literalmente testemunhando o fim dos tempos. E olha que o mundo nem precisava ser de fato atingido por nada. Nós já tínhamos estragado tudo muito antes, com nossa falta de tato e caráter. 

Coisa de uns 15 anos atrás assisti no cinema um longa chamado Idiocracia, de Mike Judge. Nele, me deparei com a história de Joe Bauers (Luke Wilson), escalado para um projeto ultrassecreto no Pentágono que envolvia sua hibernação. Ele acaba esquecido por cinco séculos e ao despertar da câmara, se depara com uma civilização completamente burra que decidia, até mesmo, seu modelo eleitoral da maneira mais estúpida e infantil. Acreditem: a sociedade era tão artificial e desnecessária, que se eu vivesse naquele lugar provavelmente teria tirado a minha própria vida, por acreditar que a morte nesse caso seria mais interessante e honesta. 

Hoje, depois de assistir o longa de McKay, vejo que a sociedade - tanto a ficcional quanto a do mundo real - virou Idiocracia. E não só encaramos isso com a maior naturalidade, como nos orgulhamos disso. É só olhar os tabloides, as conversas de bar, ouvir as pessoas falando nas filas dos bancos, dos cinemas, dos supermercados. O mau gosto, o atroz, o fútil, virou o tema do momento. E ele viraliza e ganha fama com uma facilidade assustadora.

Ao fim, o legado que me fica dessa experiência audiovisual é: ufa! como é bom não fazer parte dessa geração alienada e que se pavoneia de si o tempo todo. Ah! Vi muita gente na internet detonando o longa, usando como desculpa a seguinte afirmação: se esse filme estivesse afim mesmo de denunciar alguma coisa o diretor não teria escolhido a comédia como o gênero dele. Não, meus amigos! Se teve um ponto no qual o McKay acertou de fato, foi esse. 

O mundo já não é mais um lugar sério há muito tempo. Mas muito, muito tempo! 


quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Berço nada esplêndido


Quando o cantor e compositor Tom Jobim disse numa entrevista que o Brasil não era pra principiantes deve ter cutucado com vara curta a onça demagoga que habita em muitos cidadãos desse país. Mas, infelizmente, ele falou a mais pura verdade. E ainda digo o seguinte: a cada ano que passa eu tenho mais e mais a sensação de que o Brasil gosta de ser o país da zona, do desconforto, da falta de caráter, da piadinha sem graça, da hipocrisia, da misoginia e do feminicídio, da homofobia, do racismo descarado (e que não tem nada de velado). 

A velha máxima de "país do futuro" (mas que nunca tem presente à vista) nos acompanha há mais de cinco séculos e nos acostumamos com esse vício de boca insuportável. E quem fala disso pelas ruas ainda por cima é chamado de babaca, de antipatriota, pois é mais importante num país de cegos vendermos as facilidades da mentira, do hedonismo e da falsidade do que sermos apenas reais. 

Fiquei pensando em tudo isso, em toda essa dor acumulada, em todo esse desleixo, essa falta de vocação para ser algo melhor, em toda essa polarização (aquilo que o jornalista Zuenir Ventura um dia chamou de "cidade partida" num de seus livros mais famosos) enquanto lia Revolta e protesto na poesia brasileira: 142 poemas sobre o Brasil, organizado pelo crítico literário e ensaísta André Seffrin. E a resposta a que cheguei ao final da leitura de clássicos e contemporâneos da nossa poesia é: só fizemos foi piorar. 

Mais: fiquei pensando em alguns momentos no trecho de nosso hino nacional que diz "deitado eternamente em berço esplêndido" e no quanto nós não fazíamos daquele lugar, um lugar realmente esplêndido. Pelo contrário. Há quem não possua, agora, nesse momento que atravessamos, nem lugar para deitar. E isso, qualquer pessoa lúcida deste país vai concordar comigo, é triste. 

André é esperto e recorre a grandes baluartes da nossa literatura: Machado de Assis, Olavo Bilac, Castro Alves, Cruz e Sousa, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga... Mas esperem! Eles apenas encabeçam uma lista que também possui autores da contemporaneidade. O organizador mostra diferentes Brasis, de séculos distintos, e nos mostra o quanto a injustiça, a intolerância e a desigualdade são temas que não envelhecem em nossas terras mesmo com o passar dos anos.

Os próprios títulos de alguns poemas já são, por si só, nítidos em mostrar esse país recalcado e desesperançado no qual vivemos: "Speculum Patriae" (de Alexei Bueno), Sonneto do decoro parlamentar" (de Glauco Mattoso), "Há sempre um poema que não se pode escrever" (de Flávio Moreira da Costa), "Soneto de um triste país", (de Ruy Espinheira Filho), "A recriação do homem" (de Fausto Wolff), "Ave Maria da eleição", (de Leandro Gomes de Barros), entre outras pérolas. 

Mas, além disso, Revolta e protesto fala de liberdades ainda possíveis, das agruras do neoliberalismo, de exílio, de usura, da calhordice, do enterro da justiça, do processo eleitoral movido pela fé tendenciosa, do poder público que não funciona, dos diplomas universitários comprados a peso de ouro, dos inválidos da pátria... E mais do que isso, meus caros leitores, só lendo. Mas vão preparados! Porque o clima que rege toda a obra é tenso (e não poderia ser diferente). 

Vocês devem estar pensando: "ele acabou de ler um tijolo de mais de 700 páginas". Que nada! Não chegam à 300! Mas é de uma profundidade tão atroz e ao mesmo tempo tão verdadeira, que acho meramente impossível a qualquer leitor que se preze não reverenciar sua maestria e talento. 

E também me recuso chegar à última página e não pensar: "como a nossa literatura é gigantesca e a grande maioria do povo não se dá conta disso porque acredita que leitura não passa de perda de tempo, e por isso prefere celulares e câmeras".  

Logo, se você procura permanecer alienado, dentro da bolha do suposto confortável, fique à vontade. Já se você cansou, não aguenta mais nada do que está aí e quer entender, mesmo que minimamente, as raízes do problema, fica a dica. Em tempos de livrarias fechando e impostos para livros. é de mais obras como esta que o país está precisando - urgentemente.


sábado, 25 de dezembro de 2021

Certas histórias só se contam uma vez


Eu tenho bronca de franquias e continuações no mundo do cinema por um motivo óbvio: porque de tempos em tempos elas arruínam ideias que pareciam melhores quando contadas de uma vez só. 11 homens e um segredo, de Steven Soderbergh, tem esse problema. Homens de preto, de Barry Sonenfeld, também. E dentro desse universo das ideias infelizes que precisam de continuações para melhorar aquilo que não precisa ser melhorado, encontra-se praticamente encabeçando a lista Matrix, dos (na época) irmãos Andy e Larry Wachowski.

O longa original de 1999 é dessas experiências que os verdadeiros cinéfilos de carteirinha nunca irão se esquecer. Seja pelas cenas de ação memoráveis, pelo uso frenético da tecnologia ou pela história aprisionante do homem comum aprisionado ao sistema que se torna o messias de um revolução. E ao descer dos créditos, você pensa: "é isso, não precisa de mais nada". Infelizmente a dupla de diretores não viu dessa forma e realizou os execráveis Matrix reloaded e revolutions, para tristeza dos fãs da boa sétima arte.

E eis que 18 anos depois, Lana (anteriormente Larry), sem a companhia do irmão (agora irmã também), decide retomar este universo como eu disse antes: irretocável. E de novo entra em choque com o que era, até então, perfeito. 

Matrix Resurrections traz Neo (Keanu Reeves, em seu visual John Wick, que o consagrou nos últimos tempos) de volta à sua faceta Thomas Anderson. Ele de novo vive de forma melancólica, ciente de que algo está faltando em sua vida. E não se trata de sucesso: ele é um bem sucedido desenvolvedor de games - no caso, o The Matrix para a Warner Bros (sim, o filme tem esse quê de ironia nada fina) - que poderia estar curtindo a sua existência com todos os méritos a que tem direito. Mas, na prática, não é isso o que acontece. 

A começar pelo que sente por Tiffany (Carrie-Annie Moss) que em seu jogo conhece como Trinity. Ele frequenta sessões de terapia com seu analista (vivido por Neil Patrick Harris) para tentar entender o que se passa em sua cabeça, mas será surpreendido por Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II) e Bugs (Jessica Henwick) que o trazem de volta ao mundo real, um mundo que ele até então não sabia que conhecia tão bem e mais do que isso: era um líder. 

Entre a saga para recuperar a memória de Neo e, por conseguinte, trazer de volta à tão amada Trinity e os novos desafios aos quais a resistência precisará enfrentar, o longa de Lana se perde justamente por não trazer aquilo que ele tinha de melhor em sua versão original. Esqueçam o agente Smith de Hugo Weaving e o Morpheus original de Laurence Fishburne. Eles não estão lá e, sim, você sentirá - e muito! - a falta de ambos. O oráculo que ajudou a definir o futuro da missão de Neo também não dá as caras e eu lamentei muito, porque gostava demais da atriz. E isso é apenas parte do problema. 

As tão amadas cenas de ação sufocantes e em câmera lenta em alguns momentos estão lá e bem feitas, é bom que se diga!, mas parecem no todo genéricas, sem uma função específica. Que me perdoem os fanáticos da franquia, mas foi o que eu senti. O elenco de agentes que rodeiam Neo não é mal. Pelo contrário. Gosto da química entre eles, mas não têm a verve do elenco de 1999. 

No final das contas, seja pelo ritmo arrastado em várias passagens, seja pela ausência de carisma (do filme, não dos atores), o que percebi como resultado foi estar diante de uma grande comédia dos erros. Os fãs de cinema de ação que não perdem a chance de testemunhar a grande paranoia por trás de franquias tresloucadas como Velozes e furiosos, Maze Runner e Resident Evil, certamente terão muito do que gostar aqui. Já os que esperavam novas ideias e teorias da conspiração... Sinto! Esse filme não será para você.

Matrix Resurrections é mais uma daquelas produções cinematográficas para você se perguntar ao fim porque hollywood continua insistindo nesse formato franchising que só serve para provar que a insistência numa trama já deu o que tinha que dar e o cinema americano precisa urgentemente de novos roteiristas, do contrário periga tornar-se refém de um loop temporal e a palavra originalidade perderá completamente o seu significado. 

À parte este singelo desabafo, uma certeza será nítida ao fim da sessão: a franquia é um gosto adquirido e amar ou odiar só depende ainda dos espectadores. E eles estão cada vez mais fanáticos!

P.S ou apenas um raciocínio agregado: perguntam-me, volta e meia, porque sou contra o Quentin Tarantino realizar uma terceira parte de Kill Bill. Resposta: pelo mesmo motivo que me levou a escrever este texto. E quando a história encontra o seu desfecho, não há nada que você possa fazer para mudar isto.     

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A paixão nacional


Como é que se começa um texto que se promete interminável desde a primeira palavra? Não sei dizer, mas vou escrever assim mesmo!

Não se sabe ao certo de onde vem tamanho sucesso (ou talvez saibam e eu, que já não assisto o formato há tempos, é que esteja por fora), mas as telenovelas são um fenômeno que veio e ficou. E por mais que muitos possam dizer - e têm até esse direito - que elas não são mais as mesmas, que se entregaram a uma temática pasteurizada, babaca, que entupiram tudo com a moral trending topics do século XXI, ainda assim o público quer saber do que se trata, comparece, acompanha, às vezes se veste igual, aprende as gírias e jargões, tem até quem já fumou e bebeu no passado por causa delas. 

De concreto mesmo: as telenovelas, que deram as caras por aqui em 21 de dezembro de 1951, completam sete décadas de existência e ainda fascinam um grande público. 

Mas não pensem vocês, leitores, que elas foram somente sorrisos e abraços. Não, meus caros! As novelas também já incomodaram e muito. Que o diga o primeiro beijo, na novela Sua vida me pertence, na TV Tupi, em fevereiro de 1952, dado pelo casal Walter Foster e Vida Alves. A polêmica já começou dentro da própria emissora, quando o fotógrafo dos Diários Associados, Chico Vizzoni, se recusou a registrar o momento por considerá-lo um escândalo. Imaginem, então, na sociedade puritana daquela época...

O primeiro beijo é no fundo apenas o primeiro episódio apaixonado de uma saga que passou por muitas intempéries. Da transmissão ao vivo ao videotape, os vilões consagrados, os casais que entraram para a história (Tarcísio Meira e Glória Menezes certamente lideram essa categoria com folga), as musas que não saem da cabeça dos espectadores (Regina Duarte, a namoradinha do Brasil; Nívea Maria; Sônia Braga, Lídia Brondi - que eu me pergunto sempre por onde anda -, Betty Faria, Maitê Proença, etc etc etc e haja etc), até mesmo os triângulos amorosos e as histórias que fugiram do padrão convencional. 

Sim, porque como esquecer de Saramandaia e sua ode à excentricidade com personagens que voavam e Dona redonda que explodiu? E a Sucupira de Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), criada por Dias Gomes em O bem-amado? E a novela A viagem, de Ivani Ribeiro, que fez com que nos perguntássemos sobre a vida após a morte? E o Vlad (Ney Latorraca), protagonista de Vamp, que trouxe os vampiros ao folhetim televisivo? E a Avilã, cidade história de Que rei sou eu? Eu poderia ficar aqui o resto da semana, do mês, e não conseguiria terminar este parágrafo, tamanho o número de universos criados pela televisão. 

Eu disse lá no primeiro parágrafo que há tempos não vejo novela e mesmo na época em que assistia ela não era o meu carro-chefe da tv. Eu gostava mesmo era de programas como Armação Ilimitada, TV Pirata, Tamanho família (sitcom famosa da Rede Manchete no final dos anos 1980), Programa Livre com Serginho Groissman no SBT e, lógico, as sessões de cinema na madrugada. Mas se houve uma figura que chamou minha atenção nesse universo e me fez sentar no sofá para acompanhar a trama foi o vilão ou bad boy (ou, às vezes, bad girl). 

Casos mais óbvios disso: 1) Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) em Senhora do destino, que sequestrou uma criança e criou como sua filha até que a verdade viesse à tona e a mãe biológica descobrisse o seu paradeiro; 2) Donato Menezes (Miguel Falabella) em As noivas de copacabana, o psicopata obcecado com as mulheres que estavam às vésperas do altar; 3) Zé das medalhas (Armando Bogus) em Roque Santeiro, protótipo vivo do homem deslumbrado com a riqueza; 4) Adalberto (Cecil Thiré) em A próxima vítima, ou o assassino do horóscopo chinês, que matou todas as testemunhas de um crime ocorrido num iate na noite de reveillon; 5) Leila (Cássia Kiss) em Vale tudo, que entrou para a história da teledramaturgia nacional como a assassina de Odete Roitman (Beatriz Segall). Vai ter gente dizendo que eu esqueci da Carminha (Adriana Esteves) em Avenida Brasil, mas nessa época eu já estava em outra vibe, sinto muito!

E lógico que os mocinhos foram amados com a mesma intensidade: João Coragem (Tarcísio Meira) de Os irmãos Coragem, fenômeno televisivo eterno; o motorista Carlão (Francisco Cuoco) em Pecado Capital, cuja mala que encontrou em seu carro mudou completamente sua vida; Sassá Mutema (Lima Barreto) em O salvador da pátria; Maria do carmo (Regina Duarte) em Rainha da sucata, que saiu do lixo para o luxo; Sinhozinho Malta (Lima Duarte) em Roque Santeiro; até os mais controversos Comendador José Alfredo (Alexandre Nero) em Império e Giovanni Improta (José Wilker) em Senhora do destino.

Outro aspecto a ser destacado nas novelas ao longo das décadas foram assuntos de relevância nacional, como barrigas de aluguel (que foi tema de uma novela das seis de Glória Perez), clonagem humana, reforma agrária (que tomou um grande arco dentro da novela O rei do gado, ao som de Admirável gado novo, de Zé Ramalho), mulheres que apanham dos maridos (em Mulheres apaixonadas), tráfico de mulheres (em Salve Jorge), crianças desaparecidas, envolvimento com drogas, prostituição no mundo da moda (em Verdades secretas), entre tantos outros.

E por falar em Verdades secretas, ela - em sua segunda temporada - apresenta o formato a um outro universo: o streaming. Ou seja, acabou a ideia do compromisso com o horário fechado, a grade específica, o "eu não posso perder a novela das 6, das 7, das 9, etc". Não. Você pode assistir quando quiser, a hora que for, quantas vezes for, pelo celular, tablet, notebook... O céu é o limite. E muitos produtores já se perguntam qual será o futuro disso para as próximas décadas que virão. 

Não faço a menor ideia de como responder a pergunta entre aspas que encerra o parágrafo anterior. Só o que posso afirmar é que as novelas continuarão por aí, se reinventando, procurando novos caminhos que cheguem ao espectador. E permanecerão essa grande paixão nacional, não importa o quanto os seus detratores falem mal delas. Elas, mais do que mero entretenimento, viraram um compromisso social da população. E isso é praticamente impossível de ser desfeito.      


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O evangelho da sétima arte mundial


O cinema comercial ou blockbuster é uma faceta da sétima arte tanto quanto o cinema autoral, uma faceta cada vez mais onipresente, pelo que se pode perceber nas últimas décadas; e nem sempre isso é um bom sinal para os cinéfilos de carteirinha. E eu nunca entendi o porquê de tantas brigas entre esses dois grupos de fãs. Sempre acreditei que houvesse espaço para todos na sala escura, mas às vezes eu tenho a sensação de que são turmas distintas, que não gostam de coabitar o mesmo espaço. 

Nessas horas, eu faço questão de escolher o lado que abraça também a crítica, com suas opiniões fortes, contundentes, por vezes polêmicas. Não sou do tipo de espectador que se basta com o fenômeno das franquias e o discurso evasivo do "gostei" ou "não gostei". Esse mundo de curtições e compartilhamentos das redes sociais não me picou. Mesmo. Prefiro ler uma opinião completamente contrária a minha sobre um filme do que manter distância de quem não gosta das mesmas coisas que eu. E nesse sentido a revista Cahiers du cinéma sempre fez parte da minha vida. 

Numa matéria escrita por Cavi Borges, antigo dono da locadora Cavídeo e hoje produtor de cinema, para o jornal Correio da manhã, leio que a revista de cinema mais influente do mundo está completando 70 anos de existência. E penso então: "2021 quase acaba e eu deixo isso passar em vão!". É preciso corrigir essa injustiça o quanto antes. 

A Cahiers du cinéma nasceu em março de 1951 dos esforços de três sonhadores: Jacques Doniol-Valcroze, André Bazin e Joseph-Marie Lo Duca. Mas também do delírio e do desejo de dois cineclubes parisienses da época, o Ciné-Club du Quartier Latin e Objectif 49 (que tiveram entre seus membros figuras como Robert Bresson, Jean Cocteau, Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol e François Truffaut). Alguns deles, como bem sabemos, foram responsáveis pela grande revolução cinematográfica que foi a Nouvelle Vague no final dos anos 1950.

Porém, mais importante do que isso, esses homens de coragem lutaram por aquilo que ficou conhecido como a política de autor. Ou seja: todos eles evidenciavam a importância do diretor para um filme (algo diferente do que se vê hoje em dia, num mercado dominado por estúdios). E a partir de análises complexas e abrangentes sobre a estética e o papel social das películas desnudaram o cinema de uma tal forma que, não à toa, a maioria dos críticos hoje a veja, mais do que um simples revista, como um grande evangelho da sétima arte mundial.

Que me perdoem os leitores de publicações como a Hollywood Reporter ou a Variety, mas a Cahiers du Cinéma conquistou um mercado muito maior do que simplesmente monetário. Ela virou sinônimo de cinema na cabeça dos cinéfilos mais apaixonados. Prova viva disso é a famosa lista top 10 que a revista divulga todo ano e é esperada quase que religiosamente pelos fãs. A Cahiers é isso: essa bússola que guia os espectadores mais alucinados por um jornada sem fim rumo ao conhecimento. Não, é isso mesmo que vocês leram! Cinema, para eles, não é só entretenimento. É conhecimento e muito.

Entre novas interpretações para a sétima arte, polêmicas relevantes (não simplesmente ser chato ou xiita com algum gênero e/ou diretor) e questionamentos sobre dogmas cinematográficos, a publicação trilhou de trincheira em trincheira um caminho em busca de reflexão e não se bastar com as primeiras impressões. E para quem pensa que o que a Cahiers fez é muito pouco ou quase nada, leve em consideração o seguinte: se hoje vocês, cinéfilos, sabem quem foram cineastas como Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Samuel Fuller e Nicholas Ray, entre outras feras, agradeçam - e muito! - a revista. Pois antes dela, não era tão comum assim se lembrar de quem dirigiu um filme (pelo menos, não da maneira como vemos hoje em dia no circuito). 

Hoje você vai ao cinema com a maior naturalidade, sabendo que Martin Scorsese é o diretor de O irlandês, David Fincher é o diretor de Mank e Steven Spielberg é o realizador por trás do remake de Amor, sublime amor. Provavelmente, muitos naquela época não faziam a menor ideia que os diretores da versão original do musical de Stephen Sondheim eram a dupla Jerome Robbins e Robert Wise. Mas eles conheciam o título do filme. Parece tão pouco, mas faz uma enorme diferença para quem produz e dirige. 

Vejo muitos leitores da revista dizendo que ela não é mais a mesma, que perdeu parte do seu encanto, que se rendeu aos ditames do mercado (e isso, infelizmente, é verdade). Entretanto, ela ainda permanece - não se sabe bem até quando - um lugar onde a diversidade está presente, não se rendendo ao que o star system e os grandes estúdios, outrora chamados de majors, impõem. Ainda parece ser viável, mesmo com todas as dificuldades financeiras e tentativas da indústria cultural de meter o bedelho na linha editorial da publicação, construir um espaço do pensamento cinematográfico e não simplesmente uma terra de fanáticos que só almejam a corroboração de suas expectativas. 

Ao fim deste artigo-homenagem, o que me sobra é mandar os desavisados ou desconhecedores da revista que a procurem. Vão à seu endereço na internet, fuçem, esmiuçem, leiam, releiam e principalmente: repensem tudo que acreditavam até então sobre o cinema, essa máquina inacreditável e inesgotável de produzir sonhos os mais diversos. E isso, meus caros leitores, é muito mais importante - pelo menos, para mim - do que ser fã do gênero a, b ou c. Podem ter certeza.  


segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Continue caminhando em frente


Em 2005 eu tinha 29 anos de idade e fui a um cinema no Largo do Machado para assistir ao filme R.E.N.T - os boêmios, de Chris Columbus, baseado no musical da Broadway escrito pelo dramaturgo Jonathan Larson que ficou em cartaz por 12 anos.

Quando vi o cartaz do longa na entrada do cinema achei estranho porque o diretor Columbus era uma artista envolvido mais com o universo infantil, a comédia e a aventura. Logo, não tinha a menor expectativa sobre o que deveria esperar do projeto. Saí de lá em êxtase e entrei imediatamente no google para saber mais sobre o criador da peça, que falava de um grupo de amigos portadores de HIV vivendo numa América em crise, esfacelada. 

16 anos depois, ouço falar do projeto tick, tick... BOOM!, dirigido pelo queridinho da Broadway atualmente, o diretor Lin-Manuel Miranda, e com o ator Andrew Garfield (que nos últimos anos se notabilizou interpretando o Homem-Aranha) na pele de Larson. Pensei na hora: isto não vai dar certo. 

E eu estava redondamente enganado. Durante quase duas horas de projeção me deparei com uma viagem por dentro da mente e do universo criado por Larson, um artista que infelizmente nos deixou cedo demais (o dramaturgo faleceu aos 35 anos de um aneurisma na aorta) e tinha tanta coisa a nos dizer. 

Larson vive entre o seu trabalho corrido no café Moondance e a escrita de seu primeiro espetáculo, Superbia, que participará de um workshop, visando conseguir investidores para uma futura montagem. O problema é que o seu texto não é exatamente comercial. Muitos o veem como uma ficção-científica confusa repleta de personagens um tanto nonsenses. 

A vida social de Larson não ajuda a construir um universo mais palatável à crítica. Seu relacionamento com Susan (Alexandra Shipp) está indo pro ralo, pois ela deseja sair de Nova York e vislumbrar novos horizontes e ele não imagina que sua carreira possa dar certo em outro lugar. Não bastasse isso, ele testemunha alguns de seus melhores amigos serem devastados pela AIDS, que atingiu números exorbitantes nos EUA naquele período.  

E cabe aqui um detalhe importante: Jonathan fez parte de uma geração que sentiu na pele as agruras do chamado sonho americano: o de correr atrás de um vida nova e gratificante custe o que custar, mesmo que em muitos casos ela não se concretize, não importa o quanto você tente ou arrombe a porta. 

E enquanto a fama não surge ele precisa correr de lá pra cá e de cá pra lá, à procura de músicos e atores que comprem a sua ideia, às vezes tendo que pagar do próprio bolso, para conseguir convencer as pessoas certas a patrocinarem a sua ideia. 

O dramaturgo Stephen Sondheim, criador de West Side Story e falecido recentemente, é um dos que acredita que ele não pode desistir. A jornada nunca é fácil. E mesmo a sua agente diz pra ele a frase mais autêntica que alguém poderia dizer para uma pessoa desse ramo: continue caminhando em frente, não importa o quanto digam não, o quanto tentem te derrubar. É pra frente que se olha!".

Ao fim da projeção me peguei pensando em Ed Wood, filme do diretor Tim Burton. Embora tenha ganho o rótulo, com o passar das décadas, de o pior diretor de todos os tempos, ele nunca abaixou a cabeça para aqueles que viviam dizendo nos corredores dos estúdios "você está perdendo o seu tempo aqui; isso não é pra você". Jonathan Larson passou pelas mesmas dores, o mesmo desprezo, teve todos os motivos do mundo para desistir e ainda assim seguiu em frente e fez história, contra tudo e contra todos. O único deslize dessa história é que ela não termina em happy end (o que é uma pena!) 

Se você não curte musical porque acha uma bobajada essa gente que canta e interpreta, tick, tick... BOOM! não é pra você, mas sinto muito lhe dizer. Você não faz a menor ideia do que está perdendo. Mesmo. E o rapaz que até então era apenas o Homem-Aranha deu um show à parte. 


sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Esse ritmo que é só nosso!


Que me desculpem os fãs do carnaval, dos trios elétricos, do sambódromo e do confete e serpentina, mas para mim o grande feriado nacional são as festas juninas. Adoro aquele clima de fogueiras, pé de moleque, quadrilhas dançando, canjica, quentão e outras gostosuras. Mas, principalmente, pelo prazer de ouvir o velho e bom forró. 

Engraçado que o forró nasceu meio que internacional, por conta de antigos bailes que aconteciam no país e que recebiam a visita de figuras estrangeiras (por isso, na entrada dos estabelecimentos culturais, era muito comum verem uma placa com os dizeres "for all people", ou para todas as pessoas).

Portanto, For all virou com o tempo forró. 

Aqui mesmo, em casa, se existe um artista que é ouvido quase o tempo todo, esse indivíduo é Luiz Gonzaga, o rei do baião. Certamente a frase que mais ouvi no rádio da minha tia desde que me entendo por gente foi "minha vida é andar por esse país pra ver se um dia descanso feliz". Mas não somente o Gonzagão. Elba Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Trio Nordestino e outras feras do gênero também dão as caras por aqui. 

E é com enorme felicidade - mesmo! - que leio no jornal a matéria que informa que o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) declarou o forró patrimônio cultural e imaterial do Brasil. Notícia mais justa e merecida do que essa, impossível! Ainda mais num momento em que os povos nordestinos vêm sendo tão atacados, de forma tão covarde, por um segmento alienado e ignorante da população. 

Ainda segundo a decisão, que foi anunciada pelo Ministro do Turismo a apenas três dias do Dia do Forró, o gênero musical foi considerado um "supergênero", por também agrupar outras expressões musicais típicas, como o baião, o xote e o xaxado. Achei essa especificação o máximo, porque tem muita gente no país que realmente pensa que é tudo a mesma coisa. Não é. Procurem no you tube vídeos sobre os diferentes estilos e entenderão melhor o que eu estou dizendo. 

Os artistas nordestinos - sanfoneiros, cordelistas, forrozeiros, xaxadeiros, etc - vinham aguardando esse dia há mais de três décadas, sempre esbarrando em alguma burocracia ou a falta de decisão de nossos dirigentes. Pois eis que esse momento glorioso enfim chega para a alegria desse povo tantas vezes injustiçado ao longo da história, mas que muitos não conseguem entender que sua existência se confunde com a cultura desse país.

O que seria do Brasil, de sua diversidade étnica, folclórica, cultural, não fossem figuras como Cora Coralina, Patativa do Assaré, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Raimundo Fagner, Humberto Teixeira, Ariano Suassuna, e tantos outros que me fogem à mente neste exato momento? 

Se existe uma palavra que exemplifica o nosso país como poucas, essa palavra é o nordeste. E sempre vi o forró como uma grande porta de entrada para conhecermos esse universo rico, porém doloroso; heroico, mas não menos sofrido (já bem dizia Euclides da Cunha, quando escreveu em Os sertões que "o sertanejo era, antes de tudo, um forte."). Nenhuma região do país é capaz de entender o significado da expressão "abrir mão" como o nordestino. E é justamente isso que faz deles um povo único, brilhante em suas intenções. 

Termino esta rápida homenagem em forma de texto, emocionado. Sou filho de uma baiana arretada que, infelizmente, já partiu para o andar de cima, não sem antes me ensinar o valor e poder desse povo que não entrega o ouro ao bandido de jeito nenhum. E tenho certeza que ela teria ficado muito feliz de ter lido esta notícia hoje. 

Viva o forró, esse ritmo que é só nosso. Sempre! 


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A camaleoa


Dizem os críticos de cultura que é da natureza dos artistas se metamorfosearem, transformarem-se naquilo que querem, quando querem e da forma como querem. No entanto, quando eu vejo certas figuras andróginas que são chamadas de artistas no Brasil de hoje, eu vejo o quanto esse raciocínio não funciona mais - pelo menos, com essa clareza. É nítida a falta e a carência na cultura pop nacional de nomes como Gonzaguinha, Raul Seixas, Belchior... Qualquer fã de boa música (e desde já adianto: o assunto deste artigo é música) sentirá eternas saudades dessa gente que fez e aconteceu, simplesmente porque tinha a capacidade e o talento necessários para isso.

Cássia Eller também fez parte desse grupo. Eu me lembro de quando a vi pela primeira vez se apresentando num programa de tv e de dizer automaticamente: "quem é essa mulher poderosa, de voz visceral, que arrebatou a plateia e os meus pensamentos com essa enorme facilidade? Muita gente falava que ela era complexa, difícil, antissocial. Mas, na maioria das vezes, não são assim os melhores? De concreto mesmo apenas uma certeza: Cássia varreu o chão dos palcos por onde passou com sua enorme potência vocal e sua rebeldia incontestável. E está fazendo muita falta na MPB nesse século XXI esquisito e cheio de gente que só quer saber de mandar na vida dos outros. 

Vejo a matéria no caderno cultural do jornal O Globo falando dos 20 anos da morte de Cássia Eller (não fazia ideia de que já tinha todo esse tempo!) e da homenagem que farão a ela no Prêmio Multishow de música que será transmitido hoje à noite na tv a cabo e imediatamente minha mente se transporta para o dia do seu falecimento. 

Eu trabalhava no Largo do Machado, mais especificamente no cinema São Luiz naquela época, quando ao chegar um dia para o serviço passo na Rua das Laranjeiras em frente à uma modesta clínica e vejo uma multidão de pessoas segurando faixas e cartazes com o nome da cantora. Me peguei completamente perplexo porque no noticiário da manhã nenhuma emissora havia informado que a cantora estava internada. Vejo gente chorando por todos os lados, sentados perto de um posto de gasolina que ficava ali perto. 

Passo em frente, andando em ziguezague por entre os fãs inconsoláveis, chego ao cinema, assumo meu posto e o dia transcorre como todos os outros anteriores. Por volta de umas três, três e meia da tarde, fico sabendo que Cássia faleceu. E aquilo me entristece na mesma hora. Ela era, naquela momento, pelo menos para mim, a cantora mais representativa do país. Seu maior sucesso da carreira, o cd MTV Acústico, estava ainda estourado nas paradas de sucesso. E o público, sempre ensandecido em suas apresentações, acompanhava junto, comprava sua briga onde quer que fosse. 

Como esquecer da cantora que em plena apresentação no Rock in Rio exibiu ao público, com toda coragem e ousadia que lhe era pertinente, os seios, numa prova cabal de que não tinha nada a temer a ninguém? Naquele exato momento ela disse a todos que estavam ali, mais o que assistiam ao festival pela tv: "eu sou isso aqui e ninguém na face da terra vai me mudar!". Grande Cássia!

Ela virou a trilha sonora da minha vida. Onde quer que eu fosse ou se estivesse em casa escrevendo, lendo, fazendo o que quer que seja, estava ouvindo "Por enquanto", "Malandragem", "E.C.T", "Vá morar com diabo" (música de Riachão que não podia faltar em seu repertório), "Relicário", "1º de julho" (canção que Renato Russo escreveu para ela na época do nascimento do seu filho, Chicão). Uma voz que ia de Nirvana à Edith Piaf com a mesma naturalidade, o mesmo vigor. 

De sua discografia punk, poderosa, mas que sabia suavizar quando necessário, tenho uma admiração toda particular por Cássia Rock Eller, no qual ela viajou de Jimi Hendrix à Legião Urbana, passando por Barão Vermelho e Cazuza, com toques suaves de Arrigo Barnabé e, claro, Rolling Stones. Quem não conhece o álbum, não sabe o que está perdendo. 

Também recomendo o documentário homônimo do diretor Paulo Henrique Fontenelle (o mesmo do também extraordinário Loki, sobre o cantor Arnaldo Baptista) cheio de imagens de arquivo inebriantes e entrevistas fortes, contundentes, invadindo até mesmo a vida sexual da cantora. 

A chamada para a exibição do show MTV Acústico na emissora dizia tudo o que você precisava saber sobre Cássia em poucas palavras: "ela é pop; ela é rock; ela é rap; ela é fúria...". Sim, ela era tudo isso e muito mais. Cássia Eller foi a grande camaleoa da MPB daquele final dos anos 1990, capaz de se mimetizar da forma como queria, enfrentando tudo e todos, seja por sua opção sexual, seja por seu gosto eclético. Como bem disse Oswaldo Montenegro no documentário de Paulo: "ela uniu a classe artística, do forró ao funk, do sertanejo ao rock". Ela era tudo, todos, o isso, o aquilo e o algo mais. 

E que saudades - Meu Deus! - essa mulher vai deixar na nossa música. Nunca mais deixaremos de ser órfãos daquela moça feroz que dizia "quem sabe ainda sou uma garotinha", mas no fundo não parava quieta, porque não conseguia, Não era da natureza dela ser comum.


sábado, 4 de dezembro de 2021

O Brasil de poucos


Muita gente vai negar - e brasileiro adora negar tudo! - mas a pandemia da Covid, que vem nos assolando desde 2019, desnudou muita coisa que vivia sendo varrida para debaixo do tapete. A única coisa que, infelizmente, todo esse processo devastador não ensinou foi a transformar a classe abastada desse país em pessoas melhores. E em certos sentidos acho até que eles pioraram consideravelmente. 

Entretanto, para a nossa felicidade, ainda existem pessoas (e eu me refiro a artistas) que decidiram falar contra essa gente e sua eterna mania de se acharem mais importantes ou indispensáveis do que o restante da sociedade. Foi exatamente essa a sensação que eu tive ao terminar de ler a HQ Confinada, da dupla Triscila Oliveira (responsável pelo roteiro) e Leandro Assis (desenhista). 

O projeto, que nasceu como uma série de tirinhas publicadas no perfil do instagram de Leandro, desnuda de forma feroz a relação entre patroas e empregadas durante o período de isolamento da pandemia. E acreditem: o nível de deboche, sarcasmo e prepotência é feroz. 

Acompanhamos a vida vazia de Fran, uma influenciadora digital, moradora da zona sul carioca, que mais parece um livro de auto-ajuda do que um ser humano, tamanha a quantidade de asneiras e alienações que fala e vende em seus vídeos positivistas. Ela é a favor da cultura good vibes, de ver sempre a melhor perspectiva para tudo e acredita piamente na meritocracia. O que ela não conhece é o mundo real ou o das pessoas que não vivem sob o mesmo status que ela. Como, por exemplo, sua empregada Ju.

Na verdade, ela tinha três empregadas (como se todas elas fossem realmente necessárias), mas duas delas, Dinah e Marli, decidem se afastar do trabalho para cuidar de suas famílias - e bem fazem elas! Ju decide ficar, pois tem filhos pequenos para criar e faz um acordo financeiro com a patroa que seja interessante para ela, mas sabe que essa não será uma tarefa nada fácil. 

Como pano de fundo para construir essa narrativa seca, difícil de engolir, mas necessária, temas como desigualdade, racismo, classismo, intolerância religiosa, injustiça e o que mais você puder imaginar desde que o atual governo assumiu o país nos últimos anos, propondo uma pauta "conservadora".

Tudo de mais recente que tenha ganho destaque na mídia nos últimos tempos é esmiuçado aqui, seja de forma breve ou mais aprofundada. A questão do ensino online durante o período em que as escolas permaneceram fechadas, o desprezo à figura das mulheres paraíbas, a mania corriqueira de chamar quem pensa diferente da elite de comunista, pessoas que não respeitam o isolamento e chamam a doença de uma reles gripe, etc etc etc. 

Enquanto estava disponível apenas no instagram, as tirinhas de Leandro e Triscila mobilizaram mais de 750 mil seguidores, que tiveram paixões e ódios despertados com a mesma intensidade (e teve, sim, gente defendendo Fran como uma mísera incompreendida). E foi dessa mobilização internética que nasceu o interesse de transpor o trabalho para o material impresso, feito conseguido junto ao crownfunding.

Ao final da leitura, que é asfixiante de tão real e mordaz, o que Confinada nos oferece é um retrato vivo desse Brasil de poucos, que se acham autossuficientes e não se importam com nada que não seja o próprio umbigo ou a vaidade. 

E quanto ao futuro? a depender deles, os brancos privilegiados, de preferência que não haja favelas, cotas universitárias e direitos trabalhistas para todos, nem gente para roubar o que é deles por direito. No máximo, serviçais. E está de bom tamanho. 

(Breve, mas necessária nota: eu já imagino a quantidade de gente que vai ler este artigo e me detonar. Vão me chamar de esquerdopata e dizer que eu estou romantizando a pobreza e tudo. Mas, mesmo assim, falem. Fiquem à vontade para detonar. Isto aqui pode não ser um país sério, mas ainda é uma democracia).


terça-feira, 30 de novembro de 2021

O que faz deles um casal?


"Viver à dois é para poucos", diziam meus pais e pelo que pude testemunhar do casamento deles, estavam cobertos de razão. Eu mesmo, em mais de 40 anos de vida, nunca me imaginei como parte integrante deste universo. E ainda digo mais: vejo o casamento como um grande enigma sem solução. Uns vão dizer que vale pela experiência e/ou catarse, outros que foi a melhor coisa que poderia lhes ter acontecido, simplesmente porque não conseguem viver sozinhos. Para mim, é uma incógnita que não vale o risco. 

No entanto, tenho um verdadeiro fascínio por peças de teatro, livros e filmes que abordam o tema. E quanto mais complicado ou fora da curva o casal, melhor. Tem quem chame isso nos EUA de guilty pleasure (vai entender o tio Sam!). Adoração mórbida à parte, ninguém esmiuçou o tema como o cineasta sueco Ingmar Bergman, gênio que fuçou as dores e angústias humanas como ninguém. Mas ninguém chegou perto de sua maestria (embora tenham tentado à exaustão). 

Dentre os que tentaram o mais recente, o produtor Hagai Levi - escritor por trás da soberba série de televisão Em terapia, com o fascinante ator Gabriel Byrne como protagonista - arriscou a empreitada de realizar um remake da minissérie Cenas de um casamento, um clássico na filmografia de Bergman, para o canal HBO. O resultado, mais uma vez, divide opiniões. Mas quer saber? Até mesmo essa divisão é bem-vinda e acrescenta para o debate sobre a trama. 

Aliás, vamos a ela: Mira (Jessica Chastain) e Jonathan (Oscar Isaac) são o casal que aparentava estabilidade, mas tudo rui quando Mira diz que se apaixonou por outra pessoa, no caso um homem mais novo. Detalhe imprescindível: um aborto que antecede essa notícia foi um catalisador fundamental para o começo do fim da relação (embora Mira diga ao marido que há anos vive sufocada, sem paixão). 

Eles têm uma filha, Ava, ainda pequena, e esse será um grande ponto de conflito na separação. Com quem ficar, dividir a guarda... E o pior: eles nunca estão completamente distantes. Um precisa da presença do outro, transformando o casamento num cabo de guerra difícil de explicar. Até mesmo a palavra divórcio (e o fato de ambos não estarem convictos da necessidade dele) vira uma pedra de Calcutá em qualquer conversa ou discussão que tenham. E as discussões - que são muitas e parecem intermináveis - é uma grande questão a dividir o público espectador. 

Em sites de cinema e críticas que li vi muitos "entendidos" dizendo que o bate-boca interminável entre Mira e Jonathan é o maior problema da série. Uma delas chegou a dizer: "se o divórcio é o preço que eles têm de pagar para que eu não tenha mais que ouvir nenhuma discussão, que seja!". Honestamente... Me pareceu o típico comentário de quem viveu isso na pele, de quem não gostava das D.Rs e fez de tudo para pular essa parte quando estava casado. O problema: nenhum casamento é uma festa que nunca termina. 

Quando eu tinha por volta de meus 12, 13 anos ouvi um senhor de seus 70 anos me confessar sua opinião sobre o matrimônio. E ele disse: "o problema dos casais, principalmente os de hoje em dia, é que eles não entendem que o casamento não é a festa, o trocar de alianças, o buffet, o bolo, os docinhos, a benção do padre... Não, meu jovem! O casamento é o que vem depois. O que acontece depois que a festa acabou. E a sociedade contemporânea não consegue mais viver fora da festa". 

E ao lembrar desse discurso, percebi que as discussões de Mira e Jonathan eram o que menos me aborrecia. O problema mesmo era a incapacidade dessa nova sociedade viver a dois. Estamos cada vez mais imediatistas, imaturos, interesseiros, colocando nossos interesses na frente de quem quer que seja. Logo, como dividir o espaço com outra pessoa, casar, ter filhos? Às vezes a mera realização disso já parece um absurdo. 

O que faz de Mira e Jonathan um casal é exatamente essa dificuldade de permanecerem juntos, de serem exclusivos um ao outro. E não adianta os mais velhos reclamarem, chamarem de ingenuidade ou falta de paciência. Os tempos são outros: mais corridos, frenéticos, quase esquizofrênicos. Sou de opinião que a vida se transformou num convite à solidão, pois é melhor ficar sozinho do que magoar alguém. Contudo, o ser humano ainda precisa de sexo, de uma boa conversa, de companhia. Nasce daí um grande conflito. 

No final das contas, o que percebo em Cenas de casamento (pelo menos, nessa nova versão) é que se trata de um grande estudo de caso sobre a imperfeição presente em qualquer ser humano. E da dificuldade de, ao menos, admitir isso. E essa mágoa, esse ressentimento, não é necessariamente algo ruim. Ela só precisa ser canalizada da maneira correta. As brigas, traições e separações, acreditem!, ensinam bem mais do que aparentam. Mas para isso é preciso uma sociedade que não enxergue tudo a ferro e fogo. Nem tudo é apenas certo ou errado. Que bom seria se fosse!

P.S: para você que viu e gostou de História de um casamento, de Noah Baumbach e Kramer vs. Kramer, de Robert Benton (vencedor de 5 Oscars em 1980), achei esse aqui um pouco mais profundo. Mas, cá entre nós, ele precisava ser. Do contrário, não seria o século XXI.   


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Eu voltei a ser criança


Alguns artistas, desde pequeno, me passam a impressão de serem figuras inesgotáveis, que só irão parar de trabalhar, que só iremos parar de ouvir o seu nome, quando ele não estiver mais entre nós. O cartunista Ziraldo Alves Pinto - ou simplesmente Ziraldo - é uma dessas figuras. O menino que nasceu em Caratinga, em Minas Gerais, tinha um encanto todo particular pelo desenho, pelo mundo das imagens. E sempre achei, por acompanhar seu trabalho de perto, que se ele não fizesse disso sua profissão, seu modo de vida, não seria mais nada. 

Ziraldo deu um susto nos fãs em 2018, quando sofreu um AVC. E nesse momento eu temi que aquele seria o começo do fim. Já me preparava, inclusive, para escrever um obituário elogioso sobre ele, enaltecendo sua carreira e falando do quanto ele contribuiu para a minha formação cultural e profissional. Para meu alívio e felicidade, eu estava enganado. O velho mestre ainda tem muito o que mostrar. 

No dia da consciência negra saí de casa para ir ao Museu Histórico Nacional e me deparei com a exposição Terra à vista e pé na Lua. E me perdi no mundo lúdico de sua obra, que algumas pessoas só conseguem enxergar como infantil, mas eu sempre olhei além. E saí de lá com uma certeza: Ziraldo é um dos maiores patrimônios culturais que esse pais possui. O que falta é lembrar a sociedade brasileira disso!

O homem que foi pioneiro no design, promoveu uma  revolução na literatura infanto-juvenil, escreveu para os mais importantes jornais e tabloides do país (dentre eles, A folha de São Paulo, a revista Cruzeiro e o antológico O pasquim) e foi, com folga, dos maiores críticos de costume que o Brasil já teve, é homenageado de uma maneira que até ele iria às lágrimas se visse o resultado. 

É preciso enaltecer o trabalho de cenografia da dupla Susana Lacevitz e Philppe Midani. O capricho, a precisão, a maneira como eles fazem despertar automaticamente a nossa ideia de memória afetiva. Mais do que um mero passeio, a exposição é - como bem se propõe desde o início - uma aventura humana rumo ao desconhecido, nos conduzindo das navegações marítimas às conquistas espaciais. 

Fiquei perdido entre os painéis (alguns de até dois metros de altura) do Pátio Minerva e os personagens gigantescos do artista, representados em escala humana, no Pátio dos canhões. Tinha até - acreditem! - canhão atirando flores. Melhor resposta para um país que prefere nos últimos tempos armas à livros, impossível.

E por falar em livros, eles também estão por lá, inclusive as edições originais de algumas de suas obras. E Ziraldo tem muita história para contar nesse quesito: Zeróis, Menino maluquinho, Flicts, A turma do Pererê, O bichinho da maçã, O planeta lilás, O menino marrom... A lista é imensa. Além deles, quadrinhos, tirinhas, cartazes, onomatopeias, ufa! Deu até canseira uma hora. Mas eu me sentei um pouquinho e continuei. Porque queria ver mais. 

Quer ver a antiga máquina de escrever que ele usava? Está lá. Quer ver a cadeira de bar dele, item de colecionador que ele praticamente não divide com ninguém? Também está lá. Isso fora o lado tecnológico que funde a exposição com outras mostras do Museu através de QR codes espalhados pelos salões. Ainda querem mais? No dia 30 de novembro ainda haverá uma ação educativa chamada "O alfabeto começa com Z", voltada para pesquisadores e professores da rede pública municipal. Para saber mais, dá uma fuçada no you tube do Museu. Eu já estou no aguardo para ver. 

Num release que li a respeito da exposição antes de sair de casa vejo que a proposta é reler o passado e recriar o presente através da história de vários Brasis (meio que uma resposta ao atual governo federal, de viés sempre unilateral). Entretanto, o legado mais importante que a proposta me produziu foi: por mais de duas horas eu voltei a ser criança. E isso nenhum político, discurso de ódio ou fake news irá conseguir tirar de mim. 

Valeu, Ziraldo. Por tudo. E toda saúde do mundo pra você.    


domingo, 21 de novembro de 2021

À margem de tudo e todos


Existem cinemas feitos para arrebanhar cifras estratosféricas, lotar cinemas multiplex e alienar a cabeça de espectadores facilmente manipuláveis enquanto eles consomem pipoca e refrigerante. E também existem cinemas que incomodam tanto, mas tanto, que o último lugar no qual são exibidos é a própria sala de cinema e, por isso, precisam procurar seu próprio espaço, seu próprio modelo de distribuição. Mas ainda assim, com toda essa dificuldade e luta, fazem história e marcam uma geração.

O cinema marginal (também conhecido, na época, como cinema de invenção ou movimento udigrudi, uma corruptela da expressão underground) cabe perfeitamente nessa categoria. E ainda digo mais: acho que é o melhor exemplo de cinema cult que nós temos em toda a nossa cinematografia. 

Ponto vital para entendermos o que foi esse movimento: é praticamente impossível falar do cinema marginal sem mencionar o grupo do cinema novo, pois parte da temática dos marginais (expressão, por sinal, à qual eles próprios não gostavam de se ver associados) partia de um sentimento de decepção com o outro grupo. Eles, os marginais, reclamavam que os cineastas do cinema novo haviam traído sua própria proposta cinematográfica ao deixar de lado a chamada estética da fome - que retratava as injustiças sociais da época - para realizar um cinema mais comercial, de apelo popular. E o que eles queriam mesmo era desconstruir a realidade vivida naquela época. 

O pontapé inicial é dado quando os militares decretam o Ato Institucional número 5 (em 1968) e endurecem ainda mais a vida dos cidadãos brasileiros durante o regime militar. A repressão ganha status e os cineastas, revoltados, pois tiveram suas vidas devassadas, alguns até presos, decidem fazer de sua sétima arte uma luta contra o governo. Em outras palavras: mais do que mera forma de arte, os filmes desse período ganham o status de oposição ao governo, por suas temáticas fortes e, por vezes, dolorosas. 

A estética proposta pelo grupo era o grotesco. Logo, o público espectador daquele período poderia esperar por absolutamente tudo: imagens imperfeitas, desfocadas; enquadramento longe do convencional; deboche, ironia, exotismo, política, violência, sexo, escatologia, os corpos dos atores em cena ganham um novo aporte. Até mesmo a paródia e a chanchada, criticada pelos artistas do cinema novo, é revalorizada aqui. As tramas são insólitas, abordam o incomum, em muitos casos o anormal. Não tem o menor compromisso com a norma culta ou a regra. Pelo contrário... Querem chocar, incomodar o quanto puder.

Que o digam o jovem que mata os pais à faca e depois vai ao cinema; o marginal popstar, que assalta e se aproveita de mulheres indefesas, levando à loucura as autoridades policiais, mais conhecido como o bandido da luz vermelha ou mesmo Sônia Silk, a prostituta que sonha ser cantora de rádio, todos personagens anti-heroicos, desestruturados, à margem da sociedade, como bem preferem os cineastas desse período!

As produções, de baixo orçamento, praticamente experimentais, são produzidas em sua grande maioria na Boca do Lixo, em São Paulo (produção essa que, anos depois, acabou estigmatizada ou rechaçada como vulgar por alguns setores da sociedade, tendo em vista a temática erótica que propunha em muitos longas) e na Belair Filmes, no Rio de Janeiro (produtora idealizada pelos cineastas Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, que realizou sete longas mas acabou fechando as portas por pressão da ditadura). 

Dentre os grandes realizadores desse período (além dos fundadores da Belair), faz-se imprescindível aos espectadores de hoje e das próximas gerações conhecer a obra de Carlos Reichenbach (que, anos depois do fim do movimento, realizaria os fundamentais Lílian M.- relatório confidencial e Filme demência), Ozualdo Candeias (responsável pelo pioneiro A margem), Andréa Tonacci, José Mojica Marins (o Zé do Caixão), Olney São Paulo (do extraordinário Manhã cinzenta) e Luiz Rozemberg. E isso para ficar apenas nos nomes mais óbvios. 

E para quem deseja conhecer um pouco do clima barra-pesada daquela época e do sufoco pelo qual os artistas daquele período passaram recomendo de olhos fechados o média-metragem Horror Palace Hotel, do diretor Jairo Ferreira - facilmente encontrado no you tube -, que embora seja de 1978 (portanto, posterior ao cinema marginal) mostra com exatidão o tom de frustração do meio artístico com o país naqueles tempos sombrios. Considero a obra um documento histórico!

De tristeza mesmo somente o fato de que a geração posterior (da chamada retomada do cinema nacional) não deu continuidade ao legado proposto por esses visionários e acabou, com o tempo, preferindo perder tempo com comédias insossas e produções de estética televisiva barata e artificial. Mesmo os cineastas de viés mais autoral, acabaram tomando um caminho diferente. Eu confesso que gostaria de ver um pouco dessa coragem na nossa sétima arte contemporânea, pois ela anda fazendo falta.

Mais isso é só um mero detalhe desse crítico chato que não tem mais o que fazer e acabou mostrando sua faceta ranzinza no final deste artigo!


quarta-feira, 17 de novembro de 2021

A metamorfose


O gênero terror já me assustou mais e já me passou uma ideia de ser mais sujo, nojento. Não, é sério! Eu tenho achado o gênero um tanto clean nos últimos anos (salvo, é claro, diretores interessantíssimos como Jordan Peele e Robert Eggers) e a culpa disso é da própria hollywood, que não investe tanto em novas ideias boas e perde tempo sucessivamente com remakes desnecessários. 

Nada era mais gratificante naquelas sessões de antigamente - no cinema e na tv, de madrugada - do que a boa e velha participação da maquiagem, dos efeitos práticos e das soluções baratas. Sim, pois CGI ainda não era sequer considerado prematuro naqueles tempos. 

E um grande exemplo disso, desse cinema assustador, sujo, repulsivo, que marcou época é o sempre cult (pelo menos, para mim) A mosca, do diretor David Cronenberg, que completa 25 anos em 2021. 

Acompanhamos a saga do cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum) envolvido num projeto ultrassecreto. Ele convida a jovem jornalista Veronica Quaife (Geena Davis) para seu apartamento e lhe apresenta a um protótipo revolucionário de teletransportador. A princípio sua invenção parece extremamente bem-sucedida e desperta a atenção da jornalista, que quer fazer dele a sua matéria de capa. 

O problema é quando Brundle decide testar seu invento em si próprio e é teletransportado de um módulo para o outro junto com uma pequena mosca. Suas cadeias de dna se fundem e ele passa a sofrer mutações genéticas irreversíveis. Desde o gosto acentuado por açúcar até o desinteresse nítido por asseio, ele começa a se tornar um inseto gigantesco, para o pavor de Veronica, única a testemunhar toda a autodestruição do cientista de perto. 

A mosca faz parte, junto com longas como Videodrome - a síndrome do vídeo, A hora da zona morta, Gêmeos: mórbida semelhança e Scanners - sua mente pode destruir, daquela que eu considero a primeira fase da carreira do diretor David Cronenberg, que envolve - dentre outras temáticas - o fascínio exagerado pela maquiagem, o mórbido e o visual exótico. 

Com o passar dos anos e a chegada dos cabelos brancos Cronenberg acabou direcionando sua sétima arte para outro caminho e se tornou um interessante diretor de dramas existenciais. Contudo, até hoje eu confesso sentir falta desse "outro lado" dele nas telas. 

E no caso específico de A mosca, eu sempre vi o filme como a representação viva do que o escritor Franz Kafka fez com Gregor Samsa em seu livro mais famoso. Seth Brundle é, à maneira de Cronenberg, A metamorfose sem tirar nem pôr uma vírgula sequer. 

E é preciso fazer um adendo importante aqui: desafio qualquer leitor dessa crítica que viu o filme e seja capaz de me apresentar um filme mais nojento do que esse. Até hoje eu olho para um inseto pousando na mesa da cozinha quando estou almoçando e me lembro de toda a deterioração corporal sofrida por Brundle no longa. Eu nunca mais consegui olhar para estas pequenas criaturas sem um certo nojo (e isso, meus caros leitores, é com certeza mérito da produção). 

Depois de testemunhar toda essa nojentice muito bem criada como seria possível chamar esses filmes de exorcismo meia-boca e figuras sobrenaturais criadas em computação gráfica de assustadoras? Pois é. Como eu disse: o terror não assusta mais, não é mais repulsivo como antigamente. E isso é uma pena. 

P.S: se tiverem tempo sobrando procurem também por A mosca da cabeça branca, de Kurt Neumann. Ambos são baseados num conto do escritor George Langelaan e a adaptação de 1958 também vale uma boa conferida (principalmente se você for cinéfilo raiz como eu!). 


sábado, 13 de novembro de 2021

O Shakespeare russo


Eu não sou um leitor apegado ao cânone, pois acredito que precisamos também conhecer o que está fora dele. E acreditem: há muita coisa boa no mercado literário que não é endeusada por críticos e editoras. A própria ideia de se relacionar com a literatura é um conceito singular (pelo menos, para mim). Prefiro quebrar a cara fazendo as minhas escolhas do que me decepcionar seguindo um caminho proposto pela indústria do best-seller ou um crítico de viés popular, mas tendencioso em demasia. 

Contudo, é preciso admitir: quando o cânone acerta, ele acerta em cheio. Foi assim com Shakespeare, com Rimbaud, com Machado de Assis, com Cervantes e certamente é assim com Fiódor Dostoiévski, que no último dia 11 de novembro, se vivo fosse, estaria comemorando os seus 200 anos de existência. 

Dostoiévski renderia uma biografia de mais de mil páginas, um estudo para uma tese de doutorado nas mais importantes instituições de ensino do mundo, e não um mísero artigo desleixado. Eu sei... Mas eu preciso - muito! - fazer essa homenagem. O autor que se tornou atemporal por seus próprios méritos e escreveu sobre essa sociedade na qual estamos afundados até o pescoço muito antes dela sequer sonhar em existir, não é um literato qualquer. Pelo contrário. É justamente do que o mercado editorial anda precisando mais do que nunca hoje e não consegue encontrar na atual geração, mais interessada em modismos e franquias descartáveis. 

Fiódor Dostoiévski retratou as profundezas da alma humana com uma facilidade assustadora. Falou de compaixão, ética e empatia, para ele os temas mais relevantes e imprescindíveis na conversa de qualquer ser humano que se preze. E no auge de sua escrita, mordaz, elegante, e de uma transparência absurda, questionou o individualismo exagerado, a falta de responsabilidade do homem e propôs a beleza (não a da aparência, mas a dos sentimentos, da compaixão) como a salvação do mundo. 

Pena que as gerações posteriores, na sua eterna prepotência, não entenderam nada do que ele disse. 

Em obras como Crime e castigo, O idiota, Os irmãos Karamazóv, Os demônios, entre tantas outras, é possível testemunharmos uma forte teatralidade, baseada em questões e dilemas éticos. Mais do que isso: o autor traz pensamentos sobre as estruturas da sociedade, mas trazidas em forma de questionamentos. Ou seja, ele propõe no fim das contas um interessante repensar sobre a realidade, tendo em vista o quanto a sociedade do seu próprio tempo andava perdida, à deriva.

E é mais comum do que parece pegar um livro de Dostoiévski de forma equivocada e lê-lo à luz de debates entre a fé ortodoxa e o racionalismo ou sob o âmbito da luta de classes. Não, meus caros leitores! Há quem dera fosse fácil explicar o autor dessa maneira. Vocês precisarão de bem mais do que isso, acreditem!

Num artigo publicado no Jornal do Brasil exclusivamente sobre os 200 anos do autor russo o professor Leonardo Guelman, do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF), recomenda aos leitores de primeira viagem que comecem a conhecer a obra de Dostoiévski pelo romance epistolar Gente pobre, que trata de gente simples dos cortiços de São Petersburgo, dos miseráveis que sempre estiveram presentes na obra dele (o que o pesquisador chama de "semente da humanidade").  

Não saberia ao certo por onde começar a indicar a alguém um livro sequer desse mestre da narrativa. Eu iniciei minha relação com sua obra por Os irmãos Karamazóv e, confesso, que achei bastante complexo. E tenham isso em mente: não é um autor simples de ler. Mas é justamente dessa dificuldade, dessa precisão e rigor, que nasceu o meu interesse por seu trabalho. E depois que você engata, não larga mais, podem me cobrar depois aqui!

Ao final dessa resumida (mas não menos agradável) experiência permaneço com a ideia que sempre tive acerca de Dostoiévski: ele é, sem sombra de dúvidas, o Shakespeare russo. Desnudou, como pouquíssimos, o véu de hipocrisia e falso moralismo que cobre grande parte da humanidade. E fez isso de uma maneira tão simples, mas tão simples, que parece até injusto ou covarde com nós, leitores. Mas acreditem: não é. É só talento mesmo. 


quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Os caubóis também envelhecem


Há uma máxima da vida a qual não podemos superar, embora tentemos angustiadamente: o tempo. 

Lutamos contra o tempo de teimosos que somos. Ele chega, apronta das suas, vira nossa vida de ponta a cabeça, nos faz discutir e questionar absolutamente tudo. Pior: nos faz perder tempo, às vezes com coisas simples, com aquilo que está diante de nossos olhos e não somos capazes de ver nem mesmo com lupa ou telescópio. E ainda assim continuamos, seguimos em frente, putos, pois a sensação que se tem em alguns momentos é a de que a vida não passa de um jogo - às vezes de cartas marcadas, às vezes covarde, injusto. E precisamos lidar com as trapaças do dia-a-dia. 

O cinema, nesse sentido, sempre foi uma grande ferramenta para nos colocar à parte desse quesito, o tempo. E mais: ele é capaz de transformá-lo a seu bel prazer, desconstruí-lo, fazer dele gato e sapato, quando a ficção proposta assim o exige. Contudo, nos últimos anos, confesso que tenho andado um pouco decepcionado com certas narrativas que falam sobre o tempo. Tudo me parece um tanto pasteurizado, envelhecido. A sociedade persegue doentiamente a beleza, o status, a ganância, a identidade de gênero e a indústria cinematográfica acabou por comprar esses discursos de forma um tanto equivocada. Em outras palavras: quem poderia falar sobre o tempo parece acovardado ou diminuído diante dos assuntos que tomaram as páginas dos tabloides e a grande mídia.

Bem... Nem todo mundo. Clint Eastwood, o eterno caubói dos tempos de O cavaleiro solitário, Era uma vez no Oeste e o indefectível Os imperdoáveis (vencedor do Oscar), além de voz e corpo da grande persona que marcou a época das franquias, o policial Harry Calahan, continua por aí convivendo e narrando acerca de seus próprios traumas e fantasmas. E é exatamente isso o que ele faz com todo garbo e estilo em Cry macho, seu mais novo longa.  

Na trama, Mike Milo (Clint Eastwood) é um antigo ídolo dos tempos de rodeio que viu seus dias de glória passarem mais rápido do que ele gostaria e agora vive de realizar pequenos serviços para o inescrupuloso empresário Howard Polk (Dwight Yoakam). Polk, por sua vez, sabe melhor do que ninguém que pode contar com a confiança e a discrição de Milo em todos os sentidos e por isso pede para que o velho caubói atravesse a fronteira do México e traga seu filho para morar com ele, pois acredita que a influência da mãe promíscua e alcoólatra está fazendo mal ao garoto. A partir daí, o que vemos na tela, mais do que uma mera busca ou resgate, é um grande conflito de gerações como há um bom tempo eu não via em hollywood. Pelo menos não narrado dessa forma. 

Eastwood, embora com mais de 90 anos, ainda mostra bastante fôlego na direção e não desaponta como contador de histórias e criador de dramas existenciais. Mas para aqueles que vêm crucificando o diretor nos últimos anos por conta de suas escolhas pessoais e projetos, vai aqui um recado: esqueçam a figura notória e máscula que Clint construiu ao longo da carreira com Dirty Harry e os faroestes de Sergio Leone. O tempo, meus caros leitores, passou e o caubói envelheceu. Como, aliás, todo mundo um dia irá. 

Convencer o garoto problemático e mestre em encrencas a voltar com ele é uma saga por si só, mas o velho caubói não está disposto a entregar a toalha tão fácil. A mãe do menino, que não quer vê-lo morando com o pai, embora não dê a mínima para o filho, pede a um dos seus capangas que impeça que a dupla chegue à fronteira. E não bastasse isso, ainda por cima terão que se esconder, pedir abrigo à dona de um estabelecimento comercial - que se encanta pelo velho Milo -, serão confundidos com transportadores de droga e sabe-se lá Deus o quê mais.

Dos longas que Eastwood dirigiu nos últimos anos certamente foi o que eu mais gostei, pois achei coeso e não me soou melodramático em demasia. Pelo contrário: é de uma verdade assustadora quando toca em questões como heroísmo, juventude e velhice. E acredito que muitos dos espectadores que prefeririam que o diretor se aposentasse a produzir algo do tipo tenham se incomodado - e muito! - com esse aspecto. 

Nossa sociedade atual só pensa em festas, glórias e conquistas. Ninguém parece interessado naquilo que pareça remotamente real. Fugimos dos nossos próprios problemas sob a falsa crença de que eles simplesmente desaparecerão com o passar dos anos. Mas o tempo nunca funcionou dessa maneira. E aqui, em Cry Macho, o que vejo é um ensaio doloroso, mas extremamente necessário e verdadeiro, sobre o tempo, esse inimigo invisível e devastador que nos acompanha até o último dia de nossas vidas. 

Você, festeiro, alienado, que já não queria ver o filme, ficou ainda mais decepcionado após a leitura desta crítica? Pois quem perdeu foi você mesmo. Um dia, quer você goste ou não, essa história também será a sua. Os questionamentos e dúvidas darão as caras e somente você poderá lidar com eles. Sem turminhas, galeras e amigos ao redor. E eu tenho é pena da decisão que você irá tomar quando esse dia chegar... 


sábado, 6 de novembro de 2021

A rainha da sofrência


Eu acordo antes das oito da manhã por causa da música que toca na casa da vizinha em frente. A mulher que canta fala de traição, diz que não aguenta mais, que não precisa passar por nada disso. E está certa a mulher que canta. E eu então me lembro da tragédia do dia anterior e de que não poderemos mais ouvir nada novo dela daqui pra frente. Cara... Isso é triste! 

Por volta das duas e quinze da tarde a música popular brasileira perdeu a cantora Marília Mendonça, a rainha da sofrência. Ela faleceu aos 26 anos, ainda uma menina cheia de vida e de ideias, por conta de um acidente aéreo em Minas Gerais, onde iria realizar um show. 

Da igreja aos vídeos no you tube (sim, aqueles vídeos em que, na maioria das vezes, você sempre pensa "não vai dar em nada" até que acontece). Dos vídeos às canções que escreveu para duplas sertanejas e o show pioneiro no Pará. Então a consagração, o fenômeno. Mas até que se tornasse a live mais assistida na pandemia, com mais de 3,5 milhões de pessoas assistindo online, muita água teve que correr por baixo dessa ponte.

Na série da Globoplay, Marília Mendonça: todos os cantos, pudemos conhecer um pouco da sua carreira, da sua vida, da correria, dos sacrifícios para estabelecer uma carreira, ainda mais num meio tão machista como é o sertanejo. E essa sempre foi a grande força da música - e do caráter - de Marília. 

Ela cantou a infidelidade dos machistas, pôs o dedo na ferida e lutou por aquilo que acreditava. Em suas canções deixava claro aos ouvintes que não veio ao mundo para ser "plano B na vida de ninguém". E certa estava ela, mulher empoderada e corajosa como poucas. 

"Saudade do meu ex", "Infiel", "De quem é a culpa?", "Eu sei de cor", "A gente não se aguenta", "Sentimento louco"... Hits que estão (e nunca sairão) da boca do povo, principalmente do público feminino. Marília era a voz dessas mulheres que não aguentam mais ficar no banco de reservas, que querem ir à luta e serem independentes. 

A reviravolta na carreira de Marília estava logo ali, na esquina, esperando por ela. A turnê internacional de As patroas, ao lado da dupla Maiara & Maraisa, chegara aos states com direito à outdoor na Times Square e tudo. E se alguém no meio artístico merecia mesmo isso tudo era ela. Uma pena!

E eu me pergunto: o que sobra para os fãs, que agora acompanham ao longo do dia as notícias sobre a investigação da tragédia? Como ela bem disse em uma de suas músicas, "todo mundo vai sofrer". E acredite: todo mundo sofreu. Mas também cantou e vai continuar cantando, porque o nome dessa moça precisa continuar sendo lembrado. 

Chego à conclusão - e vai ter muita gente me criticando, me chamando de exagerado, depois de ler isso que eu vou escrever agora - de que Marília Mendonça foi a Maysa do século XXI. Ninguém, absolutamente ninguém nos últimos anos, falou da dor e do sofrimento de uma maneira tão verdadeira, tão nítida e feroz, quanto ela. E como foi bom ouvir ela dizer aquelas palavras! 

No Brasil de hoje, cheio de misóginos, cafajestes e moralistas com seus dedos acusadores e discursos fajutos, nunca precisamos tanto de alguém como Marília. E por isso sua morte é tão sentida. 

Na ausência de palavras melhores e em meio às lágrimas que descem do meu rosto enquanto termino este singelo obituário, só me resta dizer "Fica com Deus, menina! E tenha certeza de que você era o máximo".