sábado, 28 de novembro de 2020

Aquela decisão que ninguém quer tomar


O aborto. Não importa quantos séculos passem e o quanto a sociedade evolua, ele sempre será um tema tabu. E digo isso não por conformismo, mas pelo desejo que a própria sociedade tem de permanecer conservadora diante dos assuntos mais espinhosos e contraditórios. Parece, na maioria dos casos, um mecanismo de defesa ou um porto seguro. Seguir a maioria acomodada à ter sua própria opinião. Entretanto, nem sempre aqueles que seguem a manada fazem na prática o que dizem no conforto de seus grupos sociais. 

Em outras palavras: conheço muita gente que é contra o aborto, mas se fosse a sua vida, seu corpo, tiraria a criança na mesma hora. E mesmo assim adora criticar a decisão dos demais. Ver Nunca, raramente, às vezes, sempre, da diretora Eliza Hittman, me deixou pensando nisso durante toda a sessão. O quanto somos hipócritas ao condenar decisões alheias, mas quando tomamos as nossas o buraco é sempre mais embaixo. 

O longa de Eliza segue a jornada de Autumn (Sidney Flanigan, em seu primeiro trabalho de atuação) que descobre estar grávida de quase quatro meses, fruto de um relacionamento abusivo, e decide fazer um aborto. Seus pais não sabem de nada e ela pede ajuda à sua prima Skylar (Talia Ryder) com quem viaja para outra cidade para interromper a gravidez. 

Antes mesmo da possível chegada de um bebê a vida de Autumn não se enquadra na categoria de "fácil" ou "bem sucedida". Ela não se sente incentivada dentro de casa, não é respeitada por nenhum dos homens com quem se relacionou e tem como chefe no trabalho um homem cafajeste, que a assedia descaradamente. Logo, como a chegada de uma criança poderia melhorar a sua vida em algum aspecto? 

Resultado: tomar aquela decisão que nenhuma mulher gostaria de tomar, mas às vezes se torna a única viável. E o caminho será espinhoso, cheio de perguntas a serem respondidas, pois há um sistema que existe para que voltemos atrás em nossas decisões. Para que não seguimos em frente, que sejamos condescendentes (como todo bom pagador de impostos!). E Autumn precisará ter muita força de vontade para chegar ao final dessa saga. 

Detalhe importantíssimo: mesmo terminada a intervenção não há garantias de que arrependimentos não surgirão a longo prazo, pois a vida não é uma ciência exata e está sempre nos colocando contra o muro, testando nossas escolhas.  

Houve um momento da história de Autumn em que me peguei pensando em Ramón Sampedro, personagem de Javier Bardem no filme Mar Adentro, de Alejandro Amenábar. A diferença é que Ramon lutava pelo direito à eutanásia e se deparou com um sistema ainda mais covarde do que o hospitalar que fez o aborto da jovem, pois precisou ir aos tribunais para ver reconhecido o seu direito à morte, na linha "meu corpo, minhas regras". 

E embora a diretora não tenha preferido um caminho ácido ou mesmo embrutecido, Nunca, raramente, às vezes, sempre se mostrou, pelo menos para mim, uma narrativa incômoda a todo momento. E me peguei pensando no quanto é difícil ser mulher em qualquer sociedade, não importa se você vive na África ou num país de primeiro mundo. 

Autumn é o retrato vivo da sociedade maculada pelo machismo extremo, que protege homens cafajestes, às vezes crias de famílias abastadas e se vê numa posição de fazer o que for necessário - mesmo que o necessário lhe custe um rótulo de miserável ou assassina por parte dessa mesma sociedade deturpada - para chegar ao dia seguinte. Nesse momento sua vida se torna um amontoado de "infelizes dias seguintes" sem a menor perspectiva de dias melhores por vir.  

E ainda tem gente hipócrita, no conforto de suas mansões, que prefere chamar essas mulheres de ressentidas, mal amadas ou vulgares...


quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Dieguito


Tem dias que eu ligo o computador e fico esperando a notícia ruim vir, de sola. E em se tratando de 2020, repleto de notícias ruins e fake news, o dia hoje se superou. Mesmo. E o futebol, independente de você ser fã do jogador ou não, perdeu um de seus maiores legados. "Mas não tem jeito", dizia minha avó, "a vida quando quer, ela leva e pronto".  

Pois bem: a vida levou Diego Armando Maradona, aos 60 anos, após sofrer uma parada cardíaca em casa. Ele recentemente havia feito uma cirurgia delicada no cérebro e seu caso, é bem verdade, inspirava cuidados. No final das contas, não aguentou. O criador o chamou. 

Era difícil amar completamente Maradona, pois ele era um indivíduo complexo, à margem do sistema, rebelde por natureza. Entretanto, também era difícil detestá-lo completamente. Ele foi a tônica do que o esporte representou ao longo de sua história. Se houve alguém que fez do futebol um arte debochada e polêmica, foi ele! E vê-lo jogar era um caso à parte, mesmo que você torcesse contra. E eu torci. 

Quando seu passe melindroso para Caniggia vencer Taffarel tirou o Brasil, nas oitavas-de-final, da Copa do Mundo de 1990, houve um lado meu que não conseguiu detestá-lo, mesmo em meio às lágrimas que rolavam. Eu já havia torcido contra a Argentina no jogo de abertura da competição contra Camarões (jogo esse em que François Omam-Biyik fez a alegria de milhões de brasileiros com um gol revolucionário na história das copas), mas sabia que ela se classificaria, pois tinha Dieguito em seu escrete. E que ela tentaria o bi a qualquer custo. O bi não veio, mas foi por pouco. E nós rodamos pelo meio do caminho na mão deles.

Quatro anos antes, aliás, Maradona fez a festa no México e até hoje muitos por aqui dizem: "ele ganhou a copa sozinho". Acreditem: eu entendo quem pensa assim. O cara era foda. Dentro das quatro linhas poucos atingiram o seu nível. 

Seja no Boca Juniors, no Nápoles ou na seleção, Maradona exibiu seu estilo irreverente e suas provocações (que também fizeram história, dentro e fora de campo). Seu caso de amor e farpas com Pelé se tornou notório e alimentou a rivalidade eterna entre torcedores. E, honestamente, babaca de quem cogita a possibilidade de escolher quem foi melhor entre os dois. É caso perdido. Eram épocas diferentes e estilos diferentes. 

Mais vale a pena lembrar da Mano de Dios, o gol de mão que ele fez contra a Inglaterra em 1986 que parou o mundo. Tem quem chame o árbitro de maluco até hoje por não ter visto a ilegalidade, mas enfim... Incorporou à mística do futebol e suas distorções temporais. 

Ano passado enfim consegui assistir ao documentário Maradona by Kusturica, e me deparei com o fanatismo em seu apogeu do torcedor argentino. Maradona é, de fato, o Pelé portenho para nuestros hermanos. Há, inclusive, uma cena de fanatismo religioso numa igreja criada para exaltar o jogador. Chegam a mudar a oração da Ave Maria para incluir seu nome nela. Enfim: o futebol como rito de fé cega e apaixonada. 

Se não tivemos mais de Maradona foi porque seus exageros e os abusos envolvendo drogas não permitiram. Passarei o resto da minha vida perguntando o que ele (ainda) poderia ter feito nos campos não fosse a cocaína. Em 1994, quando o Brasil sagrou-se tetra, foi pego por uso de Efedrina e cortado e eu, confesso, fiquei na dúvida sobre a legitimidade do dopping. Acabou pagando um preço alto por seu histórico infeliz. Porém, isso não foi suficiente para macular sua história dentro de campo. 

Continuo - e continuarei eternamente - vendo-o como um gênio inconsequente, imaturo, desbocado, mas de profunda técnica e sabedoria. É... Está cada vez mais difícil, para mim, continuar assistindo futebol. Acabo por preferir os vídeos clássicos do you tube. 

Fica com Deus, Dieguito!

P.S: eu queria ser uma mosquinha agora e pousar na Bombonnera, campo do Boca Juniors, para ver o semblante dos torcedores...


sábado, 21 de novembro de 2020

Clã dos imorais


Com o passar dos anos e o convívio com o cinema do mundo todo (e não somente Hollywood, como acontecia na minha adolescência) aprendi a enxergar a sétima arte sob a ótica de dois grupos de diretores. Os primeiros são aqueles que buscam a glória, a projeção, que não titubeiam diante da obtenção do sucesso. E os do segundo grupo, meus favoritos, são os provocadores por natureza. Aqueles que não se rebaixam diante do star system ou das convenções morais de sua terra natal. Se têm que escandalizar, escandalizam; se é pra debochar, debocham sem dó. E principalmente: estão sempre um passo à frente do politicamente correto. 

Dentre os meus diretores preferidos desse grupo encontram-se figuras como John Waters (que anda sumido das telas, por sinal), Terry Gilliam, Glauber Rocha, Brian de Palma, Oliver Stone, Fernando Meirelles, Wong Kar-Wai, Quentin Tarantino, Tom Tykwer, Pedro Almodóvar, Bong Joon Ho, Alejandro González Iñárritú, Beto Brant, Roberto Rossellini, David Lynch e, claro, desde sempre, David Cronenberg. 

E no caso de Cronenberg em particular cabe ainda um adendo por toda a sua contribuição artística junto ao departamento de maquiagem (como esquecer de Scanners: sua mente pode destruir e A mosca?) e a enorme habilidade que tinha, no passado, para trabalhar com efeitos práticos, muito antes dos efeitos especiais e o CGI ditarem os rumos da indústria cinematográfica americana. 

A obra cinematográfica de Cronenberg está repleta de projetos inusitados, que me deixaram de cabelo em pé. De Videodrome - a síndrome do vídeo até Gêmeos - mórbida semelhança, não teve uma só película desse gênio sórdido que não mexeu profundamente comigo. Contudo, nenhum outro projeto dele me colocou de ponta a cabeça como Crash: estranhos prazeres. E talvez por isso nunca tenha tomado coragem de fazer uma crítica a respeito. Até agora. 

Crash pega um diretor de tv que acaba de sofrer um acidente de carro, James Ballard (James Spader, do clássico eterno Tuff Turf - o rebelde), para usá-lo como fio condutor numa jornada de autoconhecimento rumo aos EUA dos dias de hoje. Só que essa história foi contada em 1996. 

Após o acidente e a consequente internação, James - acompanhado de sua esposa Catherine (Deborah Kara Unger) - conhece Helen (Holly Hunter), Vaughan (Elias Koteas) e Gabrielle (Rosanna Arquette), uma trupe de desajustados que frequentam um grupo fascinado por acidentes automotivos. Eles se reúnem em plena madrugada para assistir à réplica de famosos acidentes que levaram à morte grandes celebridades, como o astro hollywoodiano James Dean. Mais do que isso: vivem tão intensamente a cena que parecem estar presentes no momento exato em que elas aconteceram. 

Em outras palavras: James, Catherine, Helen, Vaughan e Gabrielle compõem, na verdade, um clã dos imorais, pessoas que subvertem a própria ética com o único interesse de satisfazer seus prazeres nefandos. E nesse sentido tanto o livro homônimo de J. G. Ballard - que serviu de base para o roteiro - como a adaptação para as telas de Cronenberg são um deleite para os olhos depravados mais apaixonados. Com seu sarcasmo e ironia únicos, o diretor constrói uma mise-en-scene caótica e desesperada, um contraponto à ideia que os Estados Unidos adora fazer de si mesmo para o restante do mundo. 

Enquanto testemunhamos a destruição e o esfacelamento social diante de nossos olhos, Cronenberg ainda tem tempo de nos perturbar um pouco mais com uma trilha sonora incômoda, dessas que só serve para nos acompanhar (e confundir) quando terminamos a sessão. Podem ter certeza: a música vai ficar ecoando na sua cabeça um bom tempo depois que o filme terminar, pois o objetivo dela é exatamente este.  

Logo, o resultado final dessa equação macabra não poderia ser outro: o espectador se vê invadido por uma crônica do caos, onde os seres humanos não passam de mercadorias frágeis e fúteis, implorando por migalhas de atenção. E não se esqueçam da sexualidade de cada um dos membros do clã. Sim, aqui ela é um personagem coadjuvante importantíssimo na hora de entendermos a carência e o desespero de suas vidas. Eles parecem, a todo momento, se segurar a boias salva-vidas invisíveis, na esperança de dias melhores que nunca vêm. 

Após terminar o filme, corro para o site IMDb e me deparo com a informação de que o último longa de Cronenberg, Mapas para as estrelas, é de seis anos atrás. E fico triste. Espero sinceramente que ele não tenha se aposentado. Ainda não. Um artista brilhante desses não pode ficar sumido dos cinemas tanto tempo. Volta, David! Só mais um pouco... Os fãs imploram.

P.S: não confundir esse filme com Crash: no limite, do diretor Paul Haggis, vencedor de 3 Oscars em 2006 e que roubou descaradamente o grande prêmio da noite do extraordinário O segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee. A confusão seria, no mínimo, injusta.    

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O dia da inconsciência


Hoje é dia da consciência negra. 

Correção: hoje deveria ser o dia da consciência negra, se nosso país - sempre mais afeito à intolerância, ao desrespeito, ao racismo, ao totalitarismo - tivesse de fato uma consciência. Uma consciência, digamos, humana. Ao contrário, o que vemos hoje é a morte de João Alberto Silveira Freitas, negro, soldador, 40 anos, espancado até a morte por um policial e um segurança na porta do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. Como legado esse senhor deixou mulher e uma enteada (e muitos por aqui nem disso querem saber!). 

O problema, entretanto, é sempre mais antigo do que isso, do que a violência atual, a última corrida. Afinal de contas, muitos já não se lembram mais do rapaz estrangulado por um segurança do supermercado Extra. Alguns até dirão: "ah, isso já foi... é passado, não vende nem jornal mais!". Não, não foi. É. Continua sendo. Faz parte do DNA dessa pátria contraditória onde os nossos próprios governantes atuais alegam "não haver racismo no Brasil". 

Já houve um tempo em que era simples dizer que negro, aqui, era caso de polícia. Hoje em dia é pior: é um caso grave, histórico, antropológico, com profundas raízes em nossa história colonial. Deturpa-se a história nacional como nunca antes na história desse país. Intelectuais brilhantes como Laurentino Gomes viram alvo de boçais e ignorantes que querem impor a sua verdade como única a qualquer preço. E em meio a todo esse clima de guerra, de desrespeito e alienação, sobra o quê para festejar? Pois é... Sobreviver, quando se pertence à etnia negra, passou de arte à sacrifício. 

Numa igreja na Glória uma missa em homenagem ao dia da consciência negra é cancelada por ameaças oriundas de setores católicos à Arquidiocese. Sim, não são apenas os evangélicos o problema do momento. O problema é escolher um caminho, uma fé, uma sexualidade diferente da deles. O problema é ter "outra cor". 

Hoje deveria ser um dia para celebrarmos Carolina Maria de Jesus, do extraordinário Quarto de despejo; de ovacionarmos o geógrafo Milton Santos; de engrandecermos figuras como o ator, poeta e dramaturgo Abdias do Nascimento - fundador do Teatro Experimental do Negro - e o ator e cineasta Zózimo Bulbul; de lembrarmos, mais do que nunca, de divas eternas como Ruth de Souza e Zezé Motta; de não esquecermos, sob nenhuma hipótese, do atleta olímpico João do Pulo, e tantos outros que a história oficial costuma varrer para debaixo do tapete o tempo todo.  

E para quem quiser ter só uma pequena noção do descaso que é cometido com a população negra brasileira, procurem urgentemente por A negação do brasil: o negro na telenovela brasileira, de Joel Zito Araújo (há também uma versão em documentário, de 2000). E eu disse "uma pequena noção", pois o caso - já disse antes - é grave.

Mas não celebramos nada disso. Pelo contrário. Não passamos de ruído e incompetência. De achismo e arrogância. De negação à tudo, à ciência, à ética, aos valores, até mesmo à própria vida. Estamos, na verdade, cantando "perfeição", música de Renato Russo para o Legião Urbana que logo na abertura expurga os males desse país anunciando: 

Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação... 

E ainda assim há quem gargalhe, quem desdenhe, quem chame o racismo só de estrutural, quem o negue, com unhas e dentes. Já viram o presidente da Fundação Palmares? Eu tenho um vizinho que me disse outro dia que preferia que ele fosse branco, que talvez desse certo. Detalhe: meu vizinho é mulato.  "Se há algo perto do fundo do poço no Brasil é a questão do negro", escrevi dois anos atrás na minha timeline no facebook. E isso precisa parar agora. Mas como? 

Hoje, na verdade, se pararmos para pensar, é o dia da inconsciência, seja ela branca, negra, indígena, asiática, judaica, etc etc etc. E a grande maioria do povo não está nem aí, porque se acostumou ao que existe de pior, já está vacinado diante da barbárie e da intolerância, ou simplesmente "porque não é comigo". 

E aí? Comemorar o quê mesmo, no fim das contas? A resistência, claro! Porque desistir nunca foi opção pra ninguém, que dirá pra quem foi massacrado a vida inteira.


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Novembro negro


Mais uma vez a história se repete. No Brasil, a ignorância, o desleixo e as histórias macabras sempre se repetem numa sucessão infinita de mal estares da civilização...

E essa história em particular parece um daqueles dramas que o cineasta Ingmar Bergman fazia como ninguém só para nos deixar de cabelo em pé ao final da sessão. E eu, que sou calvo, me preocupo logo em perder os últimos fios. 

Mas vamos logo ao assunto, que é o que interessa aqui:

Que tristeza tudo isso que está acontecendo no Amapá nos últimos 17 dias! Prova de que nada aprendemos, nunca. com as recentes tragédias de Brumadinho - e o descaso da Vale do Rio doce -, o incêndio no Ninho do Urubu, CT de treinamento do Clube de Regatas Flamengo e o acidente aéreo que levou à morte os jogadores do Chapecoense. 

Em outras palavras (e como bem disse certa comentarista da CNN Brasil poucas horas atrás quando mencionava o caso): entram governantes, saem governantes, mudam propostas e nos vemos sempre diante da mesma proposta. No caso, o descaso. E eles, os donos do poder, continuam rindo da nossa cara e se reelegendo ad aeternum. 

Não bastasse o calor atroz no norte do país, que deve ter aumentado em tempos de incêndios na Amazônia, ainda por cima pessoas dignas lutam para colocar o feijão e o arroz na mesa, improvisando do jeito que dá, pois só podem mesmo contar com a luz do sol e nada mais. 

Ninguém dorme à noite. pois a tarefa é hercúlea e para corajosos do mais alto grau - as crianças que o digam! -; e aparelhos eletrodomésticos queimam de tanto liga e desliga e tanta incerteza. Pior: grande parcela da população vive em regime de extrema pobreza, quase sem eira nem beira. Logo, precisa dizer mais alguma coisa ou está implícito na tragédia cotidiana? 

Peçam aos moradores para que eles vão ao supermercado mais próximo. Perguntem-lhes sobre o teor da água que estão bebendo. Em suma: perguntem a esses sobreviventes "como vai indo a vida". Provavelmente a resposta será um misto de Mad Max com o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos. Sim, eu sei... É trágico. 

Um agravante para piorar ainda mais o que já é ruim na essência do problema: um juiz decretou a demissão das diretorias da Aneel e da ONS, responsáveis por "tentar" resolver o problema o mais rápido possível. De concreto mesmo nem a causa da tragédia. Há quem diga que tudo começou com um incêndio na principal subestação do Estado. E eu digo de concreto nada, pois os fatos - como sempre - estão "sendo apurados" (e é justamente dessa frase que eu sempre tenho medo no país). 

E enquanto o milagre não dá as caras, sobra ao povo o rodízio de energia (que me fez lembrar aqui no RJ aquela história do racionamento energético por causa da falta de água nas estações de tratamento, lembra? E a solução do governo, com as bandeiras vermelhas, amarelas e verdes, então? Que Deus nos acuda!)

É... 2020 cada vez mais se torna um ano histórico no pior sentido do termo. O ano que não começou e só deixou cicatrizes amargas e indeléveis por onde passou e continua passando. Sim, o ano ainda não acabou, não! Ou seja: vem mais por aí. Logo, o medo continuará por mais 40 dias. 

E lembram do "de concreto mesmo?". Então... Chego à conclusão de que em 2021 vai ter muito autor - de ficção e não-ficção - escrevendo sobre esse ano que nunca deveria ter começado e o que ele fez conosco. Podem me cobrar, quem quiser.


quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Os diferentes da história


Já faz um tempo que eu quero escrever um texto sobre o mundo nerd, mas não encontrava um mote ou mesmo a disposição necessária para tanto. E digo isso porque o nerdismo, meus caros amigos e leitores, é um caso sério. Pode até parecer para muitos tratar-se de uma grupo de pessoas bobalhonas, fanáticas, infantilizadas, que não vivem no mundo real, mas acreditem: não é bem assim.

Os nerds são vistos por onde passam como alucinados ou excêntricos ou pessoas que, simplesmente, "não tem mais o que fazer da vida". E nos últimos anos a indústria cultural andou associando eles a conceitos e valores que, cá entre nós, não condizem com a cultura que eles representam. 

Nos meus tempos de colégio (leia-se: segundo grau) havia a expressão CDF para aqueles que estudavam demais e essa expressão se tornou meio que precursora do mundo nerd. Hoje, eles podem até ser mais descolados e gerar o interesse de belas mulheres, mas no geral o conceito permanece. Continuo vendo o nerd como aquela pessoa obcecada por conhecimento, que não se basta com uma mera opinião ou informação na internet. Não, o nerd corre atrás, fuça, bagunça o coreto, desconstrói o que aprendeu e procura de novo e de novo e mais uma vez. 

Em suma: trata-se de um indivíduo em eterno status de insatisfação (e, muitas vezes, se orgulha disso!).

E nesse sentido foi extremamente gratificante ler Enciclonérdia: almanaque da cultura nerd, da dupla Luís Flávio Fernandes e Rosana Rios. Ele, um geek por natureza (você não sabe o que significa geek? Honestamente... Você está lendo o texto errado!) e ela, uma autora reconhecida de literatura fantástica e infanto-juvenil (os americanos talvez prefiram o termo young adults). E dessa junção a priori estranha nasceu um grande manual para entendermos o básico desse universo. Sim, eu disse o básico, pois o mundo nerd é vasto e inesgotável. 

E a dupla abre o volume já categorizando tudo aquilo que os leitores mais apaixonados do gênero irão encontrar nas páginas seguintes: brinquedos, desenhos animados, ciência e tecnologia, datas comemorativas, eventos nerds, gadgets, fã-clubes e comunidades, filmes, frases nerds, hqs, nerds famosos, seriados de televisão, etc, etc e muito, mas muito etc...

O livro mexeu até mesmo com minha deficiência em física e ciência em geral, que me acompanha desde os tempos de ensino fundamental (já devo ter dito isso em outros textos que escrevi, mas não custa nada repetir: sempre fui de humanas, minha praia mesmo era português, literatura, história e campos afins). E confesso que fiquei meio perdido quando me deparei com verbetes como wormhole, paradoxo do espaço-tempo e efeito doppler, entre outros. 

Mas, ao mesmo tempo, foi importante também ir fuçar um pouco mais sobre o assunto na internet. Aliás, recomendo a leitura em versão online para que vocês acompanhem o livro com o google, no mínimo, aberto. 

E afora os deslizes científicos de minha parte, o restante da obra é um deleite para fanáticos do gênero. É possível encontrar um  pouco de tudo no almanaque: acelerador de partículas, action figures, adaptações de hqs para cinema, albuns de figurinhas, almanaques, animes e mangás, Área 51, Arquivo X, astronomia, super-heróis, Big bang, Blade Runner, calculadora, campus party, celular, computação gráfica, colecionismo, computadores, convenções, cosplays, corrida espacial, cyberpunk, dinossauros, dna, esperanto, extraterrestres, feiras medievais, filosofia, Bill Gates, google, gravidade, holodeck, holografia, internet, jedis, Steve Jobs, jogos de tabuleiro, lego, literatura fantástica, Microsoft, mitologia, monstros, mutação, realidade virtual, rede sociais, RPG, teletransporte, teoria da relatividade, universos paralelos, viagem no tempo, videogames, wikipédia, world wide web, xadrez, you tube, zumbis, ufa!, e muito mais.

Ao final da leitura, cansado mas repleto de novos conhecimentos, entendi porque os nerds incomodam tanto. Porque eles são os diferentes da história e escolheram ser isso. Escolheram não se submeter a uma bolha ideológica ou a algum tipo de algema social fabricada pelo modelo político a, a religião b ou a cultura c. Eles resolveram trilhar seu próprio caminho, fazer suas próprias escolhas, emitir sua própria opinião. E isso, num mundo castrador, como esse oferecido pelo novato século XXI, pode não parecer, mas é muita coisa!

Eu custei a me entender como nerd. Acreditei durante anos que não possuía a habilidade necessária ou tinha o tempo disponível para me tornar mais um membro do clã. Estava enganado. Na verdade, eu acabei me tornando mais nerd do que pensava. E isso não é nada mal. Não mesmo. 

Pois qualquer pessoa hoje em dia que se proponha a decidir a sua própria vida ao invés de seguir padrões e dogmas alienantes, acreditem!, está na vanguarda da sociedade. E não importa o quanto lhes chamem de infantis ou inúteis para o "progresso da humanidade", eles continuarão seguindo em frente, incomodados e sedentos por informação e conhecimento.

Para saber mais sobre o livro e o assunto, acesse o site http://enciclonerdia.com.br/


sábado, 14 de novembro de 2020

American vertigo


A sétima arte realmente é insana e cruel, às vezes... Vejam por exemplo o caso abaixo:

Juntem um filme-homenagem aos cinemas de segundo escalão que forneciam como único entretenimento produções baratas, arranhadas, com atuações viscerais, ruídos em excessos, falhas na trilha sonora e na coloração da tela e um diretor cuja mente tresloucada e seu lado pesquisador fanático por temáticas as mais inusitadas é capaz de qualquer coisa. 

Resultado: Um projeto autoral animalesco (Peraí... autoral? Feito em plena era de crise dos estúdios hollywoodianos quando a expressão risco zero - ou o que quer que isso significasse - virava clichê barato na língua de produtores, diretores e outros chefões das principais companhias?).

Assim é Grindhouse, um projeto a quatro mãos realizado pela dupla Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, a quem poucos realmente assistiram juntos no mesmo rolo nos cinemas, seja por incompetência da empresa distribuidora, seja por preconceito puro. Passados dois anos de seu lançamento na versão integral, À prova de morte, a metade tarantinesca, deu as caras mostrando a face cínica de seu realizador, um profissional que nunca escondeu ao longo da carreira o apetite pelo diferente e o chocante.

A grande marca pessoal de Tarantino está lá: a capacidade de transformar seus protagonistas em alter egos de sua própria - e irracional, que fique bem claro! - psique. E no caso de Stuntman Mike (Kurt Russell), o dublê fracassado que sai às ruas, furioso (mas sem perder o sorriso sedutor e aberto), atrás de suas vítimas inocentes, isso ainda fica mais evidente. Provavelmente é uma de suas criações mais autobiográficas, mostrando abertamente reflexos de suas influências construídas ao longo da carreira, como os debochados e subversivos Enzo Castellari e Russ Meyer, pais de uma - podemos assim chamar - sétima arte provocadora, insultante.

Como pano de fundo a toda essa agressividade visual, e eis o mais interessante de toda essa viagem tarantiniana, o cineasta constrói uma exuberante enciclopédia da falta de moral do mundo americano - algo já mostrado anteriormente em Pulp fiction -, onde todas as obsessões (o fascínio erótico pelas cheerleaders, eternas e rebolativas líderes de torcida; a lap dance, versão minimalista dos shows de striptease que alucinam os becos mais inóspitos das principais cidades americanas; a sensual apresentadora do programa de rádio a quem todos querem saber se o corpo, a silhueta, é tão sensacional quanto a voz que ouvem diariamente...) estão escancaradas. 

E que não venham os leitores desta crítica me dizer que nunca se pegaram pensando sobre a dona de certa voz sensual de alguma rádio carioca! "Como será que ela é ao vivo e a cores?", numa hora dessas é uma pergunta mais do que óbvia, isso fora os desejos de consumo (a bolsa da Prada, o carro dos sonhos, etc) e fanatismos que fazem parte da ordem do dia para servir de "inspiração" à saga contumaz desse road killer.

À prova de morte é amoral, sim, e em nenhum momento nega isso. E Tarantino não alivia o espectador em momento algum quando o assunto é exacerbar a sua (ou do personagem, como preferir interpretar!) carnificina rodoviária. 

Se havia espaço, naquela época, para cinema como esse em tempos de globalização e de investimentos no óbvio, fadado a quebra de recordes e bilheterias? Não faço a menor ideia. O que sei de fato, passadas as quase duas horas de projeção, é que se trata de um filme mais do que necessário para entendermos o ser humano da contemporaneidade e suas distorções comportamentais. Disso não há a menor dúvida. 

Se por um lado você pensa "Putz! Esse filme é nojento, é atroz, é misógino até a medula", por outro fica clara a noção de que a humanidade realmente passou dos limites em muitas das decisões que tomou nas últimas décadas. E não há nada de cafajeste em deixar isso claro para o público. Não vejo essa abordagem como politicamente incorreta, pois certas vísceras e deslizes precisam ser mostradas, doa a quem doer.

Em suma: estamos diante da vertigem americana, aquilo que nossos irmãos da terra do Tio Sam sempre adoraram varrer para debaixo do tapete (e continuam varrendo até hoje, na maior cara de pau!). E ver toda essa morbidez iluminada pelo sarcasmo e o deboche de Mr. Tarantino não tem preço. 

Eu sei, eu sei... Se você nunca viu À prova de morte, deve estar pensando: onde é que eu encontro essa relíquia? E caso já tenha visto, talvez tenha se pego dizendo a si próprio: eu deixei passar alguma coisa quando vi anteriormente. Preciso ver de novo, agora! Então aproveite a pandemia e o tempo livre. Você não vai se arrepender. 

P.S (há tempos eu não escrevia um desses): eu nunca mais vi nada, nem no cinema nem em casa, com a atriz Rose McGowan. Por onde anda essa moça?


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Cadeia alimentar


Toda vez que eu leio (e releio) o quadrinista Frank Miller - mestre por trás de álbuns seminais da nona arte como Ronin, O cavaleiro das trevas e Elektra assassina - eu chego à conclusão de que aquelas pessoas que gostam de chamar as histórias em quadrinhos de "arte marginal" não entendem absolutamente nada desse universo. Mais: querem, no fundo no fundo, diminuí-la isso sim. 

E recentemente eu decidi reler Sin city: a cidade do pecado com a intenção de aparar algumas arestas que, porventura, tenham ficado de minha leitura original, e ainda ficou mais nítida essa minha impressão. O cara é definitivamente um mestre e não tem nada de marginal. Não vejo suas histórias à margem da sociedade. Pelo contrário. Ele desnuda o mundo cruel no qual vivemos como poucos. 

E em Sin City isso ainda ganha o requinte luxuoso de sua habilidade ímpar para trabalhar com luz e sombras (algo que sempre foi a marca registrada do artista). 

Acompanhamos de forma angustiante a saga de Marv, um retrato vivo dessa metrópole cinza e destruída pela ausência de valores morais dignos. Ele está dormindo quando a mulher que mudou a sua vida, a única que foi capaz de lhe entender, Goldie, é assassinada, e decide pegar o desgraçado que fez isso com ela. Mas trata-se de uma missão inglória e ele terá de enfrentar muitos percalços além do sarcasmo e a ironia habituais de uma cidade que simplesmente não facilita para ninguém, ainda mais quando se está na rabeira da chamada cadeia alimentar. 

E quem manda nesse lugar é Roark. Mais do que um político, um empresário de sucesso, um midas, etc etc etc, ele é o sintoma vivo da hierarquização social doentia e tendenciosa dos novos tempos. Em outras palavras: ele representa a doença social que o mundo precisa fabricar para justificar o desnível social e a incapacidade de vivermos juntos em harmonia. 

Mas acham que Marv desistiu por causa disso? Nem pensar! Sempre rodeado por belas mulheres (a dançarina Nancy; sua agente de condicional, Lucille; e até mesmo sua pistola, que ele chama amorosamente de Gladys) e com um faro indestrutível para a violência, ele vai deixando um rastro de sangue por onde passa. É como um trem desgovernado de encontro a um muro de concreto. Não se sabe o que vai acontecer ao final da história até que aconteça...

No quesito visual, Sin City é um escândalo. Se existe uma razão para eu nunca ter me aventurado nesse mundo das graphic novels (e já disse em outros textos sobre quadrinhos que uma das maiores frustrações que eu tenho na vida é não saber desenhar) é o fato de que jamais conseguiria criar o mundo que Miller criou aqui. É simplesmente magnífico e único, impossível de replicar. E a ausência de cores engrandece ainda mais o seu estilo. O álbum é seco, lírico, brutal, cafajeste como somente as boas police stories conseguem ser. 

E por incrível que pareça (podem até me chamar de maluco por escrever isso aqui), mas senti de certa forma a presença espiritual da narrativa de autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, gênios da Black Mask, nessa obra-prima. Fora, logicamente, a influência eterna que Will Eisner e o seu extraordinário Spirit têm sobre o autor. 

Ao final da leitura minhas mãos coçam e eu leio tudo de novo, desta vez fazendo anotações num bloco. Procuro na minha coleção de dvds a adaptação para o cinema feita pelo próprio Miller e o diretor Robert Rodriguez, mas só assisto ao primeiro segmento (o que condiz com a trama do álbum e na qual Marv é interpretado pelo ator Mickey Rourke). E finalmente me dou conta de que estou em êxtase, diante de tamanho brilhantismo. 

Sin city é uma derradeira radiografia sobre as metrópoles esfaceladas deste século XXI, que se preocupam mais com relações comerciais e poder absoluto do que com vidas humanas. E dentro deste universo sujo Frank Miller insere uma fauna de personagens os mais vis e estereotipados possíveis (como, aliás, não poderia deixar de ser!). Logo, o resultado dessa equação amoral e sórdida é um espetáculo visual de proporções gigantescas e aterradoras. Portanto, tudo o que um bom leitor de quadrinhos poderia desejar. 

E se quiserem saber mais, vão - pelo amor de Deus! - ler e tirar suas próprias conclusões vocês mesmo. Trata-se de uma viagem pessoal e intransferível. E uma viagem ao inferno com passagem só de ida.   

sábado, 7 de novembro de 2020

Palavras podem causar danos permanentes


Embora eu seja formado em comunicação social sempre fui naturalmente desconfiado sobre certo tipo de profissional que trabalha nessa área. Trata-se de um mercado repleto de aspones, deformadores de opinião e gente que se acha a quintessência do universo simplesmente porque comanda um programa de auditório ou de rádio, chefia uma redação de jornal ou mesmo a bancada de um telejornal. 

Em outras palavras: alguns profissionais se consideram indispensáveis dentro desse universo, chegando a se autointitular "a única versão relevante dos fatos". 

Entretanto, há um lado meu também eternamente curioso sobre essas pessoas e como elas fazem o mundo girar ao seu redor até que uma catástrofe ocorra ou a lucidez prevaleça sobre seus argumentos. E a sétima arte está repleta de grandes exemplares dessa categoria (desde já indico aqui dois dos meus favoritos: Um sonho sem limites, de Gus Van Sant e O abutre, de Dan Gilroy). 

Oliver Stone, um de meus cineastas-fetiche, sempre dedicou parte do seu tempo e sua obra cinematográfica a esmiuçar a podridão e a contraditoriedade que há por trás desse mundo midiático sórdido. E nos entregou longas que entraram para a história - seja pelo mérito pessoal deles, seja pela controvérsia embutida na história. E um deles eu vinha perseguindo durante anos em lojas de dvds usados, sites de streaming e cópias piratas, sem sucesso. Até anteontem. 

Refiro-me à Talk Radio: verdades que matam, de 1988. E desde já adianto: valeu a pena esperar tanto tempo. É não somente ácido do início ao fim como diz muito sobre o que a sociedade americana acabou se tornando com o passar dos anos. 

O filme nos apresenta o âncora do programa de rádio Night talk - em tradução rasteira: conversa noturna -, Barry Champlain (Eric Bogosian, fantástico!). Apesar do sucesso de sua faixa de programação ele é uma figura vista como execrável por grande parte da sociedade norte-americana e sua vida pessoal é uma verdadeira bagunça. Divorciado e tendo um caso com a produtora do show, chegou naquele ponto da própria existência em que o único motivo que o faz sair da cama todo dia são as noites de segunda, na qual apresenta seu polêmico programa. 

Um novo patrocinador surge na rádio oferecendo-lhe a possibilidade de uma transmissão mais ampla e isso não o satisfaz totalmente, pois Barry exige manter o seu controle criativo. E qualquer interferência de fora, para ele, é uma ofensa. O que vale mesmo, o que tem importância na hora H, é como ele comanda o show. E é nesse quesito que se encontra o grande mérito do longa. 

Digo isso porque a maneira como Barry conduz seu espetáculo é o retrato vivo e amargo dessa América que não se cansa de vender-se como "a maior nação de todos os tempos", mas na prática não passa de um país cheio de subterfúgios e contradições. E olha que, como disse num parágrafo acima, a película já tem mais de três décadas!

Barry xinga, insulta, esnoba ouvintes, só ouve e dá papo àquilo que o interessa, recebe um pacote-surpresa de um interlocutor revoltado, dá corda a tipos exóticos e nonsenses, pede pausas fora de hora, ausenta-se (irritando até mesmo o seu empregador), e ainda dá atenção à ex-esposa, que ele convida para dar uma força a ele nesse momento de reviravolta na carreira. 

Porém, é preciso enxergar as entrelinhas de toda essa discórdia. Oliver Stone está, na verdade, jogando o seu holofote sobre a vida e como nós, seres humanos, decidimos transformá-la num "entretenimento sórdido" (expressão, por sinal, da qual ele se utiliza quando chega ao apogeu da sua impaciência, num monólogo que por si só já vale pelo filme todo). 

Ao final da sessão e completamente sem fala diante do desfecho aterrador, o que percebo é que Talk Radio meio que profetizou a sociedade contemporânea (que o diga os EUA). Viramos reféns da indústria falaciosa criada pela mídia e as corporações que vendem entretenimento óbvio e evasivo. E pior: nos orgulhamos de nossa acomodação, porque lutar contra é tão duro, cansativo e pouco recompensador que não vale o esforço. Pelo menos, não para a grande maioria que se diz "antenada com essa tal de globalização". 

E o mais triste disso tudo é pensar que até mesmo hollywood já foi mais interessante e denunciatória quando o assunto era roteiro, boa história, etc. Agora precisamos nos contentar com literatura fantástica e homens e mulheres com superpoderes. 

É... O mundo - e a indústria cinematográfica - não são mais os mesmos! E palavras, agora mais do que nunca, podem causar danos permanentes e irreversíveis.  


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O cariocaturista


Diz o senso comum que todo mundo tem um dom. Uns cantam, outros escrevem, a outros foi dado o dom de jogar futebol de forma sublime, fora os que atuam, desenham, dirigem cinema. compõem músicas, etc etc etc. E às vezes achamos o dom de certas pessoas menor, pois nossa petulância não nos permite enxergar o talento alheio nas mínimas coisas. Estamos enganados quando pensamos assim! 

Ontem a cidade do Rio de Janeiro perdeu um de seus grandes talentos. E, no entanto, para muitos, ele era apenas alguém (mais um) que sabia desenhar. Não entendem que além de ele desenhar como poucos, fez de sua obra gráfica uma radiografia da cidade maravilhosa. 

Falo do chargista e caricaturista Lan, mestre do traço, que faleceu em Petrópolis aos 95 anos, em decorrência de uma pneumonia. 

Lan pode se considerar um privilegiado a depender de mim, porque desde moleque uma das primeiras coisas que eu vejo no jornal - em qualquer jornal - são as tirinhas e charges. Sempre me considerei um frustrado por não saber desenhar. E era fácil gostar do traço dele, de suas intenções gráficas. Poucos representaram a cidade do RJ e o Brasil como ele! 

Portelense convicto, flamenguista apaixonado, mulherólogo por natureza (expressão, aliás, que ele utilizou se referindo a si próprio durante uma entrevista na TV) e um artista de visão única, que sabia ironizar, denunciar e encantar com o mesmo peso e medida. 

O italiano de nascimento que viveu na Argentina, no Uruguai e na França encontrou aqui, na terra de Machado de Assis, do samba e do futebol, a sua verdadeira pátria. E dividiu sua carreira entre trabalhos para o Última Hora, jornal de Samuel Wainer que revolucionou a imprensa, o Jornal do Brasil e O Globo.  

Detalhe importante: no jornal O Globo criou a coluna Cariocaturas, um de seus maiores sucessos. Aqui, denunciou a truculência policial, falou das distorções dessa metrópole controversa e nos impressionou com mulheres lindíssimas, de curvas descomunais. Sempre vou me lembrar das mulheres que desenhou e digo mais: além dele, acredito que somente Guido Crepax, autor da saudosa Valentina, tenha feito também um trabalho impressionante nesse quesito. 

E quase ia me esquecendo: não bastasse tudo o que desenhou, sentiu, pensou, ainda arranjava tempo para assinar capas de discos, como as que fez para o cantor Zeca Pagodinho e vinhetas para os intervalos comerciais da programação televisiva. 

O país e o mundo perdem mais um artista visual extraordinário - assim como aconteceu recentemente com Quino, criador da eterna Mafalda - e herdam um legado único, praticamente uma ensaio sociológico em formato visual. 

E ainda assim vai ter gente dizendo que "era só mais um desenhista talentoso". Não, me desculpem a franqueza, mas não era só isso não!

E como eu sempre faço ao final desses obituários: fica com Deus, mestre!


quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Voltando ao ontem para falar do amargo hoje


A memória é dúbia. Por vezes traiçoeira, devastadora, digo até humilhante. E a arrastamos por nossas vidas, à procura de uma cura para todo aquele mal aprisionado. Em outras é libertadora, necessária, uma boia salva-vidas para seguirmos em frente e aprendermos com nossas derrotas. 

Seja uma versão ou outra, ela é fundamental, nosso eixo. Eu, pelo menos, sempre acreditei nisso e volta e meia faço dela o tema de meus textos. Acredito na memória como bússola e sou extremamente memoriográfico (às vezes, até mal rotulado como nostálgico). E é extremamente gratificante quando me deparo com um autor ou artista que sabe usar da memória de maneira perspicaz e pungente. 

E foi exatamente isso que eu senti após ouvir de cabo a rabo Letter to you, último álbum de carreira do cantor Bruce Springsteen, o eterno "the boss" norte-americano. 

Bruce recorre ao passado e às lembranças de velhos amigos para falar desse presente de incertezas (que o diga seu país natal, fulminado pelo período eleitoral e suas distorções). Ele se apresenta, em muitas canções, como "sobrevivente de uma era" e desabafa suas insatisfações e indiretas àqueles que deveriam colocar o país - e a vida - nos eixos.

A frase num momento você está ali/ no outro, não está mais... que pontua a canção de abertura "One minute you're here" diz muito sobre o clima que pautará todo o álbum. Uma sensação de melancolia acompanha a voz do cantor faixa a faixa, mostrando um Springsteen cansado de ver uma população cometer tantos erros e, muitas vezes, se orgulhar disso. 

Ele menciona, nas entrelinhas, a parte do povo americano que deveria ajudar seus semelhantes e, no entanto, prefere ver o circo pegar fogo (Eu queria que você me curasse, mas em vez disso você me incendiou, trecho da faixa que dá título ao disco), ressalta seu papel como messias por necessidade (Eu sou o último homem de pé agora, em "Last man standing"), apela a Deus como último recurso lúcido (Só lhe restou a fé, em "Power of prayer") e imagina até um possível reencontro com amigos num futuro próximo ("eu te vejo em mieus sonhos").

E não pensem que ele deixou de se posicionar sobre o momento político pelo qual os EUA passa. Pelo contrário. Aponta seu dedo acusador abertamente, seja chamando o presidente de "palhaço criminoso" que se apossou do trono (no caso, a grande nação americana), realçando o medo de vários segmentos do país ao dizer que "nós estávamos preocupados, mas agora estamos com medo" e avisa aos eleitores antes de irem às urnas que "a casa está pegando fogo", quase um convite à luta contra a opressão. 

No geral, é certamente o disco mais nostálgico e politizado do cantor nos últimos anos. E por incrível que pareça fez eu me lembrar daquele Bruce dos tempos de Born in the USA (guardadas as devidas proporções históricas, é claro!). 

Termino a audição do disco no spotify e fico com a sensação legítima de ter escutado um grande livro de crônicas sobre o século conturbado que mal começou e já deixa cicatrizes amargas, mas desses que somente os mestres do gênero são capazes de fazer (refiro-me a um Rubem Braga ou um Sam Sheppard, para ficar nos melhores). E o resultado final dessa "leitura" é um misto de niilismo, desolação e esperança contida (pois, sim, a esperança não deve morrer nunca). 

E é por causa de experiências inebriantes como essa que eu ainda continuo procurando por boa música contemporânea em meio a tantas bundas rebolativas e trashs musicais. Se eu ainda não parei no tempo e me tornei refém de clássicos, hits e álbuns tutoriais sobre a história da música é por causa de vozes (e também das palavras) de mestres como Bruce Springsteen. 

Ficaram curiosos? Agora vão lá dar uma conferida, pois não custa nada e a música ainda por cima é ótima!