O aborto. Não importa quantos séculos passem e o quanto a sociedade evolua, ele sempre será um tema tabu. E digo isso não por conformismo, mas pelo desejo que a própria sociedade tem de permanecer conservadora diante dos assuntos mais espinhosos e contraditórios. Parece, na maioria dos casos, um mecanismo de defesa ou um porto seguro. Seguir a maioria acomodada à ter sua própria opinião. Entretanto, nem sempre aqueles que seguem a manada fazem na prática o que dizem no conforto de seus grupos sociais.
Em outras palavras: conheço muita gente que é contra o aborto, mas se fosse a sua vida, seu corpo, tiraria a criança na mesma hora. E mesmo assim adora criticar a decisão dos demais. Ver Nunca, raramente, às vezes, sempre, da diretora Eliza Hittman, me deixou pensando nisso durante toda a sessão. O quanto somos hipócritas ao condenar decisões alheias, mas quando tomamos as nossas o buraco é sempre mais embaixo.
O longa de Eliza segue a jornada de Autumn (Sidney Flanigan, em seu primeiro trabalho de atuação) que descobre estar grávida de quase quatro meses, fruto de um relacionamento abusivo, e decide fazer um aborto. Seus pais não sabem de nada e ela pede ajuda à sua prima Skylar (Talia Ryder) com quem viaja para outra cidade para interromper a gravidez.
Antes mesmo da possível chegada de um bebê a vida de Autumn não se enquadra na categoria de "fácil" ou "bem sucedida". Ela não se sente incentivada dentro de casa, não é respeitada por nenhum dos homens com quem se relacionou e tem como chefe no trabalho um homem cafajeste, que a assedia descaradamente. Logo, como a chegada de uma criança poderia melhorar a sua vida em algum aspecto?
Resultado: tomar aquela decisão que nenhuma mulher gostaria de tomar, mas às vezes se torna a única viável. E o caminho será espinhoso, cheio de perguntas a serem respondidas, pois há um sistema que existe para que voltemos atrás em nossas decisões. Para que não seguimos em frente, que sejamos condescendentes (como todo bom pagador de impostos!). E Autumn precisará ter muita força de vontade para chegar ao final dessa saga.
Detalhe importantíssimo: mesmo terminada a intervenção não há garantias de que arrependimentos não surgirão a longo prazo, pois a vida não é uma ciência exata e está sempre nos colocando contra o muro, testando nossas escolhas.
Houve um momento da história de Autumn em que me peguei pensando em Ramón Sampedro, personagem de Javier Bardem no filme Mar Adentro, de Alejandro Amenábar. A diferença é que Ramon lutava pelo direito à eutanásia e se deparou com um sistema ainda mais covarde do que o hospitalar que fez o aborto da jovem, pois precisou ir aos tribunais para ver reconhecido o seu direito à morte, na linha "meu corpo, minhas regras".
E embora a diretora não tenha preferido um caminho ácido ou mesmo embrutecido, Nunca, raramente, às vezes, sempre se mostrou, pelo menos para mim, uma narrativa incômoda a todo momento. E me peguei pensando no quanto é difícil ser mulher em qualquer sociedade, não importa se você vive na África ou num país de primeiro mundo.
Autumn é o retrato vivo da sociedade maculada pelo machismo extremo, que protege homens cafajestes, às vezes crias de famílias abastadas e se vê numa posição de fazer o que for necessário - mesmo que o necessário lhe custe um rótulo de miserável ou assassina por parte dessa mesma sociedade deturpada - para chegar ao dia seguinte. Nesse momento sua vida se torna um amontoado de "infelizes dias seguintes" sem a menor perspectiva de dias melhores por vir.
E ainda tem gente hipócrita, no conforto de suas mansões, que prefere chamar essas mulheres de ressentidas, mal amadas ou vulgares...