quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

A última esperança


Se existe um gênero cinematográfico que tem tudo a ver com a temporada de prêmios (leia-se: Oscar, Globo de ouro, Guilds, etc) e volta e meia dá as caras com uma produção inovadora ou, ao menos, bem feita esse gênero é o filme de guerra. E muitas vezes eles são vítimas de grandes roubalheiras na história dos mesmos prêmios (Spielberg que o diga!). 

Esse ano a bola de vez - e ela vendo sendo rotulada de forma ingrata como a "aposta anti-Netflix para vencer o Oscar de melhor filme" - é 1917, do diretor inglês Sam Mendes (que já faturou o prêmio em 2000 com Beleza americana). 

1917 não possui um roteiro de deixar os críticos e os votantes da academia de queixo caído. Pelo contrário. É uma história mais do que simples sobre dois soldados, Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay, que muitos acreditavam que figuraria na lista de indicados a melhor ator por conta da força da ala britânica entre os votantes do Oscar e dos sindicatos) que precisam adentrar o território inimigo em plena primeira guerra mundial para entregar uma carta que pede aos superiores no front que cancelem uma ataque que poderá levar à morte 1600 soldados. 

Em outras palavras: eles são a última esperança no intuito de evitar uma grande tragédia. 

Contudo, quando o assunto é a parte técnica do longa, 1917 exibe todas as suas cartas na manga e entrega um espetáculo audiovisual digno das maiores produções já feitas no gênero. Montado de maneira a ser visto como um filme rodado num único plano-sequência (assim como aconteceu com Birdman, de Alejandro González Iñáttitú, outro longa mau visto em sua época que acabou calando a boca dos críticos e puristas e levando a estatueta de melhor filme), ele acaba por narrar uma espécie de "passeio rumo ao inferno". 

Portanto, saibam segurar a respiração, meus caros leitores, pois este é daqueles projetos capazes de mexer com a sua cabeça e a sua capacidade de compreensão take a take, minuto a minuto. Enquanto os dois soldados atravessam os destroços do que um dia foi um país, vemos o retrato do horror, do caos, da ganância e da eterna mania dos homens de se acharem melhores do que a sua própria espécie naquilo que ele tem de mais vivo e cruel.

O filme a meu ver está repleto de citações diretas à outros filmes de guerra. Que o diga a própria carta a ser entregue pelos soldados que me remeteu a carta que passava de mão em mão entre os soldados do filme O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg. E nos instantes finais, quando Schofield está perto de entregar a mensagem à seu destinatário, talvez eu tenha enxergado demais, mas me remeteu ao clássico Gallipoli, do diretor Peter Weir, feito no início dos anos 1980, que tem como protagonista o ator Mel Gibson no início da carreira. 

Vi alguns críticos da internet (sempre eles!) reclamando do final chocho do longa, em comparação aos outros competidores de melhor filme. Honestamente, vejo nessa mentalidade a eterna mania do público contemporâneo - viciado em remakes e franquias de ação - de querer que tudo acabe de forma espetacular, retumbante, avassaladora, à la Senhor dos Anéis e Game of Thrones. E não acredito que a sétima arte deva se render única e exclusivamente a isso. 

Na verdade, ao desfecho do filme me peguei perguntando sobre o que o soldado, terminada a árdua missão, estava pensando. Talvez sobre o sentido da guerra, que no final das contas é praticamente nenhum? Ou se já havia passado da hora de lhe mandarem de volta para a casa e rever sua família? E cá entre nós: qualquer produção cinematográfica que termine me fazendo pensar, durante a volta para casa, num algo a mais já valeu o meu dia. 

Segundo os resultados da temporada de prêmios até agora 1917 é o favorito absoluto ao Oscar de melhor filme desse ano. Tem quem diga até que já é barbada faz tempo. E não acredito que será injusto. Diferentemente do prêmio conferido ao insuportável Guerra ao terror, de Kathryn Bigelow, em 2010, último filme de guerra a ganhar a estatueta, o longa de Sam Mendes tem alma própria, diferentemente do filme de Bigelow que, na época, pegou carona no lobby político e na eterna mania dos norte-americanos de emularem o sofrimento decorrente da tragédia do 11 de setembro.  

É, Netflix... Eu até queria torcer por vocês, mas não deu. De novo. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

A inclassificável


Quase nove anos de falecida e ainda me soa terrivelmente difícil falar sobre a cantora Amy Winehouse, de quem serei eternamente fã (não importa onde ela estiver). E de certeza mesmo acerca dela apenas uma: o mercado fonográfico perdeu uma das maiores vozes dessa geração. Uma pena! 

Até então o melhor registro que encontrei sobre ela foi o Amy Winehouse Live at Apollo em DVD. Detalhe: um dos melhores shows que eu assisti até hoje. Sua voz e trejeitos inconfundíveis, o cabelo que virou coqueluche entre as fãs do sexo feminino e a sensação legítima de estar testemunhando algo ímpar, sem igual no indústria da música. E agora... Não sobrou mais nada. 

Quer dizer: sobrou o magnífico documentário vencedor do Oscar Amy, dirigido por Asif Kapadia (o mesmo que nos entregou anteriormente o documentário, também brilhante, Senna) para preencher as lacunas necessárias para que eu escrevesse este humilde artigo. 

Amy, como tantas outras divas e fenômenos da indústria musical, também careceu de uma figura paterna mais presente, bem como uma instituição familiar mais sólida, menos apegada à fama, ao interesse, ao poder. E não bastasse essa carência ainda foi engolida por um relacionamento abusivo com o "oportunista" Blake Fielder-Civil e também por uma mídia tendenciosa e a indústria da invasão de privacidade que cerca todo ídolo de grande renome. 

E nesse aspecto o filme transita bem por ambos recortes: de um lado, a profissional exigente, que não admitia errar nos ensaios, àquela que fora chamada até por Tony Bennett de "uma das maiores cantores de jazz que ele viu em toda a sua carreira". De outro, a perseguição de repórteres e paparazzis os mais diversos à sua vida privada, escândalos e o desejo irrefreável de mostrá-la sempre em seus piores momentos. 

E por falar em piores momentos, como esquecer da desastrosa participação dela no Rock in Rio Lisboa, quando cantou completamente afônica e bêbada para uma plateia de revoltados que só queriam saber da devolução do seu dinheiro?

Estar na pele de Amy Winehouse era ficar dividido entre o esplendor da fama, dos prêmios, do reconhecimento do setor para o qual trabalhava, que a via como um nome a figurar, no futuro, entre grandes vozes como Aretha Franklin, Etta James, Frank Sinatra, Marvin Gaye e tantos outros, e ser rotulada como "a menina problema da vez", que perdia a paciência com relativa facilidade e não se via dentro de rótulos impostos pela sociedade e pelas gravadoras. 

Se existe uma palavra capaz de definir o que ela era, o seu talento, a sua capacidade de se reinventar, essa palavra era: inclassificável. Em seu álbum póstumo, que muitos dizem desagradou sua própria gravadora, Lioness: hidden treasures, ela não perdeu a chance e arriscou numa versão de nosso clássico "Garota de Ipanema". Porque Amy era assim: subia no palco para cantar o que queria e ponto final. 

Sei que muitos fãs a conhecem aqui no país mais por Back to black, que é magnífico (e minha preferida desse álbum será, eternamente, "Valerie"), mas recomendo aos ouvintes menos fanáticos que conheçam também Frank, seu álbum de estreia, e que mostrou muito da personalidade musical de Amy. Em suma: o que ela iria se tornar ao longo da carreira, se não tivesse morrido de forma tão prematura. 

No dia de seu falecimento fiquei sabendo do ocorrido dentro de uma sala de cinema, pois um casal sentado à minha frente vira a notícia no celular e começou a chorar. Eu, pasmo, pensei tratar-se de mais um desses trotes comuns na internet. Não era. Para minha infelicidade, não era. 

E com isso Amy entrou para o fatídico clube dos astros que morrem aos 27 anos (junto com Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, e outras feras). Ou seja: tornou-se uma lenda urbana, quase uma teoria da conspiração do segmento musical. 

Chego ao fim desse contido texto mais lamentoso do que quando comecei. Depois que Amy faleceu venho encontrando dificuldades para descobrir novas grandes vozes no hit parade. O mercado fonográfico anda muito cheio de pose, de berro, de gente que faz playback no palco e se acha o máximo. 

É... Amy vai fazer muita falta. E isso é ruim, porque o mercado precisa se reciclar, precisa mostrar outros caminhos; mas também é bom, porque sempre haverá espaço nas horas vagas para contarmos histórias sobre ela, sobre o legado que nos deixou. E ela era muito mais do que a imprensa vendeu sobre ela para nós, saudosos ouvintes. 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Guerra para principiantes


O cinema é capaz de nos encantar, de nos provocar, de promover polêmicas com tão pouco. E às vezes, é capaz também de ironizar de forma extremamente inteligente. E mesmo assim nem todo mundo irá entender a mensagem (ainda mais numa era moralista em excesso como essa na qual estamos vivendo). 

Jojo Rabbit, do diretor Taika Waititi, é um exemplar raro dessa categoria que ironiza fatos históricos. Daqueles projetos que já nascem dando o que falar, por tratar o nazismo pela alcunha do deboche e da fábula (algo que os moralistas excessivos vão reclamar, por acreditarem que o tema - sórdido por excelência - está sendo diminuído ou levado em pouca consideração;  e os neonazistas mais ainda, pois irão rotular o longa de "ofensivo e desrespeitoso à causa"). 

Contudo, o diretor não deu bola para nenhum dos dois grupos e contou a história de Jojo Beltzer (o ótimo ator mirim Roman Griffin Davis), um garoto de meros 10 anos de idade, membro da juventude hitlerista, que sonha em fazer parte da guarda pessoal do fuhrer Adolf Hitler, com quem conversa ocasionalmente, na linha amigo imaginário. E tudo prometia sair às mil maravilhas ao ser chamado para o treinamento de guerra para novos soldados quando descobre, escondida em sua casa, a jovem judia Elsa (Thomasin McKenzie), com quem começa a trocar informações e, por conseguinte, passa a ter uma outra visão da guerra. 

Até então, tirando a versão imaginária de Hitler - que é vivido de forma impagável pelo próprio diretor do filme - suas únicas fontes de confiança eram a mãe, Rosie (Scarlett Johansson), que é terminantemente contra o regime, e o Capitão K. (Sam Rockwell), responsável pelo treinamento dos jovens soldados e uma figura que parece suprir a carência do pai de Jojo, de quem não tem notícias há anos por estar em combate.  

E é desse choque cultural aliado, logicamente, a todo o clima infanto-juvenil que permeia a narrativa do filme que está o verdadeiro encanto desse projeto. 

Em muitos aspectos, guardadas as devidas proporções, Jojo Rabbit é um filme que dialoga com o extraordinário A vida é bela, do diretor italiano Roberto Benigni (que ganhou dois oscars pelo filme). Se na produção italiana vemos Guido transformar a guerra aos olhos do filho, Giosué, num jogo, aqui eu tive a ligeira impressão de estar vendo o que Giosué teria visto de fato se não tivesse a figura paterna para protegê-lo de todo mal a todo instante. 

Em outras palavras, o que vemos é uma guerra para principiantes, que pensam ter maturidade para entender o que de fato está acontecendo, mas na verdade não passam de ingênuos quando têm de lidar com o mundo cruel em que vivemos. 

Confesso que foi uma grata surpresa ver esse filme na lista de indicados ao Oscar deste ano. E já andei vendo alguns críticos na internet se dizendo incomodados com o contexto criado pelo filme. Mas como disse no primeiro parágrafo e repito: às vezes é preciso incomodar, polemizar, e principalmente ironizar. 

Vejo Jojo Rabbit como um filme mais do que necessário para entendermos esse século XXI cheio de pessoas amargas, que levam tudo para o âmbito ou da discussão ou da fé cega, extremada. Parece que perdemos a capacidade de rir de nós mesmos e do nosso passado. E por mais duro que pareça, às vezes é preciso rir também de nossas derrotas. Isso não é uma questão de insultar os judeus, mas sim de sobreviver a um mundo que caminha para o caos todo santo dia. Levamos tudo a ferro e fogo e não acredito, sinceramente. que isso nos levará a algum lugar. 

Em suma; o filme pode ser o seu inimigo público número 1 ou sua bóia salva-vidas para seguir em frente e tentar ser alguém melhor de novo. E de novo. E de novo. E isso cabe única e exclusivamente a você, espectador! 

E pensar que eu acreditava que esse diretor (que ficou famoso aqui no país após dirigir Thor: Ragnarok) fosse se transformar num novo J. J. Abrams, refém de franquias e projetos multimilionários. Não só queimou a minha língua como ganhou minha atenção para futuros projetos. Disseram que ele estava associado ao live action de Akira, mas o site do IMDb não informa mais isso. Uma pena. Confesso que eu veria esse projeto também.

Resultado: mais um nome para a minha lista de diretores "para ficar de olho sempre que puder".   

domingo, 19 de janeiro de 2020

Idade mídia


É... Não tá fácil, não! E tá piorando dia a dia...

Enquanto milhões de brasileiros na internet repudiam as declarações do (agora) ex-Secretário de Cultura do atual governo, Roberto Alvim, que citou apaixonadamente o ministro nazista Joseph Goebbles em seu discurso dito patriótico, eu me deparo com um exemplar de Da idade média à idade mídia numa das lojas da livraria Saraiva e fico, lógico, mais interessado na segunda parte do título. 

Vivemos, para a nossa infelicidade (sim, eu falo no plural e acredito que muitos de meus leitores concordarão comigo), uma era de televisionamentos, de gente querendo a fama pela fama, de holofotes exibindo pessoas medíocres que se vendem como "formadores de opinião". 

Dê uma boa olhada nos canais do you tube (a grande maioria deles). Dê uma boa olhada nas matérias "jornalísticas" de certos "repórteres". De uma boa olhada na programação da tv aberta (e, se possível, da fechada também). Refiro-me, claro, a produção de cunho nacional. Vamos. Deem uma olhada em tudo. Só um pouco. Não é para passar a semana inteira por lá, não. 

Se forem pessoas minimamente lúcidas, ficarão - como eu - estarrecidos diante da grande esculhambação que virou a vida privada e pública. 

A idade mídia, com suas garras inconsequentes e voltadas para a manutenção de uma sociedade alienada e condizente com projetos sórdidos de poder, não só veio para ficar como veio, ficou, produziu filhos que, por sua vez, também já produziram a sua própria prole. 

Seria cômico, se não fosse trágico. Nem mesmo as tragédias gregas se comparam a tamanha desfaçatez. 

Youtubers falastrões, defensores de ideais que pregam a diversidade, o empoderamento, o novo feminismo, os movimentos LGBTQ... (eu nunca sei se essa sigla já aumentou de novo ou não!); âncoras televisivos tendenciosos, com expressões e vestimentas típicas de quem quer enrolar o espectador a qualquer custo; os autores de autoajuda., com suas caras de babacas bem sucedidos, figurando em centenas de listas de best-sellers; tabloides sensacionalistas que mesclam nudez com palavreado chulo; todos, sem exceção, querem a sua atenção. 

Mais do que isso: querem o seu compromisso de fidelidade eterna às suas visões de mundo deturpadas. E estão conseguindo. Afinal de contas, não perdemos nossa condição de um dos povos mais ignorantes do mundo por causa do resultado das últimas eleições.

Stanislaw Ponte Preta estava certo: o Febeapá (ele sempre esteve por aí). Nelson Rodrigues estava certo: "é a revolução dos idiotas". E eles sempre estiveram em maior número. Meu pai estava certo: "eu tenho medo é do que ainda vem por aí nessa República de bananas disfarçada de país sério para gringo bater palma". 

E não há curva na estrada de Santos, como cantou Roberto, ou luz no fim do túnel que se apresente, que nos mostre um novo caminho. Nos tornamos mercadorias, personagens esdrúxulos de uma obra artística lamentável, primária, feita por amadores, voltada para idiotizar amebas sociais que se dizem seres humanos.  E aprendemos a amar toda essa distorção de valores.

Meu Deus!!!

É agora que eu desço do ônibus ou o meu ponto já passou e eu nem percebi?

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

As vanguardistas


O feminismo e o empoderamento são duas pautas do momento nesse século XXI cheio de controvérsias e mentiras sendo vendidas como fake news. Entretanto, muitas vezes eu tenho a impressão que a causa feminina vem sendo vendida nos últimos anos ou de forma exagerada e ilusória ou de forma leviana, acabando por se transformar num reles mimimi de gente que gosta de reclamar de tudo e ponto (eu sei... vai ter gente me chamando de machista por causa desse trecho aqui). 

Faltam, em muitos casos, verossimilhança nos discursos. Mais parece remorso, vontade de se vingar (e isso precisa ser combatido também). E em nada dialoga essa cultura com os esforços promovidos por mulheres como Jane Austin, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Florbela Espanca, George Elliot (que, reza a lenda, também era mulher, mas assinava como homem pois era a única forma de publicar algo naquela época) e tantos outros nomes da literatura - e também da arte em geral. 

Me peguei pensando nisso ao final da sessão de Adoráveis mulheres, segundo longa dirigido pela atriz e diretora Greta Gerwig, e me tornei ainda mais fã do filme. 

O longa, que está na lista dos cotados ao Oscar desse ano, conta a história das irmãs March e sua luta para permanecerem relevantes em meio a uma sociedade extremamente burguesa e patriarcal. Amy (Florence Pugh) é o retrato vivo de como a sociedade da época enxergava a mulher e o papel que ela devia ter: uma pessoa voltada para o casamento e nada mais. Meg (Emma Watson) é aquela que fica em cima do muro. Almeja construir um lar para si, mas não se vê como a pessoa responsável por tirar a família da situação de pobreza na qual se encontra. Beth (Eliza Scanlen), é a mais tímida e debilitada das irmãs, e prefere se esconder atrás do piano, seu único e verdadeiro talento. E, finalmente, Jo (Saorsie Ronan), que poderia facilmente ser rotulada por muitos como a ovelha negra da família, mas na verdade é à mulher à frente do seu tempo, a escritora, a personificação viva de tudo o que Jane Austen e a própria Louisa May Alcott (cujo romance originou esse filme) viam de errado na maneira como as mulheres eram vistas nesse período. 

Contudo, mais do que a tarefa árdua de narrar a luta e as escolhas dessas quatro mulheres - e adorei particularmente a ideia da diretora trabalhar a narrativa através de flashbacks, alternando o ontem e o hoje de forma precisa -, ficou claro (pelo menos para mim) estar diante de um grupo de vanguardistas, que tiveram de lutar contra o sistema, contra o regime machista que não consegue sequer entender uma mulher que não deseja se casar, contra suas próprias opiniões, para chegar a um caminho que lhes soasse lúcido. 

Não sei se já disse isso em minhas críticas anteriores sobre cinema, mas sempre tenho problemas com filmes de época, históricos, de realeza britânica, etc, pois sempre tenho a impressão de que "quem já viu um, já viu todos". Mas Adoráveis mulheres não cabe nessa categoria. Embora esta seja sua oitava adaptação para os cinemas, a história encontrou no trabalho sublime de Gerwig uma forma de entendermos essa mulher de ontem e também questionar se a mulher de hoje de fato entendeu a luta pela qual essas mulheres visionárias passaram. Pois, cá entre nós, às vezes me parece que elas (as de hoje) desaprenderam tudo. O que é uma pena. 

Isso sem contar personagens menores, mas indispensáveis para compor a trama e a luta pela qual elas passam, como a tia resmungona (interpretada de forma brilhante pela diva Meryl Streep), o jovem e rebelde Laurie (Timothée Chalamet), que ama alucinadamente Jo, mas não consegue entender completamente a força daquela mulher que não pretende se render a um papel secundário ou a uma vida conforme regras machistas e desiguais e também o seu pai, Mr. Lawrence (Chris Cooper) que entende como poucos naquele meio a dor de perder uma filha e não encontrar nada que de fato a substitua. Todos, sem exceção, embora coadjuvantes, são absolutamente necessários para entendermos as agruras e restrições pelas quais essas mulheres têm de passar.

Até mesmo a mãe (Laura Dern), que aprendeu a renunciar e jogar o jogo com o passar dos anos, funciona como  uma espécie de voz da consciência, sempre incentivando as filhas a fazerem suas próprias escolhas. E acreditem: por mais que pareça, isso não é nada fácil de fazer. 

Ao final da sessão, as luzes se acendem e vejo mais mulheres do que homens na sala de projeção. E por um momento fico triste, pois acredito que nós também precisamos conhecer essa história. Precisamos parar com essa mania de nos vermos como protagonistas o tempo todo. Há uma parte grande da sociedade que não deseja mais que o mundo continue desse jeito. Mais do que isso: vejo que algumas mulheres choram, orgulhosas com o desfecho da trama. 

E nesse momento também vou às lágrimas, pois lembro do sacrifício que minha mãe e minhas tias fizeram para que eu e meus sobrinhos chegássemos a algum lugar. Faço parte de uma família onde homens sempre foram minoria e me orgulho disso. Sem essas mulheres fortes, poderosas, eu certamente não estaria aqui hoje escrevendo este texto. E é disso que se trata o longa-metragem de Greta Gerwig: sacrifício. 

Então você, mulher moderna, engajada, empoderada, não torne gratuita uma luta que é muito mais do que apenas espaço no mercado de trabalho, roupas de marca, chefias em postos de trabalho. Não. Tem a ver com respeito. Algo em falta na atual humanidade. 

E como é bom saber que essas mulheres decidiram enfrentar essa batalha de cabeça erguida!

sábado, 11 de janeiro de 2020

Um raio-x da minha adolescência


Quem me dera todo começo de ano eu me deparasse com obras artísticas tão boas quanto as que caíram em minhas mãos nesse começo de 2020. Não bastasse ser engolido pela visceralidade do poeta Jason Reynolds no seu extraordinário "romance em versos" Daqui pra baixo, agora viajo no tempo com uma graphic novel que é nostalgia pura. Mais do que isso: o resumo do que foram os meus anos de moleque travesso.

Termino de ler Kombi 95, de Thiago Ossostortos, com os olhos marejados de lágrimas e ciente de que toda a minha adolescência valeu a pena, independente das dificuldades que passei e das estripulias que cometi. E é muito fácil explicar o porquê: trata-se do raio-x de uma geração e de uma década que, cá entre nós, nunca deveria ter acabado.

O autor - que é figurinha conhecida dos fanzineiros de plantão e também dos leitores da revista Mad - a priori recorre a uma lenda urbana famosa na São Paulo de meados dos anos 90. Trata-se da história de um grupo de homens vestidos de palhaço que sequestravam crianças com uma kombi branca para roubarem seus órgãos. Na obra ficcional, a vítima chama-se Albino. Contudo, há um outro aspecto da vida desse jovem que seus próprios colegas de rua não têm conhecimento e por conta disso farão justiça com as próprias mãos precipitadamente. 

Vocês devem estar pensando: "trata-se de uma história de crime". Não necessariamente. O grande mérito de Kombi 95 é realizar um passeio lúdico por uma época que deixou saudades na vida de quem a viveu. E mesmo sendo carioca (e não paulista como o autor), fiquei emocionado toda vez que me deparava com as referências que ele citou no álbum. Foi como se uma fenda no tempo se abrisse dentro da minha cabeça e me transportasse de volta para aqueles dias...

E olha: haja referência para dar conta das mais de cem páginas, todas feitas à mão, em nanquim, e colorizadas em computador! A começar pelas páginas que abrem os capítulos e fazem alusão aos salgadinhos da Elma Chips: Fandangos, Cebolitos, Ruffles, Pingo de ouro, Stiksy, Doritos, etc. Mas não somente isso. 

São lembranças as mais diversas, para todos os gostos: Adriane Galisteu na capa da Playboy, Rê Bordosa, Tazos (tinha gente que comprava os biscoitos só para colecioná-los), pager, chocolate surpresa, pirocópteros (pirulitos que vinham com uma hélice para que depois colocássemos o cabo para voar), fichas telefônicas dos orelhões, os grupos de pagode (Negritude Júnior, Raça Negra, Katinguelê, Soweto, etc), Bill e Ted, o programa infantil Glub-Glub (a minha irmã era viciada nesse troço!), Beavis e Butthead na MTV, Cavaleiros do Zodíaco, Mesbla, Lojas Arapuã, o garoto propaganda da Bombril e o baixinho dos comerciais da cerveja Kaiser, poupança Bamerindus, Mappin, Jô Soares 11 e meia, banheira do Gugu, Street Fighter, os minigames, o jogo da vida, Família Dinossauro, TV Colosso, o fantástico mundo de Bobby, Sai de baixo, Bananas de pijamas, o telecatch exibido na Rede Manchete, Playcenter, o repórter Gil Gomes, a febre dos tamagochis... Ufa! É a cereja do bolo do álbum. 

Thiago, em entrevista dada no youtube, não esconde a relação da revista com sua própria vida, os amigos da escola, as histórias que ouvia naquele tempo. E Kombi 95 é meio que a juventude de toda a nossa geração, minha, dele, de tantos mais, contada sem rodeios, de maneira apaixonada e quase metódica. 

Em meio a tanta coisa publicada no gênero atualmente e escorada em histórias mirabolantes, cheias de criaturas sobrenaturais, teorias conspiratórias e heróis acima de qualquer suspeita, é louvável e digno de aplausos quem decide recorrer ao simples, ao cotidiano (aliás, nunca foi tão difícil falar do cotidiano como nesse século XXI, cada mais apegado ao grandioso e ao espetacular). 

Detalhe: encontrei a página do autor no Instagram e fiquei sabendo da existência de um outro álbum de sua autoria, de nome Mjadra. Preciso dizer que já estou procurando por ele nas magazines e livrarias que frequento? 

Procurem. Eu achei a minha numa das filiais da livraria saraiva num saldão, acreditem se quiser!, praticamente abandonada, por menos de 20 reais. Achei um crime cultural. E se você, como eu, também viveu esse período com intensidade, corra atrás mesmo, antes que ele suma das prateleiras. É quase uma enciclopédia (mas com um colorido extremamente psicodélico e um linguajar da nossa turma). 

Ah! E tem uma playlist no final do álbum com todas as músicas mencionadas na história. Uma trilha sonora afetiva desse período. Achei o máximo!

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O marginal de Hollywood


O cinema, além de reprodutor da realidade, volta e meia vive da fama de grandes nomes que fizeram da indústria cinematográfica o que ela é hoje. Há cineastas que conseguiram transformar seus sobrenomes em gêneros próprios, emocionando milhões de espectadores ao redor do mundo. É o caso de gigantes como Fellini, Bergman, Kurosawa, Rosselini, Almodóvar, Truffaut, Godard, etc etc etc. Contudo, ninguém transformou essa faceta num negócio lucrativo tão bem quanto hollywood. A meca do cinema é famosa por construir legados que ultrapassam gerações e gerações. Spike Lee, John Cassavetes, Sam Peckinpah, John Ford, Steven Spielberg, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e tantos outros são provas vivas disso. 

Há, porém, um outro lado da sétima arte ao redor do mundo que normalmente é boicotado ou varrido para debaixo do tapete por clás de moralistas e demagogos (e eles sempre tentaram catalogar o cinema à sua imagem e semelhança). Falo dos cineastas marginais, do universo underground que também merece o seu quinhão de estrelato e reconhecimento, seja por sua coragem de enfrentar o star system, seja pela ousadia de incomodar com temas polêmicos, que normalmente agridem aos olhos e ouvidos mais puritanos. 

E desse segundo grupo é louvável, como fez o diretor Craig Brewer no inacreditável Meu nome é Dolemite, falar de artistas como Rudy Ray Moore. Recentemente, durante uma entrevista a um talk show para divulgar o longa, o comediante Eddie Murphy - que interpreta Rudy no filme - o chamou de "um guerrilheiro do cinema". E não é exagero, não! O cara é realmente um fenômeno se levarmos em consideração o que ele conquistou. 

Rudy Ray Moore tinha tudo para não ser ninguém. Vinha de uma carreira praticamente esgotada no stand up comedy, e muitos acreditavam que ele insistia de teimoso que era. Mas ele não desistiu e viu na possibilidade de trazer para o palco as piadas sujas que ouvia nas ruas um filão. Dito e feito. Tornou-se o grande nome do humor adulto na América. 

Entretanto, não satisfeito, decidiu: vou produzir meu próprio longa-metragem. E após convencer o ator D'Urville Martin (Wesley Snipes) a dirigi-lo, engendrou uma das maiores empreitadas da história do cinema americano. Mas assim como seu contemporâneo Melvyn Van Peebles e a galera da Blaxploitation teve que enfrentar os tubarões dos grandes estúdios e o eterno corporativismo do setor para realizar o seu maior sonho. 

O que mais me interessou no projeto foi o fato de estarmos falando de um marginal do cinema, de um homem que teve de, muitas vezes, mudar de trajetória, alterar seus planos originais, para atingir seu objetivo final. É o exemplar perfeito do filme sobre como fazer um filme quando você não se encaixa no perfil do diretor para aqueles que financiam filmes. Entenderam? É por aí.

O que vemos nas quase duas horas de projeção é um grande convite a conhecermos o mundo dos excluídos, aqueles que a indústria não quer ver no tapete vermelho, pois não atendem aos interesses e necessidades do mercado (na visão deles, é claro!). E mesmo assim eles insistem, arrombam portas, desmentem críticos, viram a estrutura do mercado de cabeça para baixo. 

Pessoas como Rudy Ray Moore não precisam de reconhecimento da Academia, muito menos de festas em sua homenagem no cultuado Governors Award. Não, não, não! Eles conseguiram coisa muita maior do que isso. Eles derrubaram muito mais do que a quarta parede (assunto que volta e meia povoa a cabeça de milhares de críticos aqui no Brasil). E cada dia mais eu tenho certeza de que a indústria cinematográfica, e não somente a hollywoodiana, precisa de mais pessoas como ele. 

A sétima arte anda carente de coragem, principalmente na América, que se rendeu a formatos, franquias, remakes, etc, de pessoas que não temam uma indústria, um sistema político ou mesmo fanáticos religiosos (algo que temos vivido atualmente em nosso país). E que bom seria se todo ano, ao invés de um novo Michael Bay ou um novo James Cameron, pudéssemos nos deparar com mais artistas autorais ou, ao menos, com mais culhões para apontar as feridas da sociedade e do mundo como um todo! 

Para muitos Rudy talvez não passe de um homem oportunista, que forçou a barra para chegar lá, que só queria jogar na cara dos brancos o quanto podia também. Eu vejo além disso. Vejo-o como resistência, como alguém que deveria produzir um legado no mercado cinematográfico. Podem ter certeza: Não haveria Jordan Peele, Steve McQueen, Barry Jenkins e Ryan Coogler (e cito aqui apenas os grandes diretores negros da atualidade) não fossem homens à frente do seu tempo como Rudy Ray Moore. 

E como é bom saber que essa história de perseverança e luta foi contada para as próximas gerações. Obrigado!

domingo, 5 de janeiro de 2020

Reminiscências


O ano de 2020 nem começou direito e o escritor americano Jason Reynolds conseguiu. Me destruiu. Por inteiro. E com um livro que a priori parece simples: uma narrativa em versos. Sua desculpa para escolher esse formato? Ele lembra o rap que seus conterrâneos da periferia de Washington ouvem o tempo inteiro. E trata-se de uma história devastadora, como a de tantos homens como Jason, que passa longe da alcunha de privilegiado nesse sistema torpe de cartas marcadas. 

O livro em questão é Daqui pra baixo. E a narrativa dura o tempo que seu protagonista leva para descer de elevador. Isso mesmo. Um reles elevador. 

Will, o homem a quem devemos seguir os passos, está devastado. E com razão. Ele testemunhou o assassinato de seu irmão mais velho, Shawn. O homem que mais idolatrou em toda a sua vida. E de sua devastação inicial nasce um ódio desmedido que o fará acreditar que a única maneira de seguir em frente é assassinando Riggs, o homem que o matou, membro da gangue Filhos da noite. 

Todavia, como toda jornada em busca de vingança, a decisão de Will será atravessada por pessoas que trarão nova luz aos fatos, e ele precisa ouvir essas pessoas antes de ir às últimas consequências. E são essas pessoas, que entram e saem do elevador a cada andar, que fazem do livro um ensaio sobre a dor, sobre o seguir em frente depois de ter perdido tudo o que havia de mais significativo em sua vida. 

Daqui pra baixo é, a meu ver, uma grande colcha de retalhos, repleta de reminiscências amargas de um passado que sempre foi fragmentado. É difícil para Will falar em família de forma tradicional. Nada é tradicional na vida de quem vive naquela periferia. Tudo é luta, é revolta, é um convite constante ao desapego. Como criar laços num lugar onde a vida está sempre apontando uma arma, uma faca para a sua jugular, um dedo acusador? O que sobra de verdadeiro para essas pessoas, na maioria das vezes, é aceitar os fatos como são ou fazer os outros se sentirem igual a você.

Daí as três regras básicas: não chorar, não dedurar ninguém e se vingar. De preferência, o quanto antes. 

Segundo o autor a história se passa em meros 60 segundos e Will já tomou sua decisão. Sua arma está presa às costas, falta apenas encontrar o miserável que destruiu a sua vida. Porém, além do que se vê no texto, brilhante, coeso, curtíssimo, desses que se lê numa sentada, no máximo em uma hora, o que encontramos é um mar de dúvidas, de lamentações, de histórias mal contadas, de vidas partidas, de mortes escolhidas a dedo. E isso, meus caros leitores, nunca é fácil de digerir. 

Se ano passado eu reclamava do caminho que a literatura vinha tomando - cheguei a mostrar meu descontentamento direto com um "livro" do escritor Alejandro Zambra -, posso dizer que esse ano, ao contrário, já começou em grande estilo. 

O romance de Reynolds é duro, porém necessário, principalmente para aqueles que não entendem a vida de quem não tem privilégios ou não nasceu com o cu pra lua. Cansei dessas pessoas que acham que morar nos EUA é viver em Miami, Orlando, Nova York, etc, e esquecem que no mesmo país existem regiões como o Bronx e o Harlem, deficientes de tudo. 

Precisamos acordar dessa cegueira engajada na qual estamos enfiados. Precisamos olhar a América além da conotação de "a grande nação" (que, honestamente, ela nunca foi). E acredito que Daqui pra baixo seja um excelente começo para aqueles que procuram respostas além do óbvio. 

E quem quiser saber mais, que corra agora à livraria mais próxima. Antes que o livro seja recolhido das prateleiras. Até porque, com o atual governo, castrando, desmentindo tudo, chamando o racismo de nutella, vai saber o que vão fazer com uma obra dessas por aqui!