Certos livros perturbam (às vezes até demais). Já outros, atendem de cara nossas mais loucas expectativas. Entretanto, há um terceiro tipo que me agrada ainda mais: aqueles que unem essas duas vertentes, ou seja, atendem minhas expectativas justamente porque perturbam. São tão realistas em suas intenções que me fazem repensar e/ou desconstruir minhas próprias ideias ou o próprio mundo que me rodeia.
Favelost, do escritor, músico, agitador cultural e poeta Fausto Fawcett, que eu enfim consegui ler depois de perseguí-lo em vários sebos sem sucesso por quase dois anos, faz parte - com folga - desta terceira categoria. E não há momento melhor para lê-lo do que no Brasil de hoje, cheio de fanáticos e ignorantes tolhendo a liberdade alheia e distorcendo qualquer tipo de debate ou discussão.
O livro de Fausto, outrora vocalista da saudosa banda Os robôs efêmeros que tanta saudade deixou lá pelos idos de 1980 tocando "Kátia Flávia - Godiva de Irajá", está anos-luz do que possa ser classificado como um romance tradicional. Na verdade, cabe melhor na ideia de uma grande crônica do absurdo, que é o que virou o país e o mundo nos últimos anos.
Acompanhamos habitantes mezzo perturbados mezzo irônicos como Jupiter Allighieri e a Eminência Paula nos introduzindo no convívio com essa sociedade louca, por demais catastrófica, imediatista e que não abre mão do menor dos privilégios, pois somente assim eles se considerarão "sobreviventes da nova era".
Favelost é cheio de ecos à grandes obras literárias (o que não significa que elas tenham sido as referências do autor para construir seu trabalho) como O uivo, de Allen Ginsberg e Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. Bebe na mesma fonte de águas turvas e nada insípidas, muito menos incolores ou inodoras. E mesmo assim destila seu veneno e sua acidez muito bem construída desde o primeiro parágrafo.
Fawcett costuma dizer em suas raras entrevistas que sua literatura nada tem a ver com o gênero ficção-científica, pois ele se limita a retratar a realidade. No entanto, é visível o flerte com essa linguagem. Eu poderia (até com certa folga) situar sua narrativa no ano de 3105, por exemplo. Quem sabe até colocá-lo lado a lado com Deckard, protagonista do clássico sci-fi Blade Runner - o caçador de androides. Mas, infelizmente, o que ele narra é atualíssimo, vil, por vezes grotesco de tão desumano, e mesmo assim por demais necessário para que consigamos entender que mundo é esse no qual estamos atolados até o pescoço.
A frase que pontua toda a angústia do cidadão que escreve sobre o absurdo cotidiano ao qual sobrevivemos é "o Brasil é o abismo que nunca chega". E nisso, ele, Fawcett, está corretíssimo.
Para aqueles mais acostumados a love stories açucaradas e livros de auto-ajuda, Favelost será leitura árdua e temo até em dizer: muitos vão chamar - obra e escritor - de condenados (expressão que anda em voga na boca dos falsos moralistas). Contudo, se você como eu ainda admira quem tem culhões e sabe colocar suas ideias no papel, não deixe de ler.
Da ideologia da falsa felicidade construída à base de consumo banal e desenfreado à amores eletrônicos e fúteis que não passam de um dia, quiçá uma semana, o "romance" de Fawcett nos entrega uma reles molécula da realidade líquida e disforme que Zygmunt Bauman tão bem esmiuçou em seus formidáveis livros. E não satisfeito vai mais além e debocha. De tudo e de todos.
Melhor parar por aqui, pois não quero estragar todo o elán do livro que promete muitas tiradas e reflexões interessantíssimas, tanto sobre os seres humanos quanto as corporações desse século XXI cada dia mais Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Certo? Então... Agora é com vocês. Tomem coragem, pelo menos uma vez na vida, e entrem nesse inevitável campo de batalha. Até porque o mundo não vai deixar você fugir desse jeito. Não mesmo.