sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A ignorância é um fenômeno global


Dentre os gêneros cinematográficos mais comerciais o chamado filme-catástrofe, no meu entender, é aquele que as pessoas menos estão interessadas em perceber as entrelinhas. Elas ficam, em sua grande maioria, tão fascinadas com as cenas de destruição e morte, que esquecem de todo o resto. Toda a polêmica que também se encontra muitas vezes ali, diante de seus olhos, tão visível que chega a doer, não importa. Eles, os espectadores, preferem os efeitos especiais, o CGI, o exagero promovido pela adrenalina. E que se danem as denúncias sobre o mundo contemporâneo e a sociedade falha, torta, vil. 

E quando vivemos numa era repleta de negacionismos e extremistas os mais diversos, essa interpretação fica ainda mais prejudicada, pois eles, os que negam, só olham para o seu próprio umbigo, desdenham de qualquer outra verdade que não seja a sua, complicam todo o processo. Só estão interessados na sua própria vaidade ou prepotência. Não olhe para cima, novo filme do diretor Adam McKay - de longas que misturam o humor ácido com a crise política como poucos, não necessariamente agradando a todos os públicos - sofre desse dilema. Digo mais: acredito que de todos os filmes dele é o que mais sofre desse dilema, ainda mais no mundo de hoje, apegado em demasia à idiotice. Mas caso você não pertença à essa classe, sugiro que dê pelo menos uma olhada. 

A cientista e doutoranda Kate Dubiasky (Jennifer Lawrence) descobriu em uma de suas observações a trajetória de um cometa e passa suas informações para o seu professor, o Dr. Randall Mindy (Leonardo Dicaprio, naquele que eu considero o personagem mais surtado de toda a sua carreira). Ele analisa os dados e tem como resposta que ele, o cometa, está em rota de colisão com o planeta terra, e o atingirá num prazo um pouco maior do que seis meses. Perplexos com a notícia, decidem avisar a Casa Branca. E é justamente nesse momento que começa de fato o maior dos seus problemas. 

Imaginem que o mundo fosse acabar daqui a metade de um ano e você descobrisse que as pessoas só estão de fato interessadas no quanto irão ganhar com essa notícia ou com o abafamento dessa notícia. Esse é o mote do nosso filme. Um adendo: não é de hoje que a própria humanidade transformou a discussão sobre o fim do mundo numa grande piada de humor negro. Vide aquela história da profecia maia de que o mundo acabaria em 21 de dezembro de 2012 (que virou até filme babaca do Roland Emmerich, de Independence Day). E qualquer debate depois disso perdeu completamente a relevância. 

A Casa Branca debocha dos cientistas (chega, inclusive, a explorá-los). A imprensa debocha dos fatos descobertos pelos cientistas. A sociedade debocha dos cientistas. Pior: os transforma em memes, em loucos, em surtados. Até mesmo o namorado de Kate entra na onda e termina com ela via mensagem de texto. Sim, é louco, eu sei... Mas o problema é que o mundo como nós conhecemos também já enlouqueceu faz tempo. A gente é que simplesmente não percebeu e prefere a piada barata à certeza dos fatos. É mais fácil acreditar na zona de conforto produzida pela ignorância. Por sinal, cabe aqui um aparte: que me perdoe quem pensa o contrário atualmente, mas a ignorância virou um fenômeno global de alta rentabilidade. 

Não olhe para cima está repleto de tipos sociais os mais macabros possível, e ainda assim os achamos divertidos, fofinhos, inofensivos: a presidente dos EUA - vivida de forma impecável por Meryl Streep - é o retrato da bestialidade em forma de gente. Não é à toa que na grande nação atualmente tem gente até invadindo o capitólio e exaltando Hitler! O filho da presidente e seu chefe de gabinete é o estereótipo da futilidade e da arrogância, aquele tipo de indivíduo que realmente acredita ser a pessoa mais indispensável do mundo. A âncora feminina do telejornal mais assistido pela América não passa de uma ninfomaníaca gostosona. O guru que alimenta o desejo de milhões com seus celulares de última geração enquanto acredita piamente que algoritmos decidirão o seu futuro e o da civilização como um todo tem interesse na não-destruição do cometa, pois ele possui componentes capazes de aumentar ainda mais o seu patrimônio. E a musa pop do país é uma figura tatibitate que está mais interessada no fim do seu relacionamento amoroso efêmero do que na extinção do planeta. 

Acharam pouco? Isso é só a ponta do iceberg, já que o contexto geral piora - e muito!

Some a essa catarse humana de idiotas e irresponsáveis o mau uso da tecnologia, à serviço da mentira e da leviandade, a polarização que vai crescendo no país à medida que os dias passam e a chegada do cometa vai se tornando mais iminente e até mesmo a corrupção de um dos cientistas que descobriram o problema a esse sistema cruel e diabólico e pronto: estamos literalmente testemunhando o fim dos tempos. E olha que o mundo nem precisava ser de fato atingido por nada. Nós já tínhamos estragado tudo muito antes, com nossa falta de tato e caráter. 

Coisa de uns 15 anos atrás assisti no cinema um longa chamado Idiocracia, de Mike Judge. Nele, me deparei com a história de Joe Bauers (Luke Wilson), escalado para um projeto ultrassecreto no Pentágono que envolvia sua hibernação. Ele acaba esquecido por cinco séculos e ao despertar da câmara, se depara com uma civilização completamente burra que decidia, até mesmo, seu modelo eleitoral da maneira mais estúpida e infantil. Acreditem: a sociedade era tão artificial e desnecessária, que se eu vivesse naquele lugar provavelmente teria tirado a minha própria vida, por acreditar que a morte nesse caso seria mais interessante e honesta. 

Hoje, depois de assistir o longa de McKay, vejo que a sociedade - tanto a ficcional quanto a do mundo real - virou Idiocracia. E não só encaramos isso com a maior naturalidade, como nos orgulhamos disso. É só olhar os tabloides, as conversas de bar, ouvir as pessoas falando nas filas dos bancos, dos cinemas, dos supermercados. O mau gosto, o atroz, o fútil, virou o tema do momento. E ele viraliza e ganha fama com uma facilidade assustadora.

Ao fim, o legado que me fica dessa experiência audiovisual é: ufa! como é bom não fazer parte dessa geração alienada e que se pavoneia de si o tempo todo. Ah! Vi muita gente na internet detonando o longa, usando como desculpa a seguinte afirmação: se esse filme estivesse afim mesmo de denunciar alguma coisa o diretor não teria escolhido a comédia como o gênero dele. Não, meus amigos! Se teve um ponto no qual o McKay acertou de fato, foi esse. 

O mundo já não é mais um lugar sério há muito tempo. Mas muito, muito tempo! 


quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Berço nada esplêndido


Quando o cantor e compositor Tom Jobim disse numa entrevista que o Brasil não era pra principiantes deve ter cutucado com vara curta a onça demagoga que habita em muitos cidadãos desse país. Mas, infelizmente, ele falou a mais pura verdade. E ainda digo o seguinte: a cada ano que passa eu tenho mais e mais a sensação de que o Brasil gosta de ser o país da zona, do desconforto, da falta de caráter, da piadinha sem graça, da hipocrisia, da misoginia e do feminicídio, da homofobia, do racismo descarado (e que não tem nada de velado). 

A velha máxima de "país do futuro" (mas que nunca tem presente à vista) nos acompanha há mais de cinco séculos e nos acostumamos com esse vício de boca insuportável. E quem fala disso pelas ruas ainda por cima é chamado de babaca, de antipatriota, pois é mais importante num país de cegos vendermos as facilidades da mentira, do hedonismo e da falsidade do que sermos apenas reais. 

Fiquei pensando em tudo isso, em toda essa dor acumulada, em todo esse desleixo, essa falta de vocação para ser algo melhor, em toda essa polarização (aquilo que o jornalista Zuenir Ventura um dia chamou de "cidade partida" num de seus livros mais famosos) enquanto lia Revolta e protesto na poesia brasileira: 142 poemas sobre o Brasil, organizado pelo crítico literário e ensaísta André Seffrin. E a resposta a que cheguei ao final da leitura de clássicos e contemporâneos da nossa poesia é: só fizemos foi piorar. 

Mais: fiquei pensando em alguns momentos no trecho de nosso hino nacional que diz "deitado eternamente em berço esplêndido" e no quanto nós não fazíamos daquele lugar, um lugar realmente esplêndido. Pelo contrário. Há quem não possua, agora, nesse momento que atravessamos, nem lugar para deitar. E isso, qualquer pessoa lúcida deste país vai concordar comigo, é triste. 

André é esperto e recorre a grandes baluartes da nossa literatura: Machado de Assis, Olavo Bilac, Castro Alves, Cruz e Sousa, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga... Mas esperem! Eles apenas encabeçam uma lista que também possui autores da contemporaneidade. O organizador mostra diferentes Brasis, de séculos distintos, e nos mostra o quanto a injustiça, a intolerância e a desigualdade são temas que não envelhecem em nossas terras mesmo com o passar dos anos.

Os próprios títulos de alguns poemas já são, por si só, nítidos em mostrar esse país recalcado e desesperançado no qual vivemos: "Speculum Patriae" (de Alexei Bueno), Sonneto do decoro parlamentar" (de Glauco Mattoso), "Há sempre um poema que não se pode escrever" (de Flávio Moreira da Costa), "Soneto de um triste país", (de Ruy Espinheira Filho), "A recriação do homem" (de Fausto Wolff), "Ave Maria da eleição", (de Leandro Gomes de Barros), entre outras pérolas. 

Mas, além disso, Revolta e protesto fala de liberdades ainda possíveis, das agruras do neoliberalismo, de exílio, de usura, da calhordice, do enterro da justiça, do processo eleitoral movido pela fé tendenciosa, do poder público que não funciona, dos diplomas universitários comprados a peso de ouro, dos inválidos da pátria... E mais do que isso, meus caros leitores, só lendo. Mas vão preparados! Porque o clima que rege toda a obra é tenso (e não poderia ser diferente). 

Vocês devem estar pensando: "ele acabou de ler um tijolo de mais de 700 páginas". Que nada! Não chegam à 300! Mas é de uma profundidade tão atroz e ao mesmo tempo tão verdadeira, que acho meramente impossível a qualquer leitor que se preze não reverenciar sua maestria e talento. 

E também me recuso chegar à última página e não pensar: "como a nossa literatura é gigantesca e a grande maioria do povo não se dá conta disso porque acredita que leitura não passa de perda de tempo, e por isso prefere celulares e câmeras".  

Logo, se você procura permanecer alienado, dentro da bolha do suposto confortável, fique à vontade. Já se você cansou, não aguenta mais nada do que está aí e quer entender, mesmo que minimamente, as raízes do problema, fica a dica. Em tempos de livrarias fechando e impostos para livros. é de mais obras como esta que o país está precisando - urgentemente.


sábado, 25 de dezembro de 2021

Certas histórias só se contam uma vez


Eu tenho bronca de franquias e continuações no mundo do cinema por um motivo óbvio: porque de tempos em tempos elas arruínam ideias que pareciam melhores quando contadas de uma vez só. 11 homens e um segredo, de Steven Soderbergh, tem esse problema. Homens de preto, de Barry Sonenfeld, também. E dentro desse universo das ideias infelizes que precisam de continuações para melhorar aquilo que não precisa ser melhorado, encontra-se praticamente encabeçando a lista Matrix, dos (na época) irmãos Andy e Larry Wachowski.

O longa original de 1999 é dessas experiências que os verdadeiros cinéfilos de carteirinha nunca irão se esquecer. Seja pelas cenas de ação memoráveis, pelo uso frenético da tecnologia ou pela história aprisionante do homem comum aprisionado ao sistema que se torna o messias de um revolução. E ao descer dos créditos, você pensa: "é isso, não precisa de mais nada". Infelizmente a dupla de diretores não viu dessa forma e realizou os execráveis Matrix reloaded e revolutions, para tristeza dos fãs da boa sétima arte.

E eis que 18 anos depois, Lana (anteriormente Larry), sem a companhia do irmão (agora irmã também), decide retomar este universo como eu disse antes: irretocável. E de novo entra em choque com o que era, até então, perfeito. 

Matrix Resurrections traz Neo (Keanu Reeves, em seu visual John Wick, que o consagrou nos últimos tempos) de volta à sua faceta Thomas Anderson. Ele de novo vive de forma melancólica, ciente de que algo está faltando em sua vida. E não se trata de sucesso: ele é um bem sucedido desenvolvedor de games - no caso, o The Matrix para a Warner Bros (sim, o filme tem esse quê de ironia nada fina) - que poderia estar curtindo a sua existência com todos os méritos a que tem direito. Mas, na prática, não é isso o que acontece. 

A começar pelo que sente por Tiffany (Carrie-Annie Moss) que em seu jogo conhece como Trinity. Ele frequenta sessões de terapia com seu analista (vivido por Neil Patrick Harris) para tentar entender o que se passa em sua cabeça, mas será surpreendido por Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II) e Bugs (Jessica Henwick) que o trazem de volta ao mundo real, um mundo que ele até então não sabia que conhecia tão bem e mais do que isso: era um líder. 

Entre a saga para recuperar a memória de Neo e, por conseguinte, trazer de volta à tão amada Trinity e os novos desafios aos quais a resistência precisará enfrentar, o longa de Lana se perde justamente por não trazer aquilo que ele tinha de melhor em sua versão original. Esqueçam o agente Smith de Hugo Weaving e o Morpheus original de Laurence Fishburne. Eles não estão lá e, sim, você sentirá - e muito! - a falta de ambos. O oráculo que ajudou a definir o futuro da missão de Neo também não dá as caras e eu lamentei muito, porque gostava demais da atriz. E isso é apenas parte do problema. 

As tão amadas cenas de ação sufocantes e em câmera lenta em alguns momentos estão lá e bem feitas, é bom que se diga!, mas parecem no todo genéricas, sem uma função específica. Que me perdoem os fanáticos da franquia, mas foi o que eu senti. O elenco de agentes que rodeiam Neo não é mal. Pelo contrário. Gosto da química entre eles, mas não têm a verve do elenco de 1999. 

No final das contas, seja pelo ritmo arrastado em várias passagens, seja pela ausência de carisma (do filme, não dos atores), o que percebi como resultado foi estar diante de uma grande comédia dos erros. Os fãs de cinema de ação que não perdem a chance de testemunhar a grande paranoia por trás de franquias tresloucadas como Velozes e furiosos, Maze Runner e Resident Evil, certamente terão muito do que gostar aqui. Já os que esperavam novas ideias e teorias da conspiração... Sinto! Esse filme não será para você.

Matrix Resurrections é mais uma daquelas produções cinematográficas para você se perguntar ao fim porque hollywood continua insistindo nesse formato franchising que só serve para provar que a insistência numa trama já deu o que tinha que dar e o cinema americano precisa urgentemente de novos roteiristas, do contrário periga tornar-se refém de um loop temporal e a palavra originalidade perderá completamente o seu significado. 

À parte este singelo desabafo, uma certeza será nítida ao fim da sessão: a franquia é um gosto adquirido e amar ou odiar só depende ainda dos espectadores. E eles estão cada vez mais fanáticos!

P.S ou apenas um raciocínio agregado: perguntam-me, volta e meia, porque sou contra o Quentin Tarantino realizar uma terceira parte de Kill Bill. Resposta: pelo mesmo motivo que me levou a escrever este texto. E quando a história encontra o seu desfecho, não há nada que você possa fazer para mudar isto.     

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A paixão nacional


Como é que se começa um texto que se promete interminável desde a primeira palavra? Não sei dizer, mas vou escrever assim mesmo!

Não se sabe ao certo de onde vem tamanho sucesso (ou talvez saibam e eu, que já não assisto o formato há tempos, é que esteja por fora), mas as telenovelas são um fenômeno que veio e ficou. E por mais que muitos possam dizer - e têm até esse direito - que elas não são mais as mesmas, que se entregaram a uma temática pasteurizada, babaca, que entupiram tudo com a moral trending topics do século XXI, ainda assim o público quer saber do que se trata, comparece, acompanha, às vezes se veste igual, aprende as gírias e jargões, tem até quem já fumou e bebeu no passado por causa delas. 

De concreto mesmo: as telenovelas, que deram as caras por aqui em 21 de dezembro de 1951, completam sete décadas de existência e ainda fascinam um grande público. 

Mas não pensem vocês, leitores, que elas foram somente sorrisos e abraços. Não, meus caros! As novelas também já incomodaram e muito. Que o diga o primeiro beijo, na novela Sua vida me pertence, na TV Tupi, em fevereiro de 1952, dado pelo casal Walter Foster e Vida Alves. A polêmica já começou dentro da própria emissora, quando o fotógrafo dos Diários Associados, Chico Vizzoni, se recusou a registrar o momento por considerá-lo um escândalo. Imaginem, então, na sociedade puritana daquela época...

O primeiro beijo é no fundo apenas o primeiro episódio apaixonado de uma saga que passou por muitas intempéries. Da transmissão ao vivo ao videotape, os vilões consagrados, os casais que entraram para a história (Tarcísio Meira e Glória Menezes certamente lideram essa categoria com folga), as musas que não saem da cabeça dos espectadores (Regina Duarte, a namoradinha do Brasil; Nívea Maria; Sônia Braga, Lídia Brondi - que eu me pergunto sempre por onde anda -, Betty Faria, Maitê Proença, etc etc etc e haja etc), até mesmo os triângulos amorosos e as histórias que fugiram do padrão convencional. 

Sim, porque como esquecer de Saramandaia e sua ode à excentricidade com personagens que voavam e Dona redonda que explodiu? E a Sucupira de Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), criada por Dias Gomes em O bem-amado? E a novela A viagem, de Ivani Ribeiro, que fez com que nos perguntássemos sobre a vida após a morte? E o Vlad (Ney Latorraca), protagonista de Vamp, que trouxe os vampiros ao folhetim televisivo? E a Avilã, cidade história de Que rei sou eu? Eu poderia ficar aqui o resto da semana, do mês, e não conseguiria terminar este parágrafo, tamanho o número de universos criados pela televisão. 

Eu disse lá no primeiro parágrafo que há tempos não vejo novela e mesmo na época em que assistia ela não era o meu carro-chefe da tv. Eu gostava mesmo era de programas como Armação Ilimitada, TV Pirata, Tamanho família (sitcom famosa da Rede Manchete no final dos anos 1980), Programa Livre com Serginho Groissman no SBT e, lógico, as sessões de cinema na madrugada. Mas se houve uma figura que chamou minha atenção nesse universo e me fez sentar no sofá para acompanhar a trama foi o vilão ou bad boy (ou, às vezes, bad girl). 

Casos mais óbvios disso: 1) Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) em Senhora do destino, que sequestrou uma criança e criou como sua filha até que a verdade viesse à tona e a mãe biológica descobrisse o seu paradeiro; 2) Donato Menezes (Miguel Falabella) em As noivas de copacabana, o psicopata obcecado com as mulheres que estavam às vésperas do altar; 3) Zé das medalhas (Armando Bogus) em Roque Santeiro, protótipo vivo do homem deslumbrado com a riqueza; 4) Adalberto (Cecil Thiré) em A próxima vítima, ou o assassino do horóscopo chinês, que matou todas as testemunhas de um crime ocorrido num iate na noite de reveillon; 5) Leila (Cássia Kiss) em Vale tudo, que entrou para a história da teledramaturgia nacional como a assassina de Odete Roitman (Beatriz Segall). Vai ter gente dizendo que eu esqueci da Carminha (Adriana Esteves) em Avenida Brasil, mas nessa época eu já estava em outra vibe, sinto muito!

E lógico que os mocinhos foram amados com a mesma intensidade: João Coragem (Tarcísio Meira) de Os irmãos Coragem, fenômeno televisivo eterno; o motorista Carlão (Francisco Cuoco) em Pecado Capital, cuja mala que encontrou em seu carro mudou completamente sua vida; Sassá Mutema (Lima Barreto) em O salvador da pátria; Maria do carmo (Regina Duarte) em Rainha da sucata, que saiu do lixo para o luxo; Sinhozinho Malta (Lima Duarte) em Roque Santeiro; até os mais controversos Comendador José Alfredo (Alexandre Nero) em Império e Giovanni Improta (José Wilker) em Senhora do destino.

Outro aspecto a ser destacado nas novelas ao longo das décadas foram assuntos de relevância nacional, como barrigas de aluguel (que foi tema de uma novela das seis de Glória Perez), clonagem humana, reforma agrária (que tomou um grande arco dentro da novela O rei do gado, ao som de Admirável gado novo, de Zé Ramalho), mulheres que apanham dos maridos (em Mulheres apaixonadas), tráfico de mulheres (em Salve Jorge), crianças desaparecidas, envolvimento com drogas, prostituição no mundo da moda (em Verdades secretas), entre tantos outros.

E por falar em Verdades secretas, ela - em sua segunda temporada - apresenta o formato a um outro universo: o streaming. Ou seja, acabou a ideia do compromisso com o horário fechado, a grade específica, o "eu não posso perder a novela das 6, das 7, das 9, etc". Não. Você pode assistir quando quiser, a hora que for, quantas vezes for, pelo celular, tablet, notebook... O céu é o limite. E muitos produtores já se perguntam qual será o futuro disso para as próximas décadas que virão. 

Não faço a menor ideia de como responder a pergunta entre aspas que encerra o parágrafo anterior. Só o que posso afirmar é que as novelas continuarão por aí, se reinventando, procurando novos caminhos que cheguem ao espectador. E permanecerão essa grande paixão nacional, não importa o quanto os seus detratores falem mal delas. Elas, mais do que mero entretenimento, viraram um compromisso social da população. E isso é praticamente impossível de ser desfeito.      


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O evangelho da sétima arte mundial


O cinema comercial ou blockbuster é uma faceta da sétima arte tanto quanto o cinema autoral, uma faceta cada vez mais onipresente, pelo que se pode perceber nas últimas décadas; e nem sempre isso é um bom sinal para os cinéfilos de carteirinha. E eu nunca entendi o porquê de tantas brigas entre esses dois grupos de fãs. Sempre acreditei que houvesse espaço para todos na sala escura, mas às vezes eu tenho a sensação de que são turmas distintas, que não gostam de coabitar o mesmo espaço. 

Nessas horas, eu faço questão de escolher o lado que abraça também a crítica, com suas opiniões fortes, contundentes, por vezes polêmicas. Não sou do tipo de espectador que se basta com o fenômeno das franquias e o discurso evasivo do "gostei" ou "não gostei". Esse mundo de curtições e compartilhamentos das redes sociais não me picou. Mesmo. Prefiro ler uma opinião completamente contrária a minha sobre um filme do que manter distância de quem não gosta das mesmas coisas que eu. E nesse sentido a revista Cahiers du cinéma sempre fez parte da minha vida. 

Numa matéria escrita por Cavi Borges, antigo dono da locadora Cavídeo e hoje produtor de cinema, para o jornal Correio da manhã, leio que a revista de cinema mais influente do mundo está completando 70 anos de existência. E penso então: "2021 quase acaba e eu deixo isso passar em vão!". É preciso corrigir essa injustiça o quanto antes. 

A Cahiers du cinéma nasceu em março de 1951 dos esforços de três sonhadores: Jacques Doniol-Valcroze, André Bazin e Joseph-Marie Lo Duca. Mas também do delírio e do desejo de dois cineclubes parisienses da época, o Ciné-Club du Quartier Latin e Objectif 49 (que tiveram entre seus membros figuras como Robert Bresson, Jean Cocteau, Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol e François Truffaut). Alguns deles, como bem sabemos, foram responsáveis pela grande revolução cinematográfica que foi a Nouvelle Vague no final dos anos 1950.

Porém, mais importante do que isso, esses homens de coragem lutaram por aquilo que ficou conhecido como a política de autor. Ou seja: todos eles evidenciavam a importância do diretor para um filme (algo diferente do que se vê hoje em dia, num mercado dominado por estúdios). E a partir de análises complexas e abrangentes sobre a estética e o papel social das películas desnudaram o cinema de uma tal forma que, não à toa, a maioria dos críticos hoje a veja, mais do que um simples revista, como um grande evangelho da sétima arte mundial.

Que me perdoem os leitores de publicações como a Hollywood Reporter ou a Variety, mas a Cahiers du Cinéma conquistou um mercado muito maior do que simplesmente monetário. Ela virou sinônimo de cinema na cabeça dos cinéfilos mais apaixonados. Prova viva disso é a famosa lista top 10 que a revista divulga todo ano e é esperada quase que religiosamente pelos fãs. A Cahiers é isso: essa bússola que guia os espectadores mais alucinados por um jornada sem fim rumo ao conhecimento. Não, é isso mesmo que vocês leram! Cinema, para eles, não é só entretenimento. É conhecimento e muito.

Entre novas interpretações para a sétima arte, polêmicas relevantes (não simplesmente ser chato ou xiita com algum gênero e/ou diretor) e questionamentos sobre dogmas cinematográficos, a publicação trilhou de trincheira em trincheira um caminho em busca de reflexão e não se bastar com as primeiras impressões. E para quem pensa que o que a Cahiers fez é muito pouco ou quase nada, leve em consideração o seguinte: se hoje vocês, cinéfilos, sabem quem foram cineastas como Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Samuel Fuller e Nicholas Ray, entre outras feras, agradeçam - e muito! - a revista. Pois antes dela, não era tão comum assim se lembrar de quem dirigiu um filme (pelo menos, não da maneira como vemos hoje em dia no circuito). 

Hoje você vai ao cinema com a maior naturalidade, sabendo que Martin Scorsese é o diretor de O irlandês, David Fincher é o diretor de Mank e Steven Spielberg é o realizador por trás do remake de Amor, sublime amor. Provavelmente, muitos naquela época não faziam a menor ideia que os diretores da versão original do musical de Stephen Sondheim eram a dupla Jerome Robbins e Robert Wise. Mas eles conheciam o título do filme. Parece tão pouco, mas faz uma enorme diferença para quem produz e dirige. 

Vejo muitos leitores da revista dizendo que ela não é mais a mesma, que perdeu parte do seu encanto, que se rendeu aos ditames do mercado (e isso, infelizmente, é verdade). Entretanto, ela ainda permanece - não se sabe bem até quando - um lugar onde a diversidade está presente, não se rendendo ao que o star system e os grandes estúdios, outrora chamados de majors, impõem. Ainda parece ser viável, mesmo com todas as dificuldades financeiras e tentativas da indústria cultural de meter o bedelho na linha editorial da publicação, construir um espaço do pensamento cinematográfico e não simplesmente uma terra de fanáticos que só almejam a corroboração de suas expectativas. 

Ao fim deste artigo-homenagem, o que me sobra é mandar os desavisados ou desconhecedores da revista que a procurem. Vão à seu endereço na internet, fuçem, esmiuçem, leiam, releiam e principalmente: repensem tudo que acreditavam até então sobre o cinema, essa máquina inacreditável e inesgotável de produzir sonhos os mais diversos. E isso, meus caros leitores, é muito mais importante - pelo menos, para mim - do que ser fã do gênero a, b ou c. Podem ter certeza.  


segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Continue caminhando em frente


Em 2005 eu tinha 29 anos de idade e fui a um cinema no Largo do Machado para assistir ao filme R.E.N.T - os boêmios, de Chris Columbus, baseado no musical da Broadway escrito pelo dramaturgo Jonathan Larson que ficou em cartaz por 12 anos.

Quando vi o cartaz do longa na entrada do cinema achei estranho porque o diretor Columbus era uma artista envolvido mais com o universo infantil, a comédia e a aventura. Logo, não tinha a menor expectativa sobre o que deveria esperar do projeto. Saí de lá em êxtase e entrei imediatamente no google para saber mais sobre o criador da peça, que falava de um grupo de amigos portadores de HIV vivendo numa América em crise, esfacelada. 

16 anos depois, ouço falar do projeto tick, tick... BOOM!, dirigido pelo queridinho da Broadway atualmente, o diretor Lin-Manuel Miranda, e com o ator Andrew Garfield (que nos últimos anos se notabilizou interpretando o Homem-Aranha) na pele de Larson. Pensei na hora: isto não vai dar certo. 

E eu estava redondamente enganado. Durante quase duas horas de projeção me deparei com uma viagem por dentro da mente e do universo criado por Larson, um artista que infelizmente nos deixou cedo demais (o dramaturgo faleceu aos 35 anos de um aneurisma na aorta) e tinha tanta coisa a nos dizer. 

Larson vive entre o seu trabalho corrido no café Moondance e a escrita de seu primeiro espetáculo, Superbia, que participará de um workshop, visando conseguir investidores para uma futura montagem. O problema é que o seu texto não é exatamente comercial. Muitos o veem como uma ficção-científica confusa repleta de personagens um tanto nonsenses. 

A vida social de Larson não ajuda a construir um universo mais palatável à crítica. Seu relacionamento com Susan (Alexandra Shipp) está indo pro ralo, pois ela deseja sair de Nova York e vislumbrar novos horizontes e ele não imagina que sua carreira possa dar certo em outro lugar. Não bastasse isso, ele testemunha alguns de seus melhores amigos serem devastados pela AIDS, que atingiu números exorbitantes nos EUA naquele período.  

E cabe aqui um detalhe importante: Jonathan fez parte de uma geração que sentiu na pele as agruras do chamado sonho americano: o de correr atrás de um vida nova e gratificante custe o que custar, mesmo que em muitos casos ela não se concretize, não importa o quanto você tente ou arrombe a porta. 

E enquanto a fama não surge ele precisa correr de lá pra cá e de cá pra lá, à procura de músicos e atores que comprem a sua ideia, às vezes tendo que pagar do próprio bolso, para conseguir convencer as pessoas certas a patrocinarem a sua ideia. 

O dramaturgo Stephen Sondheim, criador de West Side Story e falecido recentemente, é um dos que acredita que ele não pode desistir. A jornada nunca é fácil. E mesmo a sua agente diz pra ele a frase mais autêntica que alguém poderia dizer para uma pessoa desse ramo: continue caminhando em frente, não importa o quanto digam não, o quanto tentem te derrubar. É pra frente que se olha!".

Ao fim da projeção me peguei pensando em Ed Wood, filme do diretor Tim Burton. Embora tenha ganho o rótulo, com o passar das décadas, de o pior diretor de todos os tempos, ele nunca abaixou a cabeça para aqueles que viviam dizendo nos corredores dos estúdios "você está perdendo o seu tempo aqui; isso não é pra você". Jonathan Larson passou pelas mesmas dores, o mesmo desprezo, teve todos os motivos do mundo para desistir e ainda assim seguiu em frente e fez história, contra tudo e contra todos. O único deslize dessa história é que ela não termina em happy end (o que é uma pena!) 

Se você não curte musical porque acha uma bobajada essa gente que canta e interpreta, tick, tick... BOOM! não é pra você, mas sinto muito lhe dizer. Você não faz a menor ideia do que está perdendo. Mesmo. E o rapaz que até então era apenas o Homem-Aranha deu um show à parte. 


sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Esse ritmo que é só nosso!


Que me desculpem os fãs do carnaval, dos trios elétricos, do sambódromo e do confete e serpentina, mas para mim o grande feriado nacional são as festas juninas. Adoro aquele clima de fogueiras, pé de moleque, quadrilhas dançando, canjica, quentão e outras gostosuras. Mas, principalmente, pelo prazer de ouvir o velho e bom forró. 

Engraçado que o forró nasceu meio que internacional, por conta de antigos bailes que aconteciam no país e que recebiam a visita de figuras estrangeiras (por isso, na entrada dos estabelecimentos culturais, era muito comum verem uma placa com os dizeres "for all people", ou para todas as pessoas).

Portanto, For all virou com o tempo forró. 

Aqui mesmo, em casa, se existe um artista que é ouvido quase o tempo todo, esse indivíduo é Luiz Gonzaga, o rei do baião. Certamente a frase que mais ouvi no rádio da minha tia desde que me entendo por gente foi "minha vida é andar por esse país pra ver se um dia descanso feliz". Mas não somente o Gonzagão. Elba Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Trio Nordestino e outras feras do gênero também dão as caras por aqui. 

E é com enorme felicidade - mesmo! - que leio no jornal a matéria que informa que o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) declarou o forró patrimônio cultural e imaterial do Brasil. Notícia mais justa e merecida do que essa, impossível! Ainda mais num momento em que os povos nordestinos vêm sendo tão atacados, de forma tão covarde, por um segmento alienado e ignorante da população. 

Ainda segundo a decisão, que foi anunciada pelo Ministro do Turismo a apenas três dias do Dia do Forró, o gênero musical foi considerado um "supergênero", por também agrupar outras expressões musicais típicas, como o baião, o xote e o xaxado. Achei essa especificação o máximo, porque tem muita gente no país que realmente pensa que é tudo a mesma coisa. Não é. Procurem no you tube vídeos sobre os diferentes estilos e entenderão melhor o que eu estou dizendo. 

Os artistas nordestinos - sanfoneiros, cordelistas, forrozeiros, xaxadeiros, etc - vinham aguardando esse dia há mais de três décadas, sempre esbarrando em alguma burocracia ou a falta de decisão de nossos dirigentes. Pois eis que esse momento glorioso enfim chega para a alegria desse povo tantas vezes injustiçado ao longo da história, mas que muitos não conseguem entender que sua existência se confunde com a cultura desse país.

O que seria do Brasil, de sua diversidade étnica, folclórica, cultural, não fossem figuras como Cora Coralina, Patativa do Assaré, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Raimundo Fagner, Humberto Teixeira, Ariano Suassuna, e tantos outros que me fogem à mente neste exato momento? 

Se existe uma palavra que exemplifica o nosso país como poucas, essa palavra é o nordeste. E sempre vi o forró como uma grande porta de entrada para conhecermos esse universo rico, porém doloroso; heroico, mas não menos sofrido (já bem dizia Euclides da Cunha, quando escreveu em Os sertões que "o sertanejo era, antes de tudo, um forte."). Nenhuma região do país é capaz de entender o significado da expressão "abrir mão" como o nordestino. E é justamente isso que faz deles um povo único, brilhante em suas intenções. 

Termino esta rápida homenagem em forma de texto, emocionado. Sou filho de uma baiana arretada que, infelizmente, já partiu para o andar de cima, não sem antes me ensinar o valor e poder desse povo que não entrega o ouro ao bandido de jeito nenhum. E tenho certeza que ela teria ficado muito feliz de ter lido esta notícia hoje. 

Viva o forró, esse ritmo que é só nosso. Sempre! 


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A camaleoa


Dizem os críticos de cultura que é da natureza dos artistas se metamorfosearem, transformarem-se naquilo que querem, quando querem e da forma como querem. No entanto, quando eu vejo certas figuras andróginas que são chamadas de artistas no Brasil de hoje, eu vejo o quanto esse raciocínio não funciona mais - pelo menos, com essa clareza. É nítida a falta e a carência na cultura pop nacional de nomes como Gonzaguinha, Raul Seixas, Belchior... Qualquer fã de boa música (e desde já adianto: o assunto deste artigo é música) sentirá eternas saudades dessa gente que fez e aconteceu, simplesmente porque tinha a capacidade e o talento necessários para isso.

Cássia Eller também fez parte desse grupo. Eu me lembro de quando a vi pela primeira vez se apresentando num programa de tv e de dizer automaticamente: "quem é essa mulher poderosa, de voz visceral, que arrebatou a plateia e os meus pensamentos com essa enorme facilidade? Muita gente falava que ela era complexa, difícil, antissocial. Mas, na maioria das vezes, não são assim os melhores? De concreto mesmo apenas uma certeza: Cássia varreu o chão dos palcos por onde passou com sua enorme potência vocal e sua rebeldia incontestável. E está fazendo muita falta na MPB nesse século XXI esquisito e cheio de gente que só quer saber de mandar na vida dos outros. 

Vejo a matéria no caderno cultural do jornal O Globo falando dos 20 anos da morte de Cássia Eller (não fazia ideia de que já tinha todo esse tempo!) e da homenagem que farão a ela no Prêmio Multishow de música que será transmitido hoje à noite na tv a cabo e imediatamente minha mente se transporta para o dia do seu falecimento. 

Eu trabalhava no Largo do Machado, mais especificamente no cinema São Luiz naquela época, quando ao chegar um dia para o serviço passo na Rua das Laranjeiras em frente à uma modesta clínica e vejo uma multidão de pessoas segurando faixas e cartazes com o nome da cantora. Me peguei completamente perplexo porque no noticiário da manhã nenhuma emissora havia informado que a cantora estava internada. Vejo gente chorando por todos os lados, sentados perto de um posto de gasolina que ficava ali perto. 

Passo em frente, andando em ziguezague por entre os fãs inconsoláveis, chego ao cinema, assumo meu posto e o dia transcorre como todos os outros anteriores. Por volta de umas três, três e meia da tarde, fico sabendo que Cássia faleceu. E aquilo me entristece na mesma hora. Ela era, naquela momento, pelo menos para mim, a cantora mais representativa do país. Seu maior sucesso da carreira, o cd MTV Acústico, estava ainda estourado nas paradas de sucesso. E o público, sempre ensandecido em suas apresentações, acompanhava junto, comprava sua briga onde quer que fosse. 

Como esquecer da cantora que em plena apresentação no Rock in Rio exibiu ao público, com toda coragem e ousadia que lhe era pertinente, os seios, numa prova cabal de que não tinha nada a temer a ninguém? Naquele exato momento ela disse a todos que estavam ali, mais o que assistiam ao festival pela tv: "eu sou isso aqui e ninguém na face da terra vai me mudar!". Grande Cássia!

Ela virou a trilha sonora da minha vida. Onde quer que eu fosse ou se estivesse em casa escrevendo, lendo, fazendo o que quer que seja, estava ouvindo "Por enquanto", "Malandragem", "E.C.T", "Vá morar com diabo" (música de Riachão que não podia faltar em seu repertório), "Relicário", "1º de julho" (canção que Renato Russo escreveu para ela na época do nascimento do seu filho, Chicão). Uma voz que ia de Nirvana à Edith Piaf com a mesma naturalidade, o mesmo vigor. 

De sua discografia punk, poderosa, mas que sabia suavizar quando necessário, tenho uma admiração toda particular por Cássia Rock Eller, no qual ela viajou de Jimi Hendrix à Legião Urbana, passando por Barão Vermelho e Cazuza, com toques suaves de Arrigo Barnabé e, claro, Rolling Stones. Quem não conhece o álbum, não sabe o que está perdendo. 

Também recomendo o documentário homônimo do diretor Paulo Henrique Fontenelle (o mesmo do também extraordinário Loki, sobre o cantor Arnaldo Baptista) cheio de imagens de arquivo inebriantes e entrevistas fortes, contundentes, invadindo até mesmo a vida sexual da cantora. 

A chamada para a exibição do show MTV Acústico na emissora dizia tudo o que você precisava saber sobre Cássia em poucas palavras: "ela é pop; ela é rock; ela é rap; ela é fúria...". Sim, ela era tudo isso e muito mais. Cássia Eller foi a grande camaleoa da MPB daquele final dos anos 1990, capaz de se mimetizar da forma como queria, enfrentando tudo e todos, seja por sua opção sexual, seja por seu gosto eclético. Como bem disse Oswaldo Montenegro no documentário de Paulo: "ela uniu a classe artística, do forró ao funk, do sertanejo ao rock". Ela era tudo, todos, o isso, o aquilo e o algo mais. 

E que saudades - Meu Deus! - essa mulher vai deixar na nossa música. Nunca mais deixaremos de ser órfãos daquela moça feroz que dizia "quem sabe ainda sou uma garotinha", mas no fundo não parava quieta, porque não conseguia, Não era da natureza dela ser comum.


sábado, 4 de dezembro de 2021

O Brasil de poucos


Muita gente vai negar - e brasileiro adora negar tudo! - mas a pandemia da Covid, que vem nos assolando desde 2019, desnudou muita coisa que vivia sendo varrida para debaixo do tapete. A única coisa que, infelizmente, todo esse processo devastador não ensinou foi a transformar a classe abastada desse país em pessoas melhores. E em certos sentidos acho até que eles pioraram consideravelmente. 

Entretanto, para a nossa felicidade, ainda existem pessoas (e eu me refiro a artistas) que decidiram falar contra essa gente e sua eterna mania de se acharem mais importantes ou indispensáveis do que o restante da sociedade. Foi exatamente essa a sensação que eu tive ao terminar de ler a HQ Confinada, da dupla Triscila Oliveira (responsável pelo roteiro) e Leandro Assis (desenhista). 

O projeto, que nasceu como uma série de tirinhas publicadas no perfil do instagram de Leandro, desnuda de forma feroz a relação entre patroas e empregadas durante o período de isolamento da pandemia. E acreditem: o nível de deboche, sarcasmo e prepotência é feroz. 

Acompanhamos a vida vazia de Fran, uma influenciadora digital, moradora da zona sul carioca, que mais parece um livro de auto-ajuda do que um ser humano, tamanha a quantidade de asneiras e alienações que fala e vende em seus vídeos positivistas. Ela é a favor da cultura good vibes, de ver sempre a melhor perspectiva para tudo e acredita piamente na meritocracia. O que ela não conhece é o mundo real ou o das pessoas que não vivem sob o mesmo status que ela. Como, por exemplo, sua empregada Ju.

Na verdade, ela tinha três empregadas (como se todas elas fossem realmente necessárias), mas duas delas, Dinah e Marli, decidem se afastar do trabalho para cuidar de suas famílias - e bem fazem elas! Ju decide ficar, pois tem filhos pequenos para criar e faz um acordo financeiro com a patroa que seja interessante para ela, mas sabe que essa não será uma tarefa nada fácil. 

Como pano de fundo para construir essa narrativa seca, difícil de engolir, mas necessária, temas como desigualdade, racismo, classismo, intolerância religiosa, injustiça e o que mais você puder imaginar desde que o atual governo assumiu o país nos últimos anos, propondo uma pauta "conservadora".

Tudo de mais recente que tenha ganho destaque na mídia nos últimos tempos é esmiuçado aqui, seja de forma breve ou mais aprofundada. A questão do ensino online durante o período em que as escolas permaneceram fechadas, o desprezo à figura das mulheres paraíbas, a mania corriqueira de chamar quem pensa diferente da elite de comunista, pessoas que não respeitam o isolamento e chamam a doença de uma reles gripe, etc etc etc. 

Enquanto estava disponível apenas no instagram, as tirinhas de Leandro e Triscila mobilizaram mais de 750 mil seguidores, que tiveram paixões e ódios despertados com a mesma intensidade (e teve, sim, gente defendendo Fran como uma mísera incompreendida). E foi dessa mobilização internética que nasceu o interesse de transpor o trabalho para o material impresso, feito conseguido junto ao crownfunding.

Ao final da leitura, que é asfixiante de tão real e mordaz, o que Confinada nos oferece é um retrato vivo desse Brasil de poucos, que se acham autossuficientes e não se importam com nada que não seja o próprio umbigo ou a vaidade. 

E quanto ao futuro? a depender deles, os brancos privilegiados, de preferência que não haja favelas, cotas universitárias e direitos trabalhistas para todos, nem gente para roubar o que é deles por direito. No máximo, serviçais. E está de bom tamanho. 

(Breve, mas necessária nota: eu já imagino a quantidade de gente que vai ler este artigo e me detonar. Vão me chamar de esquerdopata e dizer que eu estou romantizando a pobreza e tudo. Mas, mesmo assim, falem. Fiquem à vontade para detonar. Isto aqui pode não ser um país sério, mas ainda é uma democracia).