Dentre os gêneros cinematográficos mais comerciais o chamado filme-catástrofe, no meu entender, é aquele que as pessoas menos estão interessadas em perceber as entrelinhas. Elas ficam, em sua grande maioria, tão fascinadas com as cenas de destruição e morte, que esquecem de todo o resto. Toda a polêmica que também se encontra muitas vezes ali, diante de seus olhos, tão visível que chega a doer, não importa. Eles, os espectadores, preferem os efeitos especiais, o CGI, o exagero promovido pela adrenalina. E que se danem as denúncias sobre o mundo contemporâneo e a sociedade falha, torta, vil.
E quando vivemos numa era repleta de negacionismos e extremistas os mais diversos, essa interpretação fica ainda mais prejudicada, pois eles, os que negam, só olham para o seu próprio umbigo, desdenham de qualquer outra verdade que não seja a sua, complicam todo o processo. Só estão interessados na sua própria vaidade ou prepotência. Não olhe para cima, novo filme do diretor Adam McKay - de longas que misturam o humor ácido com a crise política como poucos, não necessariamente agradando a todos os públicos - sofre desse dilema. Digo mais: acredito que de todos os filmes dele é o que mais sofre desse dilema, ainda mais no mundo de hoje, apegado em demasia à idiotice. Mas caso você não pertença à essa classe, sugiro que dê pelo menos uma olhada.
A cientista e doutoranda Kate Dubiasky (Jennifer Lawrence) descobriu em uma de suas observações a trajetória de um cometa e passa suas informações para o seu professor, o Dr. Randall Mindy (Leonardo Dicaprio, naquele que eu considero o personagem mais surtado de toda a sua carreira). Ele analisa os dados e tem como resposta que ele, o cometa, está em rota de colisão com o planeta terra, e o atingirá num prazo um pouco maior do que seis meses. Perplexos com a notícia, decidem avisar a Casa Branca. E é justamente nesse momento que começa de fato o maior dos seus problemas.
Imaginem que o mundo fosse acabar daqui a metade de um ano e você descobrisse que as pessoas só estão de fato interessadas no quanto irão ganhar com essa notícia ou com o abafamento dessa notícia. Esse é o mote do nosso filme. Um adendo: não é de hoje que a própria humanidade transformou a discussão sobre o fim do mundo numa grande piada de humor negro. Vide aquela história da profecia maia de que o mundo acabaria em 21 de dezembro de 2012 (que virou até filme babaca do Roland Emmerich, de Independence Day). E qualquer debate depois disso perdeu completamente a relevância.
A Casa Branca debocha dos cientistas (chega, inclusive, a explorá-los). A imprensa debocha dos fatos descobertos pelos cientistas. A sociedade debocha dos cientistas. Pior: os transforma em memes, em loucos, em surtados. Até mesmo o namorado de Kate entra na onda e termina com ela via mensagem de texto. Sim, é louco, eu sei... Mas o problema é que o mundo como nós conhecemos também já enlouqueceu faz tempo. A gente é que simplesmente não percebeu e prefere a piada barata à certeza dos fatos. É mais fácil acreditar na zona de conforto produzida pela ignorância. Por sinal, cabe aqui um aparte: que me perdoe quem pensa o contrário atualmente, mas a ignorância virou um fenômeno global de alta rentabilidade.
Não olhe para cima está repleto de tipos sociais os mais macabros possível, e ainda assim os achamos divertidos, fofinhos, inofensivos: a presidente dos EUA - vivida de forma impecável por Meryl Streep - é o retrato da bestialidade em forma de gente. Não é à toa que na grande nação atualmente tem gente até invadindo o capitólio e exaltando Hitler! O filho da presidente e seu chefe de gabinete é o estereótipo da futilidade e da arrogância, aquele tipo de indivíduo que realmente acredita ser a pessoa mais indispensável do mundo. A âncora feminina do telejornal mais assistido pela América não passa de uma ninfomaníaca gostosona. O guru que alimenta o desejo de milhões com seus celulares de última geração enquanto acredita piamente que algoritmos decidirão o seu futuro e o da civilização como um todo tem interesse na não-destruição do cometa, pois ele possui componentes capazes de aumentar ainda mais o seu patrimônio. E a musa pop do país é uma figura tatibitate que está mais interessada no fim do seu relacionamento amoroso efêmero do que na extinção do planeta.
Acharam pouco? Isso é só a ponta do iceberg, já que o contexto geral piora - e muito!
Some a essa catarse humana de idiotas e irresponsáveis o mau uso da tecnologia, à serviço da mentira e da leviandade, a polarização que vai crescendo no país à medida que os dias passam e a chegada do cometa vai se tornando mais iminente e até mesmo a corrupção de um dos cientistas que descobriram o problema a esse sistema cruel e diabólico e pronto: estamos literalmente testemunhando o fim dos tempos. E olha que o mundo nem precisava ser de fato atingido por nada. Nós já tínhamos estragado tudo muito antes, com nossa falta de tato e caráter.
Coisa de uns 15 anos atrás assisti no cinema um longa chamado Idiocracia, de Mike Judge. Nele, me deparei com a história de Joe Bauers (Luke Wilson), escalado para um projeto ultrassecreto no Pentágono que envolvia sua hibernação. Ele acaba esquecido por cinco séculos e ao despertar da câmara, se depara com uma civilização completamente burra que decidia, até mesmo, seu modelo eleitoral da maneira mais estúpida e infantil. Acreditem: a sociedade era tão artificial e desnecessária, que se eu vivesse naquele lugar provavelmente teria tirado a minha própria vida, por acreditar que a morte nesse caso seria mais interessante e honesta.
Hoje, depois de assistir o longa de McKay, vejo que a sociedade - tanto a ficcional quanto a do mundo real - virou Idiocracia. E não só encaramos isso com a maior naturalidade, como nos orgulhamos disso. É só olhar os tabloides, as conversas de bar, ouvir as pessoas falando nas filas dos bancos, dos cinemas, dos supermercados. O mau gosto, o atroz, o fútil, virou o tema do momento. E ele viraliza e ganha fama com uma facilidade assustadora.
Ao fim, o legado que me fica dessa experiência audiovisual é: ufa! como é bom não fazer parte dessa geração alienada e que se pavoneia de si o tempo todo. Ah! Vi muita gente na internet detonando o longa, usando como desculpa a seguinte afirmação: se esse filme estivesse afim mesmo de denunciar alguma coisa o diretor não teria escolhido a comédia como o gênero dele. Não, meus amigos! Se teve um ponto no qual o McKay acertou de fato, foi esse.
O mundo já não é mais um lugar sério há muito tempo. Mas muito, muito tempo!
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