segunda-feira, 27 de maio de 2019

Nem tudo é o que parece


É difícil precisar o que é real neste mundo contemporâneo. E em se tratando de um país como o Brasil, que nunca teve uma boa relação com a palavra verdade, preferindo ficções e mentiras sinceras, este conceito torna-se ainda mais abstrato, vago. Contudo, provocador que sempre fui (e não acredito num mundo à base de fantasias) continuo procurando a realidade por todos os lugares onde ando, mesmo que em meio a uma sociedade que prefira viver de olhos fechados ao que realmente acontece ao seu redor. 

Dito isto, foi com enorme prazer que adentrei o Centro Cultural Banco do Brasil neste último final de semana para ver a exposição 50 anos de realismo - do fotorrealismo à realidade virtual

O grande mérito da mostra, a meu ver, foi o de mostrar nuances disso que chamamos corriqueiramente de realidade ao longo dos séculos. Afinal de contas, a sociedade não foi sempre baseada em reality shows e inteligências artificiais. Houve um tempo - acreditem os mais jovens, se quiserem! - em que precisávamos enxergar o mundo com nossos próprios olhos. E não haviam showrunners, algoritmos de produção ou neurociência pautando a agenda e os costumes da sociedade civil (como hoje em dia). 

E o resultado desta equação que envolve desde o passado glorioso  permeado por pinturas clássicas (e nesse sentido, ver a tela magistral de Goya que virou capa do álbum Viva la vida do grupo Coldplay foi uma grata surpresa) até fotos modernas inebriantes de grandes metrópoles, foi enriquecedor em todos os sentidos. Sejam eles imagéticos ou sociais.

Cabe aqui, de minha parte, um elogio em especial para as esculturas exibidas (honestamente, a melhor parte do acervo). O menino que atira pedras nos espectadores, a mulher desnuda, o garoto com a capa de super-herói são mostrados de forma tão viva que, por um momento, pensei tratarem-se de pessoas reais fazendo vitrine viva. E certamente esta foi a intenção de seus artistas.

E ao pensar na palavra viva percebo o quanto o real está presente na exposição em pequenos detalhes: nas pontas de lápis, no quebrar das ondas na praia, no sorriso da modelo, no cume da montanha, no close nas frutas, etc...

O problema, entretanto, é que as novas gerações (leiam-se: os adolescentes nerds) não conseguem entender, por mais que tentem, quando tentam, a grandeza naquilo que à primeira vista parece simples. Eles precisam, ao contrário deste que vos escreve este artigo, de imagens grandiosas, sensacionais, retocadas por photoshop ou pelos efeitos especiais de hollywood. Não à toa a franquia dos Vingadores, criada pela Marvel Comics, tornou-se a religião dessa gente, empobrecendo o que havia de mágico na sétima arte, hoje relegada à bilheterias astronômicas e continuações óbvias. 

Entre outras palavras: não há espaço na atual "realidade" do mundo (e as aspas aqui são propositais) para qualquer outra coisa que não represente ou emule o extraordinário. Ser comum ficou enfadonho, daí a necessidade do fantástico, do sobrenatural em nossas vidas (quer dizer: na vida dessas pessoas "acima da média"). Prova viva disso foi o meu desinteresse em usar os óculos 3D para vislumbrar o que essa gente chama de futuro. 

Se o futuro é isso, cá entre nós, morrerei nostálgico. 

Que 50 anos de realismo sirva de legado às próximas gerações. Que elas sejam mais sábias e mentes abertas do que a atual humanidade vigente, que carece dia a dia de valores, de ética, de respeito ao próximo, ao que passou e deixou ramificações em nossa sociedade. 

Entender o real não é uma questão de querer transformá-lo ou corrigi-lo e sim de compreendê-lo em suas mínimas diferenças à medida que os séculos passam e a humanidade se desconstrói. "E não temos a obrigação", parece-me dizer a todo momento a mostra, "de repaginar o ontem ou o hoje segundo nossos próprios interesses". 

Resta agora fazer os seres humanos deste século XXI que acabou de começar entenderem isso! 


segunda-feira, 20 de maio de 2019

Em nome da moral e dos bons costumes


Nunca me casei e honestamente, a esta altura da vida, não me vejo neste "personagem". Contudo, vejo na desconstrução da relação um importante tema a ser debatido por dramaturgos, cineastas, ficcionistas, mesmo artistas plásticos. Há algo no casamento que o torna - palavras minhas, sintam-se livres para discordar! - uma grande faca de dois gumes. "Há de se ter paciência, meu filho", dizia minha mãe sempre, "muita paciência!". E é dessa, por vezes, falta de paciência na hora de administrar dissabores entre o casal, que nascem grandes embates e reviravoltas. 

Esta semana deparei-me com a enriquecedora surpresa de ver a peça Moléstia, primeiro texto do jovem e promissor dramaturgo Herton Gustavo Gratto, em cartaz aqui perto de casa. E o melhor: entrada franca. Corri para a bilheteria com a certeza de que já havia chegado tarde demais, mas acabei privilegiado com um assento. "Os deuses do teatro sorriram para mim", pensei comigo feliz. Sorriram mesmo. 

Moléstia é a primeira grande encenação teatral com a qual me deparo neste ano e é fácil entender o porquê: ela não se esconde atrás de subterfúgios babacas e estereótipos manjados (coisa que o nosso teatro tem feito muito nos últimos anos!). Pelo contrário... Ela vai direto num ponto que está mais do que visível na atual e polarizada sociedade: nunca tivemos tanta dificuldade para conviver entre nós mesmos, digo, a espécie humana. 

O texto de Herton conta a história do casal Mabel (Camila Moreira) e Breno (Felipe Dutra) que vive aquele momento do relacionamento em que a palavra casal não passa de um conceito abstrato, vagando em meio a sucessivas e desgastantes discussões que não levam nem um nem outro a lugar algum. Ele é um bon vivant notório, enquanto ela é filha de um influente político e só pensa de fato no nome da família tradicional e no quanto ela pode sair manchada ao sinal de qualquer mínima tragédia; Para complicar ainda mais o cenário, ambos têm um filho, Thiago, autista, que requer cuidados especiais a todo momento. 

A chegada do amigo Cadu (Ciro Sales), ex-namorada de Mabel e colega de infância de Breno, aumenta ainda mais a tensão sexual entre ambos. Há uma série de vazios existenciais óbvios correndo entre as conversas corriqueiras, mesmo as mais banais. E este quase triângulo amoroso ainda por cima esconde uma outra obscura realidade: Cadu muda de cidade por conta de um crime ao qual foi supostamente condenado e deseja recomeçar a sua vida. Vê na ajuda do casal de amigos uma chance de deixar o passado para trás. Contudo...

Com a notícia de que o filho foi abusado sexualmente na escola onde estuda e ainda por cima pelo amigo de infância (para quem arranjaram o emprego) uma avalanche de sentimentos, ódios e desavenças reprimidas nos últimos anos vêm à tona. Breno acredita que tudo não passou de uma vingança de Cadu por não ter ficado ele com Mabel. Já a madre superiora do colégio (Deborah Figueiredo), quando fica sabendo do histórico passado do professor exerce o papel do estado totalitário, opressor, que deve condenar o culpado antes mesmo de julgá-lo. E o principal: lacunas que sempre foram mantidas ocultas na vida do casal e dos três amigos como um todo são desmascaradas. 

Há um elemento interessante que compõe cena com o elenco. Refiro-me a utilização de câmeras, que são manuseadas por todos os atores do elenco, e suas imagens mostradas num telão no palco. É essa câmera, que passeia de mão em mão, que escrutina os olhares e comportamentos dos personagens, invade privacidades, intima os medrosos a assumirem a culpa, exige verdades de parte a parte de forma contínua e incômoda. Em alguns momentos da montagem minha mente se pegou pensando no cinema de Ingmar Bergman, sempre intrusivo. Ele certamente teria adorado a peça. 

E as luzes, que dão o tom de mudança do tempo presente para o tempo passado, também proporcionam ao espectador um sentimento legítimo de claustrofobia necessário para entender as intenções maquiavélicas de cada personagem. Sim, maquiavélicas. Há muito o que se esconder naquele clima insalubre, evasivo.  

O diretor, Marcéu Pierrotti, vê no espetáculo - e eu concordo com ele - um grande "jogo de acusações", onde todos podem ser culpados, mesmo que por omissão. Lembrei-me da época em que, ainda adolescente, devorava os romances de Agatha Christie um depois do outro, tentando descobrir quem assassinara a, b ou c. O clima presente aqui era o mesmo. 

Ao final da encenação, o elenco chama o público para uma conversa franca e convida para o debate a psicóloga Sandra Levy, e alguns espectadores vão às lágrimas, abrem o jogo sobre o seu próprio passado, refletem sobre as escolhas de vida que os trouxeram até aquele exato momento de suas vidas. Eis o grande barato que somente o teatro é capaz de proporcionar: a catarse. Só pelo bate-papo já valeu a minha quinta-feira. 

Chego em casa pleno, em êxtase, mas ao mesmo tempo preocupado com os dias que virão neste país mais do que confuso e cheio de ódio dos dias de hoje. Nunca se xingou tanto em nome da família ou de Deus. E perdemos a noção do que é realmente ético em nome de aparências e efemeridades. Moléstia, mais do que simples teatro ou ficção, é a sociedade rugindo, em frenética ebulição. Aquilo que chamávamos outrora de humanidade agora não passam de animais de combate lutando por migalhas de afeto. E isso tudo é não só muito triste, mas também covarde, extremo. 

E não acredito que construiremos nada à base de extremismos. Mesmo que disfarçado de moral e de bons costumes. 

sábado, 11 de maio de 2019

Veneramos monstros


Volta e meia eu me pergunto se os artistas musicais de quem eu gosto são realmente flor que se cheire, se são aquilo que vendem para o público. E em muitos casos me desaponto com a resposta ou fico aterrorizado. E vocês, meus caros leitores, que acompanham meus devaneios e desabafos narrativos. fazem isso também? Pois deveriam. Urgentemente.

Vivemos uma era difícil em termos musicais. A todo momento são ofertadas ao público fraudes musicais aterradoras, artistas que não merecem sequer o rótulo de artistas, pois o que realizam é difícil de catalogar como arte. E mais assustador ainda: são aplaudidos, ovacionados por isso. Eu sei que vai ter muita gente que ficará puta com este parágrafo, mas não dá para fingir. Pioramos - e muito! - neste segmento. Aliás, em muitos outros também. 

Mês passado me deparei com um filme que me deixou ainda mais estarrecido sobre o tema. Tanto que levei este tempo para expôr minhas impressões sobre o projeto. Trata-se de Vox lux: o preço da fama, de Brady Corbet. E só para constar um fato curioso: desde Precisamos falar sobre o Kevin, de Lynne Ramsay, não me deparava com algo tão macabro (e profundamente verdadeiro) sobre a sociedade contemporânea. 

Vox lux conta a história de Celeste que, ainda adolescente, sobreviveu a um atentado no colégio onde estudava (observação: ela namorava o responsável pela tragédia). Durante o funeral em homenagem às vítimas, incentivada pela irmã mais velha que achava sua voz bonita, canta uma música inspiradora, repleta de fé e esperança por um futuro melhor. Pronto. Estava criado o terreno para que a inescrupulosa indústria fonográfica transformasse a jovem num ícone pop. 

A artista que Celeste (vivida em duas fases pela jovem Raffy Cassidy e pela ótima Natalie Portman) se torna não difere em nada de invenções musicais na linha de uma Britney Spears, Rihanna, Sia e outras "divas". Ela não é a compositora de suas próprias canções, não canta ao vivo, e fomenta - e enriquece - ao seu redor uma entourage de abutres, capitaneados por seu empresário arrogante e impulsivo (vivido pelo ator Jude Law). E importante que se diga: exibe a arrogância e o desdém típicos de quem costuma fazer sucesso sem realmente ter mérito algum. 

A trama ganha uma retomada insólita quando, após gravar um novo videoclipe, quatro jovens usando a mesma máscara que ela utilizara no vídeo, fazem uma chacina numa praia, tirando a vida de milhares de pessoas, e Celeste é indagada sobre sua responsabilidade na tragédia e os limites de fazer uma arte vazia, voltada ao lucro e ao hedonismo. 

É nesse momento que meu cérebro me transporta da tela do cinema para o mundo real e me pego refletindo acerca dessa nova geração musical vigente. Lembro-me de ter visto tempos atrás uma entrevista com o escritor Paulo Coelho em que ele defendia a questão do gosto musical como uma "escolha que variava de geração para geração". Muitos, dizia ele, não veriam nada nos Beatles nos dias de hoje pelo simples fato de que não viveram o auge da beatlemania. Portanto, se sentiriam deslocados ao falar sobre a banda ou mesmo idolatrá-la. Faz sentido até certo ponto. 

É bem verdade que não posso exigir das novas gerações a mesma percepção que eu tenho até hoje sobre a banda Queen ou Renato Russo. Não seria sequer justo. Entretanto, acredito que essa adolescência atual precisa rever seus conceitos. Principalmente o papel dos seus ídolos dentro do mundo em que estamos (sobre)vivendo dia a dia. 

É visível a cultura blasé e afrontosa reinante no mundo pop de hoje. E em alguns aspectos até criminosa. Fico pensando com meus botões toda vez que assisto um clipe de artistas como 50 cent, Kanye West, Justin Bieber, Tupac Shakur, entre outros, que tipo de gente dá status de celebridade a esse povo arrogante, às vezes oriundo de um cenário marginal, que nada acrescenta ao planeta terra bem como aos seus respectivos países. 

Fico possesso quando penso nisso.

A billboard, é triste afirmar isto, está repleta de Celestes. Pessoas vazias que chegaram ao sucesso por um caminho, digamos, tendencioso. E nós, fãs acéfalos, estamos venerando monstros ideológicos da pior espécie. E orgulhosos de nossas criações. Dizer "até quando?" já não responde mais a esta questão incômoda. É preciso acordar, antes que sejamos engolidos por nossas próprias más escolhas. 

P.S: o único revés neste artigo e que, infelizmente, produções como Vox lux não são exibidas num circuito maior. Elas ficam fadadas à pequenos nichos, públicos segmentados. E isso é proposital, pois o importante é alienar as massas com filmes de super-heróis e franquias babacas. Isso também precisa mudar! Nem sempre o espectador quer só pão e circo.

sábado, 4 de maio de 2019

A madrinha do samba


Roberto Cabrini, jornalista responsável por dar em primeira mão o anúncio do falecimento do piloto de fórmula 1 Ayrton Senna há 25 anos, estava certo: tem certas notícias que não gostaríamos de dar. De jeito nenhum. Porém, como às vezes não tem outro jeito...

Pois bem: na última semana o mundo do samba perdeu Beth Carvalho. E mesmo aqueles que não são amantes do gênero sentiram o golpe. Beth foi uma mulher como poucas na história da MPB e, cá entre nós, não me recordo de tê-la visto na boca da mídia por más notícias e escândalos (coisa muito natural nos dias de hoje, que preferem promover artistas de plásticos, posturas arrogantes e produtos baratos para atender a um mercado efêmero!). 

Beth era conhecida como a madrinha do samba e seus afilhados, assim como ela, tornaram-se também notórios com o passar do tempo. Que o digam Zeca Pagodinho (o mais famoso deles), Diogo Nogueira (filho de, para mim, um dos maiores nomes que o mundo do samba já teve: o eterno João Nogueira), Dudu Nobre, dentre tantos outros. E mesmo quem não foi amadrinhado pela eterna musa do samba, reconhecem publicamente sua admiração e referência em suas carreiras. 

Alguns dividem a importância de Beth entre ela e Dona Ivone Lara, outro pilar fundamental do samba e da música brasileira em geral. Ambas eram geniais no que faziam e não cabe a este mísero autor de esquina escolher uma dentre as duas como "a melhor" (as aspas aqui já falam por si só). Sempre considero certos debates insignificantes, quando não melodramáticos em excesso. 

Ver na televisão o funeral da cantora ao som de fãs e amigos extasiados cantando seus maiores sucessos me fez lembrar de uma história pessoal: minha irmã, quando realizou a formatura de graduação, escolheu como música tema para sua entrada no palco a canção "Coisinha do pai", uma homenagem à nosso pai então recém-falecido, que vivia chamando-a assim. Ao vê-la cruzar o corredor, o rosto coberto de lágrimas, para receber seu diploma, imaginei o mundo de Beth Carvalho, mais do que isso, a cantora embaixo da tamarineira do Cacique de Ramos numa descontraída roda de samba. Ela certamente teria adorado a homenagem (bem como meu pai). 

Porém, Beth não foi só a coisinha do pai. Não, ela também fez andanças por todos os bairros, avisou que camarão que dorme a onda leva, foi festejar até o raiar do dia, subiu 1800 colinas (mais até), viu caírem as folhas secas, cantou a tristeza e muito mais. E tudo isso muito bem acompanhada pelos bambas com quem compartilhou uma era de ouro (Almir Guineto, Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Sombrinha, Leci Brandão, etc etc etc e haja etc).

Suas paixões primordiais: a Estação primeira de mangueira - com quem algumas vezes se desentendeu, mas faz parte: amor é assim mesmo! - e o Clube de Regatas Botafogo. Por sinal, seu funeral foi lá, na sede da estrela solitária. Seu modus operandi para viver: alegria, muita alegria. 

Numa recente entrevista para o apresentador Pedro Bial, Zeca Pagodinho contou-lhe da visita que fez à madrinha e da grande festa que realizaram no quarto onde estava internada. Beth era isso. Não tinha tristeza, mesmo quando a barra pesava. 

Quando trabalhava no cinema dentro do Shopping Fashion Mall, em São Conrado, volta e meia ela aparecia nos corredores acompanhada da filha (isso bem antes dos problemas recorrentes que teve na coluna na última década). Sempre sorrindo e dando autógrafos. E gostava de entrar nas últimas sessões, disfarçada, para não chamar a atenção, não atrapalhar o filme. 

Em contraste a isso, foi uma enorme tristeza ver essa mulher guerreira fazendo seu show deitada num sofá. Por mais sobrevivente à dor que ela fosse, por maior que fosse o seu desejo de dar prosseguimento à carreira (e isso por si só é louvável), era inevitável pensar que o fim estaria próximo. Eu disse fim? Não. A passagem. Não existe fim para mulheres como Beth Carvalho. 

Certamente a esta hora Beth canta no outro plano existencial. Deve estar ganhando aplausos até de São Pedro. Vai com Deus, diva! 

Porque aqui embaixo você matou a pau.