quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Baratas (uma crônica)


Essa semana me peguei fazendo uma retrospectiva desse caótico ano de 2018 e também pensando sobre o começo dos tempos. E cheguei à irônica conclusão de que nada é mais antigo - e digo isso levando em consideração até mesmo o Big Bang que, dizem os cientistas, deu o pontapé inicial ao mundo - do que as baratas. Sim. Foi isso mesmo que você leu. 

As baratas, dizem as más línguas (ou seriam as boas? enfim...), chegaram ao planeta terra bem antes dos dinossauros, e há quem jure de pés juntos que elas estarão por aqui para todo o sempre, podendo sobreviver até mesmo a um explosão nuclear. Danadas, não? 

Muitos não conseguem entender a fama delas. Na prática, não fazem nada de muito útil para o bem estar social. São conhecidas por deixarem algumas mulheres (eu disse algumas) amedrontadas, e são asquerosas e inconvenientes por natureza. Contudo, tornaram-se famosas na literatura, graças à Kafka (que transformou o Gregor Samsa de A metamorfose no vil e nojento inseto) e Clarice Lispector, e no cinema (não sei se alguém por aqui já assistiu ao longa Joe e as baratas, da MTV Films; caso não, vejam. É hilário!). E por conta disso, ganharam status em alguns grupos sociais de cult, dignas de serem estudadas. 

As baratas poderiam ser grandes comediantes de stand up, pois conhecem o mundo como poucos, e tem uma poder de observação único (matéria-prima indispensável para humoristas e artistas em geral). Deveriam ter direito à voto nos pleitos eleitorais, pois estão sempre presentes nos meandros sórdidos da política, testemunhando as mais terríveis práticas desse sistema mórbido. Entretanto, elas preferem essa vida corriqueira, comezinha, banal. E querem saber? Bem fazem elas, porque de problemas e insatisfações o mundo anda cheio. 

Há também o viés adjetivo e substantivo da palavra. A conotação barata no sentido de "preço baixo" já deixa claro o reles valor que essas criaturas têm para a espécie humana. E há inúmeros seres parasitários e inescrupulosos que merecem o estigma de serem comparados a elas. Só aqui no bairro onde eu moro é possível ver baratas clássicas, na melhor expressão do termo. Uma pena é que não há nos arredores a mesma quantidade de empresas dedetizadoras. Pois barata em excesso faz mal. 

E por falar em excesso, baratas são coletivas em demasia. Lembro-me da primeira vez em que vi uma turma gigantesca delas saindo de um bueiro. E digo mais: elas pareciam estar confabulando algo maligno. Digo isso porque olhavam para mim de um jeito estranho, dissimulando. Acreditem! Era novo naquela época, mas temi pela minha vida. 

Com a chegada do século XXI elas se sofisticaram, aprenderam a resistir ao mais intensos inseticidas, criaram bandos e galeras distintos, decidiram não andar mais sozinhas. O mundo, meus amigos, de fato anda muito violento. Até mesmo para elas. Então, por que não evitar chinelos, sandálias, sapatos, jornais e raquetes elétricas? (sim, não são só as moscas e mosquitos que sofrem na mão desse instrumento inovador).

O que leva um criatura outrora tão repulsiva a ganhar contornos de estudo de caso, chegando a ser defendida até mesmo por setores da sociedade protetora dos animais? Confesso minha falta de argumentos e respondo na lata: não sei. Mas gostaria de saber. Afinal de contas, elas sobreviveriam a quase tudo (digo quase, pois ninguém sobrevive ao fim do mundo. Fora isso...) e não me custaria nada aprender a língua das malditas para conhecer seus truques e mecanismos de defesa. Podem me chamar de maluco, mas vivemos tempos de guerra nas ruas. E uma ajudazinha nunca é demais, não é mesmo?

Concluo esta crônica ciente de que deveríamos saber mais sobre as outras espécies que coabitam conosco no planeta, sejam elas vistas com maus olhos ou não. Baratas são sobreviventes de séculos de batalhas, que viram de perto a humanidade se autodestruindo e ainda assim mantiveram a cabeça fria e aprenderam que "viver um dia de cada vez" não é mero clichê ou frase óbvia de diálogo de novela ou roteiro de cinema. 

Não, meus caros, leitores! Quer gostemos ou não de ouvir, elas estão por aí há mais tempo do que nós e conhecem as regras do jogo bem melhor do que nós. Portanto, vê-las como adversárias ou inimigas é, no mínimo, um grande equívoco. 

(Nota: desde já deixo aqui meu agradecimento à escritora Cláudia Tajes, cujo livro Só as mulheres e as baratas sobreviverão, inspirou este texto).

domingo, 23 de dezembro de 2018

A magia ainda não acabou


Não entendi a parcela da crítica de cinema dos jornais que disse que o filme O Retorno de Mary Poppins, continuação do clássico da Disney de 1964, apesar de divertido e visualmente apaixonante, é a prova viva de que a magia do gênero se perdeu. Discordo em gênero, número e grau. 

Na verdade o que vem acontecendo nos últimos anos em hollywood é um festival de remakes e spin-offs desnecessários e feitos para se tornar caça-níqueis num período absurdo de tempo. Contudo, é louvável o esforço de diretores como Rob Marshall em interpretar grandes clássicos desse mesmo cinema. 

Nos últimos anos a Walt Disney Pictures vem reapresentando ao público suas animações clássicas em forma de longametragens live action bem como trazendo projetos do passado em versões, digamos, mais sofisticadas, para atender não somente aos saudosos da época em que o estúdio era a única referência no setor, bem como novas plateias. Prova disso são as versões atualizadas de Mogli, A bela e a fera, Malévola (que traz a bruxa má como protagonista), Christopher Robin (que traz a história do Ursinho Pooh sob o viés de Cristóvão numa versão adulta) e tantos outros. 

Porém, a priori, com O Retorno de Mary Poppins, a tarefa parecia mais complicada, tendo em vista a difícil tarefa de substituir a dupla Julie Andrews (atriz que marcou minha infância de forma ímpar) e Dick Van Dyke. Pois bem: Rob Marshall - que já enveredara pelo musical com Chicago, vencedor de 6 Oscars - traz Emily Blunt para assumir a árdua tarefa de interpretar a protagonista e decide seguir a cartilha clássica do gênero, sem abusar de invencionices estéticas (algo que nos últimos anos vem estragando muitos projetos até então alardeados como boas promessas). 

Os filhos de Gordon Banks, Michael (Ben Wishaw) e Jane (Emily Mortimer) cresceram e ele, mais do que isso, casou-se e teve três filhos, Anabel, John e George. Com o falecimento da esposa e o acúmulo de dívidas junto ao banco onde trabalha a família se vê na iminência de perder a casa onde construíram todas as suas lembranças. E é nesse momento que a babá mais famosa da Disney aparece para ajudar a consertar as coisas. 

Mais uma vez, assim como no original, a mistura entre animação e personagens reais é muito bem utilizada, e dessa vez aprimorada (tendo em vista que, após mais de 50 anos, a tecnologia de produção melhorou muito!). E o resultado é mesmerizante, multicolorido, esteticamente impecável e repleto de um humor ingênuo que, cá entre nós, anda em falta no cinema americano dos últimos anos.

Há presenças ilustres como Colin Forth na pele do banqueiro Wilkins, Meryl Streep, a queridinha do cinema hollywoodiano, vivendo a prima de Mary Poppins, Topsy e Julie Walters (mais conhecida aqui no país por seus personagens nos dois Mamma Mia) como a empregada Ellen, mas nada que ofusque a graciosidade proposta pelas três crianças, que aqui parecem ter mais apelo do que no filme original. Pelo menos, eu tive esse sensação!

O grande acerto de Emily Blunt é não tentar imitar Julie Andrews. Ela encontra sua própria voz numa personagem cujo carisma é mais do que indispensável. E se é verdade que, por um lado, ela carece de um parceiro de aventuras à altura, pois o Jack de Lin-Manuel Miranda, está à anos-luz de distância do Bert de Dick Van Dyke (que, aliás, fez participação especial no longa), também é verdade que ela dá conta do recado numa história que precisa ser alegre a maior parte do tempo para conquistar as novas gerações de filmes. 

Entretanto, há temas um pouco baixo-astral nas entrelinhas da trama. Como, por exemplo, a tia Jane, solteirona, que herdou um pouco da personalidade da mãe, então sufragista, e prefere lutar pelos direitos dos menos favorecidos em passeatas e manifestos do que encontrar sua alma gêmea e o banqueiro inescrupuloso, que tentará de tudo para pôr as mãos na casa da família Banks. Mas nada que afete o brilho e o sentimento de nostalgia do filme. 

Voltando aos críticos xiitas e reclamões, que disseram ter a história perdido a sua magia. Recomendo-lhes que dêem uma nova chance ao filme. O Retorno de Mary Poppins mostra mais uma vez porque a Disney continua encantando gerações ao redor do mundo e seus concorrentes continuam com, pelo menos, um pé atrás  no quesito conquistar plateias. 

Longa vida à casa do Mickey Mouse. E que venham Dumbo e Alladin (já em fase de produção)!

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O poeta ainda está vivo?


Há um tempo não dava as caras no centro da cidade para conferir as exposições e fiquei sabendo pela internet de Cazuza 60 anos, uma série de eventos (incluindo uma exposição fotográfica) que comemora a data que o cantor, líder da banda Barão Vermelho, estaria fazendo se ainda estivesse entre nós. E me deparo com uma grata surpresa (e olha que eu não fui um grande fã do cantor, porque sempre me identifiquei mais com o Renato Russo e o Legião Urbana!). 

Para os amantes do rock brazuca e do seu definitivo poeta (como acabou ficando conhecido por muitos) a exposição é um colírio para o os olhos e para o sentimento de nostalgia que, honestamente, acho que é a única coisa que ainda me faz sair de casa e curtir a vida em tempos tão amargos e preconceituosos como os atuais. 

Cazuza era polêmico por natureza e isso, sendo você fã ou não do cantor, já era notório em suas músicas e discursos, tendo em vista que ele nunca fugiu da raia quando o assunto era se expôr, falar publicamente sobre o país ou sobre sua sexualidade. Muitos de seus detratores, inclusive, o acusam de acabar da forma como acabou - vítima da AIDS em 7 de julho de 1990 - por conta de sua excessiva exposição e promiscuidade, mas isso é assunto para outra hora porque o resultado final obtido após me deparar com as imagens que vi no Teatro Firjan Sesi foi, além de extrema competência por parte dos idealizadores do projeto, um alívio para qualquer amante da boa música nacional que se preze. 

Cazuza era roqueiro, mas não escondia suas referências fora do rock n' roll, como Cartola, Cassandra Rios, Caetano Veloso, bambas da nossa MPB e coisa e tal. Fez parte - tem quem o chame até de líder - de uma geração que buscava a redemocratização e as diretas já, deixando de lado os tempos obscuros do período militar. 

Assim como Renato Russo, Roger Moreira (do Ultraje a Rigor), Humberto Gessinger (do Engenheiros do Havaí), Herbert Vianna (do Paralamas do Sucesso) e tantos outros, também era um dos "filhos da revolução", como Renato bem cantara em música antológica da Legião. Entretanto, acabou pagando caro por ser franco, direto demais e por vezes escrachado, algo que desagradava a elite acomodada daquela época (que o diga a maldosa matéria feita pela Veja quando anunciou que tinha o vírus da AIDS!). 

Do ponto de vista musical é difícil até mesmo saber por onde começar sua obra, vide os inúmeros sucessos de vendas e audições nas rádios: "Codinome Beija-flor", "O tempo não para", "Blues da piedade", "Exagerado", "Ideologia", "Brasil", "Uma história romântica", a versão de "Vida louca" (de Bernardo Vilhena e Lobão) e tantas mais... Isso fora sua apresentação explosiva junto com o barão no Rock in Rio em 1985 e a gravação, no Canecão, do álbum O tempo não para ao vivo (dirigido por Ney Matogrosso), já debilitado pela doença, mas ainda assim mantendo a força de seus versos e expressão corporal. 

Contudo, como nem toda intervenção cultural no país nesses últimos anos se resume a rosas e aplausos, há também problemas e polêmicas. Leio durante a pesquisa para realizar este artigo sobre a exposição, num artigo publicado no G1 do globo.com que a popularidade do cantor é a menor da década, e sua rejeição é ainda maior nos estados do centro-oeste (portanto perto da capital). 

Falam de rejeição à seu trabalho tanto em termos de visualizações no you tube como também em direitos autorais arrecadados. E é fácil entender o porquê, levando-se em consideração a onda conservadora que tomou conta do país nos últimos anos (principalmente durante as últimas eleições) e a perseguição que certos grupos e movimentos LGBT vem sofrendo quase diariamente e certos setores da sociedade.

Por que estou comentando isso? Porque teve uma moça enquanto eu assistia a exposição que disse para uma amiga que aquele evento não passava de uma tentativa frustrada de elevar a moral do cantor, que anda em baixa junto a certos segmentos e grupos de interesse do país. Disse mais: que se o povo brasileiro tivesse um pingo de juízo e vergonha na cara boicotaria em massa o evento, colocando o artista no ostracismo que ele merece. 

Tal comentário me fez pensar em duas coisas: qual teria sido a escolha presidencial dessa moça outubro passado e por que uma pessoa dessas sai de casa só para falar mal de um evento público? Não teria ela nada melhor para fazer, não? Enfim... Coisas de Brasil polarizado e mal amado. 

Divergências e opiniões desagradáveis à parte, adorei a exposição (e se você é fã do artista, vai adorar também). Ela veio acompanhada de shows e homenagens em vários locais da cidade. E me deixaram com a impressão de que, se vivo, Cazuza hoje - caso visse os rumos que o país vem tomando - seria ainda mais escrachado do que naqueles anos 80. 

Então... O poeta ainda está vivo? Acredito que sim. E para vocês?

domingo, 16 de dezembro de 2018

Desconstruindo o anjo pornográfico


É um filme? É uma peça? É uma leitura dramatizada? É uma crônica policial? É uma provocação deslumbrante? É tudo isso e mais um pouco ao mesmo tempo? Sim, Nelson Rodrigues é tudo isso e mais um pouco, durante toda sua vida e sua obra. E poder apreciar uma releitura de seu trabalho no final de um ano em que se fez de tudo para que o país não desse certo, é com certeza uma dádiva. Não entenderam? Explicar-me-ei. 

É quarta-feira e vou ao cinema dentro do Imperator para assistir à adaptação de O beijo no asfalto feita pelo ator (e agora diretor) Murilo Benício. Para minha tristeza, poucos assentos estão ocupados. O que só reforça minha incerteza sobre os rumos que o nosso cinema vem tomando, perdendo espaço para filmes de super-heróis que não dizem a que se destinam além de entupir nossos cérebros de efeitos especiais e séries televisivas de cunho duvidoso (leiam-se: zumbi, seres sobrenaturais, etc) que nada mais são do que o pastiche dessa nossa sociedade caótica e cada dia mais perdida. 

A peça original é de conhecimento geral dos fãs de Nelson: Arandir (vivido na tela por Lázaro Ramos) vê um homem ser atropelado em plena Praça da Bandeira e o acidentado, antes de morrer, pede a ele como último desejo um beijo. Beijo esse que Arandir lhe concede como um ato de piedade. Contudo, mal sabia ele que aquele singelo gesto seria justamente o que levaria a sua vida dali em diante a um passeio pelo inferno. 

Arandir é cercado pela indústria do preconceito que rege esse país desde priscas eras (sim, meus caros leitores! Não é de hoje que vivemos num país tão cheio de manias e repressões). Seja por parte de Amado Ribeiro (Otávio Muller, fantástico!), o jornalista cafajeste do jornal A última hora, que adora mandar os outros calarem a boca, adepto do sensacionalismo a qualquer preço e das (hoje mais que famosas) fake news; seja por parte de seu sogro, Aprígio (Stênio Garcia), extremo conservador que alimenta a duras penas um segredo que envolve tanto Arandir quanto sua esposa, Selminha (Débora Falabella); seja por parte do delegado Cunha (Augusto Madeira), expoente máximo da hipocrisia policial e social, que usa até mesmo a imagem da filha irretocável, acima de qualquer suspeita, para vender uma faceta de "homem distinto, de moral ilibada" para os demais. 

Sem ter para onde correr, acuado, Arandir se depara com uma dupla e cruel acusação contra ele: a primeira, direta, de ser um homossexual que engana a própria família, uma aberração aos olhos da sociedade íntegra; a segunda, esta indireta, a de ser negro, portanto um indivíduo menor, dentro de uma sociedade que não esconde - nunca escondeu - o seu racismo. Vencido nesta batalha inglória, se vê abandonado por todos e ainda é acusado de ter perpetrado o crime contra o atropelado. Mais trágico (e rodriguiano) impossível!

Como pano de fundo, a genialidade e ousadia de Murilo Benício que escolhe um caminho diferenciado para contar esta história mais que consagrada em nossos palcos. Intercala leituras dramatizadas entre o elenco do filme e cenas gravadas dentro do teatro. Um recurso, aliás, que eu vi recentemente no filme Ricardo III: um ensaio, dirigido pelo também ator Al Pacino (não sei se Murilo assistiu ao longa, mas em muitos aspectos os dois filmes dialogam entre si). 

Ao final da sessão ouço aplausos entusiasmados dos poucos espectadores que compraram a briga de ir assistir o longa. Sim, digo briga porque o filme é um grande ato político, de resistência, em meio a um país que nos últimos anos só fez flertar com o retrocesso e a opressão de uma minoria recalcada e que não admite perder - seja espaço ou renda - por nada neste mundo.

Nelson Rodrigues prova mais uma vez porque é o maior de nossos dramaturgos com uma peça que não só flerta com o romance policial como antevê muitas das distorções vistas hoje na sociedade contemporânea: a discussão acerca do homossexualismo (comprada ferrenhamente pelos grupos que integram o LGBT), a indústria das matérias jornalísticas falaciosas, fabricadas muitas vezes com a intenção de confundir ou incriminar grupos de interesse específicos e a velha moral da chamada "família tradicional", muitas vezes eclipsada por uma ética dúbia. 

E com enorme deleite me deparo com o anjo pornográfico (singelo "apelido" ou "rótulo" que o autor ganhou de um crítico) desconstruído de forma criativa e, por que não dizer?, inovadora. Nossa sétima arte anda precisando de mais boas ideias como esta!

P.S: enquanto os créditos de filmagem passam diante de nossos olhos, o bate-papo final entre os atores - e de extrema ligação com o Brasil dos últimos anos - já vale pelo filme todo. Vejam o longametragem até o final, por favor!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

J'acuse...


"Somos mais salafrários e cínicos do que sonha nossa vã filosofia", diz o espectador sacana que habita dentro de mim ao final do espetáculo teatral O julgamento de Sócrates. Misto de risos e lágrimas, meu rosto sai refestelado diante da exuberância - e da atualidade vivaz - de um texto que mais parece um túnel do tempo, pois busca em lembranças do passado fragmentos para entendermos esse hoje tão caótico, tão ilusório, tão cheio de melindres. 

Tônico pereira (voz e corpo por trás de Sócrates, mais importante filósofo e pensador de nossa história) adentra o palco quase vazio, apenas uma cadeira, uma espécie de tronco simulando uma mesa, com uma taça em cima, a luz vindo de cima (e prestem atenção na luz: em alguns momentos da peça ela também, por si só, parece falar), vestes brancas, sandálias franciscanas (clara apologia à Jesus Cristo, que também será referência aqui). 

Chega citando amigos e mentores do passado, que ele chama de seus Sócrates, que o ajudaram e muito na sua formação profissional e pessoal. Aqui, ele ainda é o ator/indivíduo Tonico Pereira, falando de sua cidade natal, Campos, de sua vida, do que ele representa para esta sociedade, seja como criador artístico, seja como homem falho. 

Ele então se senta e o filósofo grego toma o seu lugar de réu. Está sendo julgado por aqueles que nunca viram nele mais do que um criminoso. Acusam-no de não acreditar em Deus muito menos em leis. Mais: acusam-no de enriquecer ilicitamente com o ensino de seu conhecimento. Em outras palavras: acusam-no de não ser tendencioso como os demais, de não ser partidário de um sistema capitalista, de um mercado opressivo que a tudo e todos rotula. 

No fundo, no fundo, Sócrates sabe que sua batalha perdida. Toda aquela "encenação" é apenas mais uma razão sofisticada para que eles, os poderosos, estadistas, governantes, o descartem do convívio com as massas. Mesmo assim, ele desfia seu rosário de sabedoria, tenta explicar ao público a grande dificuldade de encontrar homens sábios no mundo, seja no meio político, artístico ou técnico. Em vão, ele perambula de pólis em pólis à procura de alguém que o suplante em conhecimento. Assim como Jesus Cristo, ganhou ares de profeta, de único, de imortal. Na visão dele, pura balela, exagero. 

À medida que defende seus ideais, o ator/personagem instiga a platéia, cita figuras do presente, canta, gesticula, confronta espectadores, pede ajuda, implora por sua inocência. E mesmo assim, termina vencido por aqueles que simplesmente não admitem a liberdade de expressão, que adoram tolher àqueles que divergem de suas opiniões de meramente pensar. 

O discurso de Sócrates é tão inebriante, tão preciso, que não sinto o tempo passar, e quando me dou conta já se passaram os 60 minutos do monólogo. Pena! Eu poderia ficar ali, ouvindo, a noite inteira, madrugada adentro, até o dia, a tarde seguinte... Após a condenação, o filósofo pega a taça e bebe sua cicuta, aceitando seu destino. Jamais aceitaria abrir mão de sua ideologia. O cenário escurece e quando acende de novo vejo pessoas às lágrimas. O momento que o país vive dialoga perfeitamente com a peça e percebe-se que muitos cidadãos (que ele, Sócrates, chamou de "Cidadãos da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro" durante toda a sua defesa) estão exaustos, desesperançados, não aguentam mais, não sabem o que esperar do futuro. 

Pego a expressão J'acuse, do escritor Emile Zola como título deste artigo, pois acredito que a intenção primeira do espetáculo é denunciar este mundo de acusações e delações em que estamos vivendo. 

Muito se denuncia nesse Brasil dos últimos anos, mas não se chega evidentemente a lugar nenhum. Continuamos presos, amordaçados, lobotomizados à uma cultura repetitiva e secular de culpar o outro, acusar o outro, expor o outro ao ridículo, para que o holofote não caia sobre nossos ombros. Denunciar virou mecanismo de defesa dos covardes, cujo único objetivo é o de sair pela porta dos fundos. 

O julgamento de Sócrates é, certamente, uma das experiências mais gratificantes (e verdadeiras) que tive neste 2018 perdido na estrada. Que o próximo ano aprenda com a bandeira levantada aqui que não podemos mais viver de morais passadas e eternos conchavos e interesses. Enquanto não nos desfizermos da estrutura que nos empacou aqui, nada mudará. 

Grande Sócrates! Grande Tonico! Grande teatro! 

domingo, 9 de dezembro de 2018

Legalize it!!!


Os jamaicanos podem festejar à vontade e com merecimento!!!

Na quinta-feira (29 de novembro) o reggae foi declarado patrimônio imaterial da humanidade pela UNESCO. Eu, que não conhecia tanto assim sobre o ritmo (na verdade, minha primeira lembrança sobre a jamaica sempre foi a do filme de 1993 Jamaica abaixo de zero, de Jon Turteltaub, sobre a participação da equipe de bobsled - trenó, para os leigos - jamaicana nas olímpiadas de inverno) decidi apurar fatos para realizar este humilde artigo e conhecer mais sobre o gênero musical que fez muito sucesso por aqui, principalmente nos anos 90. 

Primeiramente: qual o significado da expressão reggae? Tem quem diga que vem de rege-rege (no inglês: “rags or ragged clothing”), ou seja, "trapos ou roupas esfarrapadas", pela associação com as regiões pobres do país. Entretanto, há os que defendam que tenha relação com a forma como o som é produzido quando tocado na guitarra, para cima e para baixo. 

Polêmicas e discordâncias à parte, o reggae surge na jamaica na década de 1950 por influência do movimento rastafári que defendia a ideia de que os afrodescendentes deveriam ascender e superar sua situação de extrema pobreza através do engajamento político e espiritual e vê na música de seus primeiros expoentes - Delroy Wilson, Bob Andy, Burning Espear e Johnny Osbourne, e as bandas The Wailers, Ethiopians, Desmond Dekker e Skatalites - sua força motriz. Contudo, pelo fato da grande maioria das estações de rádio pertencerem a homens brancos, quase não se ouvia o ritmo musical nas estações e por isso seu auge só viria acontecer duas décadas depois, muito pela força musical e política de artistas como Bob Marley (para muitos, o pai do gênero) e Jimmy Cliff. 

Como expressão musical o reggae é uma mistura de vários estilos e gêneros: da música folclórica da Jamaica aos ritmos africanos, do ska ao calipso... Já conversei certa ocasião (refiro-me à época da faculdade) com um grande admirador do gênero que me disse, apaixonadamente, ser o reggae o maior caldeirão cultural e político que ele já viu em toda a sua vida. E toda vez que ouço nas rádios online canções como "Legalize it", "I can see clear now", "I shot the sheriff", "No woman, no cry", "Get up, stand up", entre tantos outros hits, me dou conta de que ele está absolutamente certo. 

As letras de suas canções pregam o amor, sem no entanto deixar de abordar questões sociais (como pobreza a desigualdade social) e temas religiosos, problemas típicos de um país com uma grave divisão social. Não à toa muitos brasileiros conhecem a jamaica mais por seus corredores de atletismo do que por sua história política, social e musical. Grandes nomes da música mundial abraçaram o reggae, chegando a fazer versões próprias de músicas canções eternizadas na jamaica. Dentre eles, Eric Clapton, Rolling Stones, Peter Tosh, Paul Simon, UB40, dentre outros. 

No Brasil, a região norte foi a primeira a abraçar o gênero, principalmente em São Luís, capital do Maranhão. Todavia, na década de 1970 cantores como Gilberto Gil e Jorge Ben (hoje Benjor) foram gigantescamente influenciados pelo ritmo e nos anos 80 foi o rock - através das canções da banda Paralamas do Sucesso - que decidiu se unir ao gênero. Já o auge do reggae por aqui se deu na década de 1990 com o sucesso de vários músicos e bandas, dentre eles Cidade Negra, Alma D'Jem, Tribo de Jah e Nativus. 

(Pausa para uma memória nostálgica: quando Jimmy Cliff começou a tocar "Reggae night" nas rádios brazucas foi uma febre tão grande que até a modinha das camisas listradas e hipercoloridas pegou por aqui. Saudosos tempos esses!). 

Porém, mesmo após tudo o que eu disse sobre o tema até aqui, como dissociar o reggae de Bob Marley? Ele não só é o grande expoente do gênero, como transformou sua música numa espécie de mantra, praticamente religioso. Por sinal, é bom comentar: Marley foi um grande fã do Brasil (esteve por aqui, inclusive) e de nosso futebol, chegando a dizer que Paulo César Caju, craque da seleção de 1970, era o melhor jogador que ele já vira atuar num campo de futebol até então. E como negar a relevância de sua banda, The Wailers, até os dias de hoje no cenário musical mundial? Como legado, fica sua discografia exuberante e seus filhos, que também seguiram a carreira do pai nos palcos. 

Em 11 de maio (data do falecimento de Bob Marley) comemoramos por aqui o dia nacional do reggae. Só por aí já dá para termos uma ideia de nossa ligação com a música jamaicana e tudo o que ela representa. 

Encerro minha reflexão por aqui falando abertamente da felicidade que representa esse reconhecimento ao estilo musical, principalmente em tempos de revolta e de racismo acentuado como vemos nos dias de hoje. Que a atitude da UNESCO ressoe por outros lugares e instituições, pois precisamos urgentemente rever essa onda conservadora, castradora e inútil que anda tão na moda atualmente. 

Vida longa ao reggae, meus caros leitores! 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O mundo é sujo


Gosto do diretor Steve McQueen desde o primeiro momento em que o vi falando num desses talk shows badalados dos EUA (não me recordo agora se foi no David Letterman ou no Jay Leno; enfim...). E mais: seus filmes são corajosos, ácidos, não perdem tempo com demagogias sentimentalóides que só fazem ilustrar o quanto o mundo liberal que os empresários amam idolatrar é frágil e, por vezes, torpe. 

Em Shame ele se utiliza do discurso dos pervertidos sexuais e viciados em internet para delimitar o quanto a sociedade americana é doente e nociva e não se dá a menor conta disso; em 12 anos de escravidão, vencedor do Oscar de melhor filme, associado a grandes nomes de hollywood como Brad Pitt e Michael Fassbender, ele recua em direção à época escravocrata para jogar luz sobre os eternos moralismos norte-americanos e a eterna mania capitalista da sociedade endinheirada de fazer dos menos favorecidos suas eternas mercadorias. E já no ano em que foi reconhecido pela academia como melhor diretor do ano incomodou a muitas pessoas (afinal de contas, trata-se de um cineasta negro e gay). 

Agora, com As viúvas, Mcqueen deixa claro em seu discurso e em sua maneira de filmar o quanto o mundo é sujo, seja qual for o viés que você, telespectador, for olhar. 

E acredite: são muitos os vieses. Seja o de Veronica (Viola Davis, como sempre sensacional!) que vê o assalto da gangue a qual seu marido liderava dar errado e se tornar vítima de chantagem dos homens a quem ele devia dinheiro; seja o de Jack Mulligan (Colin Farrell), político que tenta encontrar seu caminho, após anos vivendo à sombra do pai influente, e não menos corrupto; seja o de Jatemme Manning (Daniel Kaluuya, fantástico!), o garoto de recados, o cobrador de dívidas do irmão influente no bairro negro que deseja eleger-se prefeito e assim quebrar com o ciclo vicioso da familia Mulligan no poder. Todos eles, e muitos mais ao longo da película, se enfrentarão com unhas e dentes, e mostrarão com verdade e paixão o quanto a sociedade contemporânea está intoxicada pelo vil discurso de que "só o dinheiro é capaz de resolver todos os meus problemas". 

As viúvas poderia ser apenas um heist movie (ou filme de assalto), mas preferiu ser algo mais além disso. Poderia ter sido um longametragem denunciatório sobre as mazelas do poder, mas também decidiu pegar um caminho alternativo, ainda mais sórdido do que a proposta original. E poderia, finalmente, ter exagerado no melodrama dessas mulheres que precisam pagar as dívidas dos maridos mortos e, por isso, decidem elas mesmas realizarem um novo roubo, mas preferiu ser mais inteligente do que isso, sem no entanto recorrer às expressões corriqueiras do tipo "empoderamento" ou "me too" que andam tão na moda atualmente em hollywood. 

O longa de Mcqueen é, na verdade, um belo exemplar de cartilha para entendermos esse torpe século XXI que mal acabou de começar e já vem deixando tanta gente com o cabelo em pé (vide na tv as sucessivas manifestações e brigas ao redor do mundo, por conta da crise financeira começada em 2008). 

Entre os temas esmiuçados pelo diretor - que, na minha opinião, realiza aqui o seu filme mais completo - vemos o nepotismo político; a maquiavélica ramificação que vem crescendo nos últimos anos entre Estado e religião (fazendo com que muitos cientistas políticos venham chamando esse novo século de "o regresso do medievalismo"); violência doméstica; negócios escusos envolvendo pequenos empresários que vendem a imagem de corretos para seus familiares e amigos, e no entanto não passam de pessoas com rabo preso a um sistema corrupto e leviano; o papel da arte nos novos tempos e a indefinição sobre a veracidade dessa arte; entre outras alfinetadas que povoam o excelente roteiro escrito a quatro mãos pelo próprio Mcqueen e a romancista Gillian Flynn (autora best-seller de sucessos recentes como Garota exemplar e a série de tv da HBO Objetos cortantes). 

Ao final da sessão, além de ver o sorriso de satisfação no rosto dos demais espectadores, realizados com o que viram e cientes de terem gasto seu dinheiro com o filme certo, percebo o quanto o filme não só toca diretamente na nossa realidade atual (o filme poderia perfeitamente ter sido realizado no Brasil, principalmente no Brasil dos últimos 10 anos) como destrincha as distorções vigentes no mundo nas últimas décadas. Jogue dentro de As viúvas a Al-Qaeda, o governo Trump, os aiatolás do Oriente Médio, a crise na Europa, o terrorismo tecnológico, o Occupy Wall Street ou qualquer outra intervenção, guerra, manifesto ou questionamento feito nos últimos anos e ele cairá como uma luva aqui. 

Em outras palavras: Steve Mcqueen faz não somente um dos melhores filmes do ano como prova, com folga, que é um dos cineastas mais antenados sobre a realidade social dos últimos tempos. E por mais que os viciados em internet ou fake news tentem diminuí-lo, acusando-o de diretor óbvio, sob a pecha do discurso demagogo de que "ah! mas isso todo mundo já está sabendo há séculos!", essa não foi uma tarefa nada fácil. 

Detalhe final para os que ainda não viram o filme (para apreciar com calma, minuciosamente): a trilha sonora, com direito a Billie Holliday, Nina Simone e Michael Jackson e o elenco feminino, por si sós, já valem por toda a experiência cinematográfica proposta. E olha que trata-se de um filme com Liam Neesom, ator-síntese dos filmes de ação dos últimos anos! 

Fiquei me perguntando: se o elenco fosse todo masculino será que esse longametragem teria o mesmo impacto? Honestamente, tenho minhas dúvidas...

domingo, 2 de dezembro de 2018

A tv de papel


Seja você um amante ou detrator da televisão, não há como negar: ela reformulou a maneira de pensarmos nossa sociedade (seja para melhor ou, em muitos casos, para pior). E com chegada da tv a cabo e o streaming ao setor, não só a concorrência tornou-se mais acirrada como o leque de opções possíveis aos espectadores aumentou. Como bem diria minha avó materna: "são os tempos mudernos, meu filho!". E dessa modernidade caótica, líquida, deturpada, nasce aquela que eu costumo chamar de "a verdadeira constituição deste país", tendo em vista que grande parcela de nossa população toma suas decisões baseados em programas, séries, novelas e humorísticos televisivos. Se você não conhece ninguém assim, me perdoe, mas é um extraordinário mentiroso. 

Polêmicas à parte e sabedores do papel que a televisão tem de alterar padrões, modismos e comportamentos, foi uma grata surpresa poder esmiuçar com calma, sorvendo cada capítulo, à 101 atrações de tv que sintonizaram o Brasil. da colunista do jornal O globo Patrícia Kogut. Eu já tinha olhado o exemplar nas prateleiras das livrarias Cultura e Saraiva (que vivem um momento delicado, por conta da crise financeira do estado) sem dar muita atenção, pensando tratar-se de uma bobagem cheia de ilustrações e pouco conteúdo. Estava enganado. E digo mais: ficam aqui meus elogios à equipe que ajudou Patrícia a pesquisar o conteúdo a ser desmembrado no livro. Acho que não deixaram nada de mais relevante de fora da obra.

101 atrações vai de personagens fundamentais - e obrigatórios - para o entendimento do que conhecemos hoje como televisão (Janete Clair, Dias Gomes, Jô Soares, Chico Anísio, Walter Clark, Boni, etc) até programas indispensáveis na formação de diferentes gerações. É, minha gente...A tv ficou velha de idade, mas não de referências e projetos. 

Há uma parcela do livro que mexe diretamente com minha nostalgia. Impossível não ler a respeito da MTV (que foi veiculada por aqui no UHF na minha época de adolescente e foi responsável pela formação musical que tenho até hoje), de Armação Ilimitada (com Juba e Lula disputando o amor de Zelda Scott), TV Pirata (com os eternos Barbosa, Zeca Bordoada, Tonhão e a novela-paródia Fogo no rabo), Sítio do pica-pau amarelo (e eu tentando imitar o Visconde de Sabugosa enquanto minha irmã queria uma boneca da Emília e Gilberto Gil cantava a música-tema do programa), Os Trapalhões (como esquecer de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias?) e o eterno velho guerreiro, o Chacrinha (que eu assistia na casa da minha avó, junto com meus primos, nos fins de semana) e não ver as lágrimas escapando dos olhos. Mais do que isso: pensar "no quanto eu era feliz e não sabia, não dava o devido valor". 

Por outro lado, há também lembranças a grandes momentos da tv que antecedem ao meu nascimento e que merecem - de forma justíssima - serem lembrados. É o caso do Grande Teatro Tupi (que muitos especialistas e formadores de opinião rotulam como "fundador da teledramaturgia brasileira"), Repórter Esso (que meu pai chamava, antes de falecer, de "o maior programa que esse país já teve até hoje"), Praça da Alegria (cujo legado está presente até hoje na grade de programação do SBT), 2-5499 ocupado (a primeira telenovela diária do país), Família Trapo (precursor das sitcoms), os Festivais de música (que apresentaram uma geração de talentos até hoje presente e relevante na cultura nacional), O direito de nascer (quem viu na época, não esquece!) e muito mais...

Isso sem contar os grandes tipos que fizeram do veículo uma linguagem à parte da própria realidade nacional. Falo de personagens e figuras públicas como Beto Rockfeller, O homem do sapato branco, Topo Gigio (eu cheguei a ter um ratinho desses em casa!) Gabriela (encarnada por Sônia Braga), Escrava Isaura (imortalizada por Lucélia Santos), Sassá Mutema e Sinhozinho Malta (ambos vividos por Lima Duarte), Viúva Porcina (Regina Duarte, que nunca mais conseguiu se dissociar da personagem), Odete Roitman (Beatriz Segall, cuja morte parou o Brasil), Hans Donner (o mago do design, criador da Globeleza), Paulo Gracindo, Francisco Cuoco, Glória Menezes, Tarcísio Meira, Tony Ramos, Fernanda Montenegro, Antônio Fagundes, os diretores Walter Avancini e Daniel Filho...Chega, chega! Melhor deixar o resto para o leitor fuçar, senão o artigo não termina hoje (e, além do mais, o livro é uma máquina do tempo).

De Assis Chateaubriand (que inaugurou a tv com toda a pompa e garbo que mereceu na época!) até a novela Avenida Brasil, são mais de 260 páginas de puro entretenimento, nostalgia e sensacionalismo (mas na melhor expressão do termo). Encerro o exemplar me perguntando se Kogut faria ou fará uma continuação. Sempre há algo faltando (o que acaba por se tornar uma razão para que um novo volume seja feito). Mas mesmo que o volume 2 não dê as caras, já valeu a experiência de ter lido a obra por conta de me gerar interesse em procurar saber mais sobre esse fascinante veículo que não sai de moda, por mais que tentem dar cabo dele!

Para estudantes de jornalismo, publicidade, multimídia, interessados em cultura e entretenimento, é um prato cheio, quase transbordando. Praticamente uma tv de papel. Parece apelativa a minha definição, mas é a mais pura verdade. Só faltou um botão no livro para eu poder "mudar de canal". 

Será que a própria tv não fará um programa na linha revival sobre o livro dela? Enfim... Como costuma dizer a própria televisão: aguardemos as cenas dos próximos capítulos. 

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O homem que inventou as matinês


Certa vez, durante um programa sobre sétima arte transmitido pelo canal a cabo TNT, o crítico de cinema Rubens Ewald Filho disse sobre o diretor Steven Spielberg que ele "praticamente inventou a matinê". E ele estava absolutamente certo. Digo mais: Steven Spielberg reinventou a maneira da sua geração e das próximas gerações pensarem e assistirem cinema. E falo isso com a experiência de quem, ainda moleque, aos míseros seis anos de idade, encarou uma fila gigantesca no cinema Olaria para assistir E.T - o extraterrestre acompanhado de minha mãe. E acreditem: aquele momento mudou completamente a minha vida. 

Não bastasse tudo o que tive o prazer inenarrável de ver através dos olhos desse mestre (e foram muitos momentos grandiosos: A lista de Schindler, O resgate do soldado Ryan, Contatos imediatos do terceiro grau, Tubarão, Encurralado, Inteligência artificial, Jurassic park: o parque dos dinossauros, etc etc etc), no ano passado a documentarista Susan Lacy decidiu realizar para a HBO um documentário sobre a sua vida. Eu pirei. Acho que se eu pudesse, se eu tivesse influência no meio, teria pedido à diretora para participar do set, só para assistir a produção do longa. Porém, por se tratar de um filme produzido para o mercado televisivo, ele não teria lançamento nos cinemas. Então, como assistí-lo?

Moral da história: durante um ano venho labutando, procurando incansavelmente na internet, por um link, um arquivo, um site que me leve ao filme. E nada. Até que nesta última semana recebo a indicação de um colega cinéfilo - e fanático também por Mr. Spielberg - dizendo: "entra nesse site aqui". Meus olhos foram as lágrimas no mesmo instante. O documentário ali, na íntegra, e ainda por cima legendado (coisa que nem sempre é fácil de encontrar nesse mundo internético louco e que adora seguir suas próprias regras). E o principal: valeu cada segundo da minha noite. 

Spielberg, de Susan Lacy, é filme obrigatório para fãs do diretor e também para aqueles que não conhecem bem seu trabalho ou mesmo passaram a vida tentando rotulá-lo daquilo que ele não era, com intuito de diminuir sua obra. São mais de duas horas de depoimentos, espetáculo visual sem precedentes e também o esmiuçar de seu processo criativo, suas ideias, dilemas, dificuldades ao longo da vida. 

A melhor parte? Além das imagens dos filmes que o eternizaram, é claro!, certamente poder rever atores, atrizes, produtores, diretores que com ele trabalharam nesses últimos 50 anos depondo sobre a grande aventura que foi trabalhar com ele. Richard Dreyfuss, Laura Dern, Drew Barrymoore, Ben Kingsley, Liam Neeson, Ralph Fiennes, Christian Bale, Leonardo Dicaprio, Tom Hanks, Daniel Day Lewis, Martin Scorsese, Francis Ford Copolla, Brian de Palma, George Lucas... Uau! A lista é gigantesca. 

Seus casamentos, o divórcio da atriz Amy Irving, os filhos, a relação traumática com a família, a briga de 15 anos com o pai, o fascínio pela segunda guerra mundial, sua negação na juventude à condição de judeu, tudo está lá, compondo com sua cinematografia o retrato de um homem que enfrentou seus demônios e fantasmas de frente, sem contudo perder a delicadeza e o principal: sem deixar de contar uma história que toque o coração do público (sua marca registrada). 

Muitos tentaram catalogá-lo. Quando começou a rodar filmes mais sérios, como A cor púrpura e O império do sol, foi criticado por fugir de seu estilo comercial, direto, chegando a ser chamado de pretensioso. Quando tentou enveredar pela comédia, com 1941 - uma guerra muito louca (um dos fracassos de bilheteria mais visíveis em sua carreira de sucesso), foi classificado na maldosa categoria "esse não é você, volte para os filmes de aliens e criaturas, cheios de efeitos especiais". E mesmo assim driblou e calou a boca de todos eles. 

A frase que melhor explica no longa essa relação contraditória de Spielberg com os críticos de seu trabalho é dita pela atriz Sally Field, com quem trabalhou em Lincoln, "sempre tentaram dizer sobre seu trabalho que não era o bastante, nem intenso o bastante, nem obscuro o bastante, nem comercial o bastante... Porém, sequer se esforçaram por entendê-lo, entender a gênese do seu trabalho". Perfeito. Passei minha vida ouvindo as pessoas chamarem Steven Spielberg de diretor infantil. No entanto, em Munique seu protagonista faz sexo com uma mulher grávida, em A lista de schindler judeus são executados a sangue frio, e a câmera não se esquiva do disparo um minuto sequer, em Amistad os escravos são torturados diante das lentes... Se isso é ser infantil, eu gostaria de saber o que esses críticos definem como infância. 

No ato final, a diretora lembra - de forma acertada, a meu ver - dos parceiros de set que junto com o diretor fizeram a magia acontecer ao longo das décadas: Janusz Kaminski, John Williams (o alter-ego musical de Spielberg), Kathleen Kennedy, Michael Kahn, Tony Kushner, Vilmos Szigmond e claro a esposa Kate Capshaw que o próprio Steven chama de "minha fortaleza". 

Quando percebo a proximidade dos créditos finais os olhos marejam novamente. Se o trabalho de Lacy fosse uma minissérie de 10 horas de duração ainda assim eu ia querer assistir mais e mais. Ela toca na minha ferida. Expôs o homem que me tornou cinéfilo. Obrigado, Susan! Serei eternamente grato. E detalhe: o que eu tenho de fazer para comprar um DVD desse filme? Onde eu encontro? Eu quero. Muito. 

Ao final da sessão uma certeza: dificilmente Spielberg, o homem que falou de família, de rompimentos e reconciliações, que apaixonou crianças e adultos, nos levou das lágrimas aos sorrisos, terá um substituto (a presença de J.J. Abrams no filme não me convenceu do contrário). Ele é uma força da natureza, um legado de hollywood que, tenho certeza, ainda terá muito o que dizer aos fãs. Basta que esperemos. 

P.S: ah! o remake de West Side Story está vindo aí...

domingo, 25 de novembro de 2018

A mentira nossa de todo dia (Reflexões/VII)


Li numa matéria no jornal El País feita por um antropólogo cultural que "vivemos o triunfo da mentira neste começo de século XXI" e me peguei pensando no quanto esta declaração tinha de poderosa para entendermos o país em que vivemos nos últimos anos. E a conclusão à que chego é: por mais esperançoso que seja, a tendência é piorar. E muito. 

Quando mais novo lembro que a mentira no Brasil já era encarada como um artigo de luxo, um mecanismo de defesa para não termos que lidar com ela, a desprezível verdade. Achávamos a mentira um porto seguro para nossas malévolas intenções e eu, ainda menino, me perguntava quanto tempo aquela mentalidade duraria. Pois é...

Recentemente passamos por um novo processo eleitoral do qual não consegui discernir o que era verdade do que era mentira. Vivemos as eleições das fake news e terminei todo o processo chegando à conclusão de que elas (as fake news) servem aos interesses dos dissimulados, dos covardes e gananciosos que nunca saem do poder, ficam ali alimentando-se da ignorância do povo que se orgulha de ser eleitor, sem no entanto saber de fato votar de forma lúcida (por uma razão muito fácil de entender: fomos adestrados, não ensinados a pensar). 

Contudo, as famigeradas eleições escondem um vilão muito maior: o do racismo, da homofobia, da misoginia, do preconceito em suma, disfarçado de indiferença, de "não é comigo", "não tenho nada a ver com isso", "não é problema meu; eu tenho mais o que fazer". 

A mentira, meus caros leitores, está presente em todos os lugares que se possa imaginar, e dá passos largos em suas maquiavélicas intenções para o futuro do país (e do mundo). Nos States, o "presidente" (não consigo acreditar em milionários tomando o poder!) labuta diariamente para desmantelar todos os projetos e conquistas do antigo governo que o antecedeu. Aqui, vocês sabem... Vocês sabem quem ganhou, mas não quero falar dele. Até porque seu governo não começou. Ainda não. Mas há que se ficar de olho nas mentiras que virão por aí. Pois entra governo, sai governo, é somente as mentiras permanecem. Mais sofisticadas, é bem verdade, mas nem por isso menos perturbadoras e destrutivas. 

Pinóquio, personagem de Carlo Collodi que Walt Disney imortalizou, o menino cujo nariz crescia toda vez que mentia, viraria santo perto do que nossos dirigentes, figuras públicas, celebridades, fazem abertamente na tv e em seus discursos. Digo mais: seria inocentado pelo tribunal do Santo Ofício como injustiçado. Muitos me chamarão de exagerado - expressão que já ouço relacionada a mim desde a adolescência -, mas quem consegue ler as entrelinhas sabe do que estou falando. 

Mentir não é mais pecado do lado de baixo do Equador como em outras épocas. A mentira se presta às transações mais sórdidas e, por que não dizer também?, geniais dessa versão globalizadora da humanidade. Se seres humanos pudessem ser medidos por sua capacidade mentiresca, provavelmente estaríamos fadados à extinção. E nem mesmo as outrora angelicais crianças sobreviveriam ao julgamento final. 

Eu sei... O artigo de hoje pegou pesado. Eu sei. Mas precisava ser dito antes que se perdesse em meio às inúmeras ideias e reflexões que têm povoado a minha mente nos últimos anos. A mentira, meus amigos, é quase um caso de vida ou morte no país e precisa ser investigado o quanto antes, sob pena de nos tornarmos serial killers da verdade. 

A continuarmos por esse caminho tenebroso onde o errado é vendido como certo, o duvidoso é tratado como sinônimo de cristandade, de virtude, de "exemplo de honestidade", onde até mesmo conceitos mais simples como beleza, música, literatura, tornaram-se simulacros da falsidade, confesso: tenho receio de que não terminaremos este século. 

O texto de hoje é amargo porque precisa ser. Somos um povo que precisa de um choque de realidade vivendo num mundo que está ruindo dia a dia (dêem uma boa olhada no que está acontecendo na Europa, nos protestos que vêm rolando nos últimos anos nos EUA, nas tentativas infames de tentarem diminuir as consequências do aquecimento global, etc etc e haja etc). E não nos damos conta. Correção: não damos a mínima, pois não nos afeta individualmente. E vamos para as emissoras de tv para falar em coletividade, sustentabilidade, pacificação, numa retórica que só serve para mostrar o quanto nos tornamos confusos e irreais. 

Antes a esperança não venceu o medo (embora tenha tentado). Agora é a mentira que dá as cartas em meio a uma sociedade violenta, doente, umbiguista e cultuadora de homens falhos que não passam de fraudes ambulantes. Devemos jogar a toalha? Ainda não. Esperemos o dia de amanhã. Porque isso nós sempre soubemos fazer bem: esperar o dia de amanhã. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Se eu quiser falar com Deus


Não é de hoje que eu venho tomando coragem para falar sobre religião ou temas correlatos a ela em um de meus artigos. Digo isso porque o tema em si me incomoda, Muito. E principalmente pela dimensão (ou seria melhor chamar de distorção?) que o discurso religioso vem ganhando no país nos últimos anos. Religião virou motivo de guerra, de dissensões familiares, de brigas (em alguns casos, levando até a morte!) e eu não faço a menor questão de fazer parte do debate. Tanto que não sigo dogmas, pois não acredito que precise pertencer a um grupo ou instituição para ter fé. 

Paralelamente a isso, é visível o crescimento (e posterior sucesso) do gênero gospel nos cinemas. Que o diga a repercussão na internet dos longas A cabana, de Stuart Hazeldine e Em defesa de Cristo, de Jon Gunn. Contudo, como minhas predileções na sétima arte versam sobre outros gêneros, sempre releguei o formato à segundo plano (até que, pelo menos, aparecesse um exemplar que me chamasse de fato à atenção). Foi o que aconteceu com Entrevista com Deus, de Perry Lang, que vinha me deixando curioso nos trailers das sessões de cinema que assistia e pegou dizendo para mim mesmo: "quem sabe a esse eu dê uma chance!". 

Pois bem: chega o controverso (para alguns) feriado da Consciência Negra e com ele a chuva no Rio de Janeiro, fazendo com que eu procure uma opção que não me mantenha preso em casa. Logo, "por que não dar uma chance àquele filme, hein?". Pois é exatamente o que faço. E qual não foi a minha surpresa ao me deparar com uma das melhores propostas de debate que eu vi este ano nas salas de cinema que frequentei. 

Entrevista com Deus traz a história de Paul Asher (Brenton Thwaites) um jornalista que escreve sobre religião para um jornal não-cristão que acaba de chegar do Afeganistão e é recebido com a notícia de que sua mulher o está deixando. Contudo, recebe um convite para uma entrevista inusitada. Comparece ao local e se depara com um homem de meia idade que declara ser Deus e diz ter vindo à terra a seu pedido. 

Começa então um grande debate religioso que envolve temas como ética, moral, salvação, livre arbítrio, céu e inferno, entre outras divergências ainda mais complexas. E mais do que isso: a entrevista intercala com a própria vida de Paul, que se encontra em frangalhos. Detalhe: o jornalista chegou àquele ponto da vida em que sua existência parece ter perdido completamente o sentido e talvez não hajam mais motivos para continuar vivendo. 

Deus (vivido de forma extraordinária e sem arroubos de grandiosidade pelo ator David Strathairn) a todo momento propõe a Paul um jogo mental e analítico - e só para constar: a presença do tabuleiro de xadrez entre eles no primeiro encontro, não está ali por mera coincidência - que o fará questionar sua própria fé e decisões tomadas no passado. Tanto que quando ele descobre o verdadeiro motivo da partida de sua esposa, sua moral sempre tão precisa, certeira, estraçalha, deixando-o no momento mais terrível de sua vida. Porém, as respostas que procura não lhe serão dadas de presente, pois não é disso que trata a implacável vida. 

Perry Lang toca numa questão em seu filme que me rendeu muitas discussões (desnecessárias, a meu ver) ao longo da minha vida: percebe-se nas entrelinhas do roteiro de Ken Aguado o quanto a sociedade contemporânea têm transformado a figura de Deus num grande serviço de utilidade pública. Ou seja, recorre-se a ele sempre que se precisa de uma ajuda (de preferência, monetária) de forma rápida. E do contrário, sequer nos lembramos dele. Não é à toa que nossos dogmas atualmente vivam de dízimos, contribuições, doações, que mais parecem uma versão moderada de "vamos sustentar a igreja, senão ela acaba", isso sem contar as orações de cristãos que se limitam a algum pedido pessoal e mercantil, na linha "me arranja um emprego", "me arranja uma casa", "me ajude a pagar as contas". Triste, eu sei... Mas nem por isso menos real. Um sórdido real. 

O desfecho da história soará simplório demais aos ouvidos de quem confunde fé com interesse (e, cá entre nós, a sala estava quase vazia, diferentemente das sessões de produções cinematográficas feitas pela Rede Record, que adora lobotomizar seus espectadores e fiéis, e por isso vivem cheias), mas era - a meu ver - a única solução possível. Não só para Paul, mas também para toda a humanidade. 

Resumindo minha interpretação do filme: vivemos num mundo contemporâneo onde aprendemos a pedir favores e esmolas, mas não aprendemos a crescer como indivíduos e a lidar com nossos próprios problemas. Buscamos uma existência mais feliz em outro plano, mas não procuramos viver uma vida plena neste plano (então para que serve uma nova encarnação ou plano existencial? Para repetirmos os mesmos erros?), procuramos por salas de espera, onde esperamos por civilizações extraordinárias, mas sequer procuramos entender a nossa própria civilização. E quando debatemos isso com o outro, ele vira o canalha, o insensível, o ateu, o que não entende nada. E "por favor, suma da minha frente!".

Entrevista com Deus será chamado de tolo, de piegas, de formador contraditório de opinião, de balela, de tendencioso. Não tenho dúvidas! Todavia, foi o primeiro filme de cunho religioso nos últimos anos que finalmente se propôs a entender minhas angústias, minhas incertezas, minha descrença com os religiosos, principalmente num mundo onde preferi escolher o terreno da dúvida enquanto todos parecem ter tanta certeza sobre tudo e sobre todos. Em suma, ele prefere contrapor ideias ao invés de corroborar um discurso ou caminho a ser seguido. E essa é, com certeza, sua maior virtude. 

Espero não apanhar muito dos leitores que se permitirem ler esta resenha (sempre que opino sobre religião eu viro alvo de críticas e já fui até chamado de radical por pessoas que eu considerava amigos e acabei por quebrar a cara). Mas de uma coisa tenho certeza, apesar de ser uma criatura que rodeia a dúvida: como é bom saber que eu não sou o único incomodado com o que está acontecendo hoje no mundo quando o assunto é fé!

domingo, 18 de novembro de 2018

São eles os reis da pista agora...


Quem são esses rapazes e moças que revolucionam a dança todo dia nas ruas, nos programas de tv, nos reality shows? Palmas para eles! O mundo precisa de novas ideias de vez em quando.

Passei por esses dias perto da Praça da Bandeira e me deparei com um grupo de jovens na casa dos 18, 20 anos, adeptos da street dance (ou dança de rua, como conhecemos mais popularmente por aqui)  mostrando suas coreografias aos pedestres que por ali passavam. Fiquei encantado! 

Por muitos anos fui reticente à causa deles. Talvez por estar acostumado a ver grandes dançarinos como Gene Kelly, Fred Astaire, Mikhail Baryshnikov, Gregory Hines, Michael Jackson, aprontando das suas em clipes e filmes, e acreditar que pessoas comuns, de subúrbio, não fossem capazes de chegar a tanto, que dirá superar o balé clássico, o sapateado e a revolução coreográfica promovida pelo rei do pop. Estava redondamente enganado. Eles estão por aí, com seus estilos diferentes, cabelos e roupas multicoloridas, fazendo das suas. Os breakers, pioneiros do gênero, certamente ficariam orgulhosos. 

A história do street dance confunde-se com a do funk, mas também tem suas raízes jamaicanas (leia-se: o Afrika Bambaataa, quando as gangues deixaram as armas de lado e resolveram suas diferenças num outro tipo de campo de batalha). Na apresentação que assisti as apache lines, linhas imaginárias que separam os dançarinos de equipes rivais, estavam presentes e mostravam um pouco do espírito daquela época. Era confronto, não guerrilha com direito a tirar a vida de seu semelhante. 

O universo do hip-hop que tornou o street dance a força que é hoje, é dividido em quatro elementos de extrema importância: o rap (sem música não há batalhas que sobrevivem), os DJs (que fazem a massa agitar à base de pancadões e hits furiosos), o grafites (expoente máximo da cultura visual - e marginal - desse segmento) e, claro, a dança. 

E cabe aqui um capítulo à parte para falarmos brevemente dos estilos e modalidades que fazem a cabeça desse povo dançarino: o funky chicken (ou locking), mais coreografado, que tomou as pistas de assalto nos anos 80; o popping (à base de contrações musculares); o boogaloo (feito a partir de movimentos circulares com o quadril); o brooklyn rock; o breaking (pioneiro no gênero) e finalmente, o mais aceito entre adeptos, o freestyle (que, muitas vezes, incorpora vários estilos ao mesmo tempo). Nesse último estilo em especial há competições milionárias e famosas premiando o melhor dançarino na categoria. E esses eventos também já tomaram o país de assalto. 

Ou seja, aquilo que começou a passinhos pequenos em nossas terras, na década de 1970 e 1980, com Nelson Triunfo e Gerson King Combo, até sua consolidação como movimento hip-hop organizado nos anos 199o, agora adentrou o universo televisivo com extrema força e estrutura extraordinária. Procurem pelos realities de competições no gênero exibidos na tv cabo ou mesmo as equipes que comparecem à programas como American Idol e X-Factor e tirem suas próprias conclusões!

Recapitulando: aquele garoto, de pouco mais de 18 anos, que achava uma enorme loucura, aqueles rapazes de cabelões à la black power, dançando nos viadutos negrão de lima da vida e outras "passarelas" mais animadas, hoje vê mesmerizado a grandiosidade que aquela brincadeira se tornou, com patrocinadores de renome, equipes ultraprofissionais disputando com unhas e dentes cada título, isso fora a quantidade de produções cinematográficas em hollywood na linha Se ela danço, eu danço feitas anualmente. 

Em outras palavras, o quarentão aqui parece que envelheceu em demasia e não viu o tempo escorrer pelos dedos, oferecendo novas possibilidades, ritmos e estilos. 

Prometo ficar de olho de forma mais atenta daqui pra frente.