Martin Scorsese, não à toa, nem por acidente, é o grande gênio em atividade da atual hollywood e construiu seu celebritismo tanto através de longas que marcaram época seja por sua visceralidade, seu arrojo estético ou por sua denúncia à religião, como também através de seu trabalho por trás da fundação que criou para restaurar filmes antigos (e este é provavelmente seu maior legado para o futuro do cinema). O mestre, que nos apresentou obras-primas como Táxi driver, Bons companheiros, Touro Indomável, Caminhos perigosos, Cassino, bem como o mais recente e não menos extraordinário O lobo de Wall Street, se consagrou de forma definitiva para muitos por seus filmes de gângster.
Pergunte a qualquer fanático scorsesiano que você conheça e ele dificilmente deixará de lhe dizer: "...e quando ele faz filme de máfia, de gangue, é outro departamento; o cara é foda! não tem pra ninguém!!!".
Pois bem: nos últimos anos Scorsese veio deixando seu público mais fanático de lado em prol de outros projetos cinematográficos (alguns não obtiveram o mesmo prestígio de muitos de seus maiores sucessos) e isso os deixou angustiados. Eu, que acompanhei a parceria do diretor com os atores Robert de Niro e Joe Pesci, volta e meia me pegava perguntando: "será que eu ainda vou ter a honra de ver esse trio juntos novamente?".
E eis que para a minha alegria e a de muitos - e graças também, é claro, à contribuição da Netflix nesse processo - ele realiza O irlandês, seu projeto mais ambicioso em muitos anos.
Adaptado do romance homônimo de Charles Brandt, O irlandês nos traz a história de Frank Sheeran (Robert de Niro, confortável e em seu elemento, como há bastante tempo não o via nos cinemas), um homem de vida simples que trabalhava como entregador de carne, isso quando não realizava pequenos bicos para sobreviver e sustentar a sua família. Isso até sua vida esbarrar com a do mafioso Russell Bufalino (Joe Pesci) que o contrata para trabalhos maiores e mais perigosos.
Porém, o que Frank não sabia é que os seus serviços bem prestados e sua discrição chamariam a atenção do todo poderoso do Sindicato dos caminhoneiros, o lendário Jimmy Hoffa (Al Pacino, impecável em todos os sentidos!). Hoffa é um homem controlador, que não gosta de ser passado para trás, muito menos feito de palhaço por quem quer seja. Logo, o contrário de Frank, que prefere permanecer na encolha e observar qualquer situação com cuidado. E dessa parceria inusitada surge uma grande amizade.
Mais do que simplesmente isso: é através de Hoffa que ele passa a conhecer o mundo podre dos sindicatos, sua ligação com a máfia, o enfrentamento que teve com o governo Kennedy, em outras palavras, a velha indústria da "troca de favores". À medida que vai galgando postos dentro dessa hierarquia, Frank pretere sua própria família, e vai se tornando um homem cada vez mais frio, sem sentimentos.
E é nesse momento que a genialidade de Scorsese - aliada à monumental edição de Thelma Shoonmaker - ganha corpo. O filme, cheio de digressões e metáforas as mais diversas, delineia o controverso mundo no qual Frank está inserido. E tudo isso muito bem ilustrado por planos-sequência magistrais e cenas em câmera lenta de tirar o fôlego. Dois aspectos me tornaram fã da película logo de cara: os olhares incriminadores de Peggy (Anna Paquin), filha de Frank, que representaram claramente o papel da mulher nesse universo sombrio e a maneira como o diretor desacelera a narrativa - a violência é mais calculada aqui, diferentemente de Bons companheiros e Cassino - com o intuito de revelar para o espectador que se tratam das confissões de um homem envelhecido, derrotado pelo tempo, portanto não há porquê mostrar um barbárie tão fetichizada.
A própria metáfora que o diretor constrói com a figura do pintor de casas (ou seja: do homem apto a fazer qualquer coisa, qualquer tipo de trabalho, pelo seu próprio sustento e sobrevivência) é muito bem vinda e reflete o amadurecimento do diretor, que consegue reinventar o gênero que ele próprio celebrizou com um brilhantismo contumaz. Sheeran é um "garoto de recados" que soube entrar e sair dessa hierarquia com extrema elegância, respeitando a todos e por isso mesmo sendo respeitado também.
Mas como nem tudo são glórias e comemorações na vida desses homens do crime o final da vida cobra o preço por seus pecados e, em alguns momentos, me fez lembrar do desfecho de vida de Michael Corleone em O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola. O abandono, o arrependimento por escolhas mal feitas, o deslize por não ter sido um bom pai quando teve tempo para isso e finalmente a sensação de estar sendo seguido e espionado pelo resto da vida, à espera de alguém que se vingue dos seus atos.
Terminadas as mais de três horas de projeção (que passaram de forma extraordinária, sem me deixar cansado em momento algum, tamanho meu envolvimento com a trama) chego à conclusão de estar diante do primeiro grande candidato ao Oscar de melhor filme do ano que vem.
O irlandês é a redescoberta de Scorsese como diretor, apresentando uma nova faceta para um gênero que ele próprio praticamente criou. E para tal narra a história de um homem comum que por se afiliar a um mundo obscuro, onde todos desconfiam de todos, acabou tornando sua própria vida invisível e carente de significado.
Dito isto, que comece agora a temporada de prêmios!