domingo, 24 de novembro de 2019

Vidas secundárias


Por que essa eterna mania de considerarmos as mulheres seres inferiores, que precisam ser legisladas por homens fortes, viris, tementes a Deus, provedores do lar? Até quando teremos de suportar uma sociedade infame, cruel e hipócrita que defende a ideia do sexo feminino como sexo frágil? Serão elas criaturas tão perigosas assim, passíveis de serem observadas 24 horas por dia, como criminosas do mais alto escalão? Sim, infelizmente empobrecemos a este nível. Praticamente animalizamos a própria sociedade (vide o número crescente de feminicídios nos últimos anos). 

E mesmo com toda essa realidade atroz e adversa a elas, não haverá quem as defenda de forma digna, que lute - mesmo que através da arte - por um espaço igualitário ou pelo direito delas expressarem suas próprias opiniões, galgarem seu próprio espaço nessa selva competitiva que é o mundo? 

O cineasta Karim Ainouz (que apresentou suas mulheres fortes e decididas nos longas anteriores O céu de Suely e O abismo prateado) fez isso de novo e de forma sublime com A vida invisível, vencedor da mostra Un Certain Regard no festival de Cannes e nosso postulante à uma vaga no Oscar de melhor filme estrangeiro do ano que vem. 

O filme - que é adaptado do romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, da escritora Martha Batalha - narra a história das irmãs Guida (Júlia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte), filhas de uma tradicional família portuguesa, baseada em ideais conservadores e por vezes extremos. Guida é a sonhadora, acredita ter encontrado o amor na figura de um jovem grego que a leva para o seu país. Em outras palavras: a clássica love story que, muitas vezes, acaba se desdobrando em consequências desastrosas. Já Eurídice é mais sensata, mas no fundo deseja mesmo é uma carreira como pianista e se prepara para os exames visando uma vaga num conservatório na Áustria. 

Contudo, os planos de ambas se mostram frustrados quando Guida regressa da Grécia com um filho no ventre e é expulsa de casa pelo pai, que quer mantê-la afastada da irmã, agora casada e, na visão dele, feliz. Mal sabe ele que o matrimônio da filha se torna tudo o que ela não desejou para sua vida. Pior: ela vê no relacionamento um impedimento para seu maior sonho. 

Com o passar dos anos, a única forma de contato entre as irmãs são as cartas que Guida escreve e que, ela acredita, chegam as mãos da irmã. E é nesse momento que chego à melhor reflexão oferecida dentro do filme. Trata-se de uma história sobre vidas secundárias, silenciadas pela velha moral do conservadorismo hipócrita que acredita piamente serem seus despautérios e decisões arbitrárias a melhor escolha para salvar a chamada família tradicional. 

Não é dado à Guida ou a Eurídice o menor direito à fala, à expressão seja em que formato ela se apresente. Elas são, como quase todas as mulheres daqueles anos 50 (e que muitas mulheres da atual geração - pasmem! - desejam que essa cultura vigore novamente), produtos da repressão e da cultura do conformismo. A velha história do "lugar de mulher é na cozinha", "você não manda em nada aqui" ou mesmo "saiba o seu lugar, antes que eu perca a paciência".  

O casamento de Eurídice em alguns momentos me lembrou a personagem de Julia Roberts no filme Dormindo com o inimigo, sempre acuada e precisando estar disponível para atender aos prazeres do marido. No entanto, quando tinha sonhos próprios era sempre indagada de maneira a castrá-la, pô-la no seu devido lugar de coadjuvante. "Você já não toca piano?", "você nunca fica satisfeita com nada". 

Enquanto isso, Guida enfrenta a barra de trabalhar para sustentar o filho sozinha, sendo várias vezes acusada de injusta pelo sistema por reclamar das condições trabalhistas pelas quais as mulheres passam todos os dias. E encontra em outros desgarrados sociais uma segunda família, que a acolhe sem rotulá-la do que quer que seja. 

Há muito tempo não vertia lágrimas ao assistir um filme e esse mereceu todas elas. Se atingirá ou não o zênite da glória na festa hollywoodiana eu não sei, mas que é uma das produções mais bem realizadas que eu vi nos últimos anos e um forte candidato a estatueta, ah isso é! 

Karim Ainouz volta no tempo sete décadas para falar do hoje opressor e do que promete ser o amanhã se as mulheres desistirem da luta agora. Seu manifesto em prol delas é visível - ao contrário do título do longa - e devastadoramente gratificante para quem (ainda acredita) que é possível uma sociedade mais justa num futuro próximo. 

Talvez alguns leitores me achem ingênuo ao escrever o parágrafo anterior. Honestamente... Ingenuidade para mim é acreditar que este modelo patriarcal é moderno e necessário para manter a ordem. É um direito das mulheres acreditar em sua emancipação, seja a que preço for, seja qual for o custo dessa batalha. Pois, do contrário, estaremos fadados a eterna omissão. 

A sessão termina, as luzes se apagam e vejo mulheres chorando, emocionadas (não só com o desfecho do longa, mas com a verdade assustadora da interpretação de Fernanda Montenegro, nossa maior atriz, não à toa sendo justamente homenageada por seus 90 anos. Em uma palavra: magnífica!). Uma senhora bem idosa se levanta e aplaude, enquanto o fado português embala os créditos. Ela é a cereja do bolo nessa sessão de cinema gloriosa. A vitória do passado contra o conformismo.

Que filme! Que vitória da arte! E tem gente querendo acabar com isso, com essa verdade, esse direito à luta, ao debate, a pensar diferente dos demais. 

Que eles, os canalhas que idolatram o passado sem reflexão, não vençam jamais!

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