terça-feira, 29 de março de 2022

Às vezes dava pra comprar um disco pela capa, sim


Toda vez que converso sobre música - seja ela brasileira ou internacional - ouço uma frase recorrente dita por metidos a entendedores da MPB e clássicos: "nunca compre um disco pela capa, pois você certamente irá se decepcionar - e muito!". E durante anos eu me peguei pensando na veracidade dessa frase. Mas hoje tudo mudou e por causa de um artista sensacional que me provou por a mais b que, às vezes, a capa diz tanto ou mais do que o conteúdo de um álbum musical. 

Provavelmente a geração que sucedeu o apogeu do vinil (ou LP, como o chamávamos mais corriqueiramente no passado) nunca entenderá a importância de uma capa de disco. Mas acreditem: em muitos casos ela era capaz de falar por si própria. Queríamos entender o que ela dizia antes mesmo de ouvir as faixas do disco. Pergunte a qualquer fã de rock sobre o disco da banana do Velvet Underground e ele concordará comigo na mesma hora.

Eu nunca desenhei - e essa sempre foi uma das minhas maiores frustrações na vida -, mas aprendi a admirar desde cedo quem se comunica com as imagens. E Elifas Andreato, um dos maiores capistas da história da música popular brasileira, que nos deixou hoje por sequelas de um enfarte aos 76 anos, sabia fazer isso como poucos. Tem quem diga até que foi o melhor no seu ofício. É provável que sim. 

O artista que morou em cortiço, trabalhou numa fábrica de caixas de fósforo, em agência de publicidade, foi caricaturista, muralista, entre tantas outras peripécias inventivas, sabia dar ao músico - fosse ele/a quem fosse - a cara que ele/a entendia ser a necessária para vender o seu trabalho de forma mais íntegra, e por que não dizer?, mais legítima. E um dado importante: nas palavras dele, nunca trocou seu trabalho por dinheiro. 

Não à toa criou mais de 700 capas. De Caetano Veloso à Noel Rosa; de Tim Maia à Adoniran Barbosa; de Carmen Miranda à Pixinguinha; de Elis Regina à Chico Buarque, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, o rapper Criolo e tantos outros. Em suas capas, vi um mundo de ideias, cores, talentos, até mesmo críticas sociais (quando necessário, é claro!). 

Minha capa preferida de sua lavra é, sem dúvida, Ópera do malandro, obra de Chico Buarque, composta como trilha sonora para o espetáculo teatral homônimo, lançada em 1979, mas um antigo vizinho meu, dos tempos de zona da leopoldina, adorava lembrar de Nervos de aço, álbum de Paulinho da Viola - para quem, por sinal, Elifas realizou sua primeira capa no início da carreira - em 1973. E nunca consegui esquecer das caricaturas dos artistas, feitas para a coleção História da Música Popular Brasileira, da Editora Abril. Minha mãe comprou vários exemplares dessa coletânea em CD e sempre que eu os pegava nas mãos me perguntava como ele conseguia fazer aquilo soar tão simples, tão fácil. 

Assim como ZIraldo, Maurício de Sousa, Henfil e outros mestres da pena, Elifas também foi um gênio dentro do seu ofício. Pena que o mercado fonográfico, com o passar dos anos, tenha se tornado um lugar tão mesquinho e fútil, mais interessado em cifras do que em verdadeiros talentos musicais.   

O garoto que saiu de Rolândia, interior do Paraná, para tentar a vida profissional, entendeu que aquele espaço, a capa do disco, que para muitos parecia tão inútil e descartável, por vezes sem sentido, era o seu trono particular. Ali poderia criar o que quisesse, do jeito que quisesse, e nem por isso acobertaria a genialidade da obra. Ele próprio defendia a ideia de que uma extraordinária capa não salvava um disco ruim do ostracismo. 

Contudo, muitas vezes me fez descobrir entre as gôndolas de lojas de discos hoje extintas como Modern Sound e Gabriela, que uma grande capa desperta sim a curiosidade dos fãs mais enjoados. Mais do que isso: ela é um pontapé mais do que necessário para querermos saber mais e mais sobre aquele trabalho, sobre aquelas músicas. Quem nunca comprou um disco só por causa de uma imagem psicodélica ou esquisita ou fora do comum na capa e descobriu em casa que o disco nem era essa coisa toda, que atire a primeira pedra!

Pois: pessoas como Elifas fizeram isso - e muito mais - com uma grandeza e um talento assustador. E por isso ele fará tanta falta no cenário musical dos próximos anos. Fique em paz, mestre! Pessoas como você são cada dia mais raras no nosso país.