segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O stalker


É preciso confessar algo aos meus leitores de longa data: ando meio assustado com essa geração de cinéfilos atuais que vão ao cinema apenas para conferir franquias e blockbusters vazios e que exigem cenas de ação rebuscadas, por vezes nonsense, beirando até mesmo o surreal. Hollywood definitivamente virou uma grande megalomania e isso não é necessariamente um elogio. Pelo contrário... Em muitos casos a falta de uma ideia ou premissa simples faz toda a diferença para que nós, espectadores, possamos seguir com gosto a narrativa proposta pelo diretor. 

E não é que o ano de 2021 quase acaba e eu me esqueço de falar de um clássico que mudou completamente a minha concepção sobre cinema americano e está comemorando 50 anos de carreira trazendo como sua principal virtude exatamente isso: uma ideia simples e bem realizada? Estou falando logicamente de Encurralado, filme de estreia do diretor Steven Spielberg, que já mostrava muito do que iria se tornar o blockbuster moderno nos anos seguintes. 

E para que vocês, leitores, tenham noção clara do quanto a premissa da história é simples, ei-la: David Mann (Dennis Weaver) é um homem de negócios que viaja pelas estradas empoeiradas dos EUA quando percebe que está sendo perseguindo por um caminhoneiro completamente enfurecido, sem nenhuma razão aparente para tal. E... Pois é: esse é o longa. Pouco mais de uma hora e 20 minutos da mais pura perseguição alucinada por uma América anos-luz daquela que conhecemos por suas vitórias, paisagens exuberantes e a eterna Las Vegas. 

David se esconde onde pode, procura refúgio num restaurante, tenta ajudar crianças na estrada, que porventura possam vir a ser atropeladas pelo maníaco, corre, corre muito, foge (e como foge!). A única coisa que ele não consegue é ver o rosto de seu algoz. Na verdade, nem ele nem nós, espectadores aflitos, doidos para ver o semblante aterrorizante do antagonista. 

E como pano de fundo para essa fuga desenfreada muitos closes e uma sensação recorrente de claustrofobia. Eu confesso: senti a todo momento a agonia de David, como se eu fosse o perseguido. E o caminhoneiro stalker não dá trégua um segundo sequer. 

Apenas para aguçar a curiosidade dos mais nerds e fanáticos, encontrei no IMDb a identidade do ator por trás do motorista. O nome dele é Carey Loftin, é considerado uma lenda dentre os dublês pilotos, tem quase 400 créditos em longas os mais diversos e ano que vem completará duas décadas e meia de falecido. Uma pena! Realizou um grande trabalho e passamos anos sem saber de fato como ele era, quase como o(s) ator(es) que interpretaram Jason na franquia Sexta-feira 13

Um outro detalhe que eu não posso deixar de mencionar acerca deste longa: antes de assistir Encurralado os filmes que eu conhecia de Steven Spielberg eram os mais famosos e celebrados pela mídia (E.T, Contatos imediatos do terceiro  grau, Tubarão etc) e eu passei, então, a ter uma outra dimensão sobre o diretor. Comecei a entender que ele não era apenas o cineasta por trás de criaturas assassinas e alienígenas fofinhos. A partir daí encontrei longas como A cor púrpura, Além da eternidade e O Império do sol e minha admiração pelo seu trabalho só aumentou. Em outras palavras: Encurralado, para mim, é um grande divisor de águas na forma como me relaciono com a sua filmografia. Um "antes e depois" curiosíssimo, diga-se de passagem! 

Se possível, após assistir ao filme, procurem também por produções como Corrida contra o destino, de Richard Serafian e Corrida sem fim, de Monte Hellman (com o cantor James Taylor protagonizando). Todos os três têm muitos pontos em comunhão entre si, falam de uma América que se perdeu com o tempo por culpa do próprio Tio Sam. São praticamente complementares em muitos sentidos e, por isso mesmo, marcaram época nos anos 1970. 

De triste mesmo somente saber que a indústria cinematográfica norte-americana preferiu deixar de lado o simples para explorar o universo espetacular em excesso (e pior: chamar toda essa neurastenia tecnológica de sofisticação. Pelo amor de Deus!). 

P.S (há tempos eu não sentia vontade de escrever um): será que ainda dá para sonhar, a esta altura da carreira, que a lenda Spielberg volte a esse universo modesto, porém bem feito e cheio de ironias bem calculadas? Eu, como cinéfilo raiz que sou, prefiro continuar acreditando que sim. Sonhar ainda é de graça, não é mesmo?


quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A mulher que canta


11 anos atrás eu saí de minha casa no subúrbio do Méier e fui a um cinema em Botafogo às escuras, sem o menor embasamento de qual seria a história por trás de Incêndios, longa do diretor Denis Villeneuve. Como únicas informações apenas um cartaz curioso e o fato de se tratar de uma história passada no Oriente Médio. Duas horas depois da sessão estava sentado numa das cadeiras do café dentro cinema, perplexo com tudo o que meus olhos acabavam de ver. 

Imagina então após tantos anos me deparar com a versão teatral do projeto (que, aliás, é originalmente uma peça de teatro, escrita por Wajdi Mouawad), dirigida por Aderbal Freire Filho - que já havia chamado minha atenção para todo o sempre com sua montagem de Hamlet com o ator Wagner Moura - e tendo o elenco capitaneado pela atriz Marieta Severo, disponível numa plataforma online de forma gratuita! Pois é... Eu tinha MESMO que conferir isso. 

Incêndios versão teatro é tão poderoso, em alguns momentos até mais, do que o filme de Villeneuve e nos faz pensar a todo momento em que mundo torpe estamos (sobre)vivendo. 

A peça começa com uma leitura de testamento após a morte de Nawal Marwan (Marieta Severo), protagonista da trama. Seus dois filhos, Jeanne (Keli Freitas) e Simon (Felipe de Carolis) recebem do testamenteiro uma carta em que a mãe pede que eles procurem por seu pai e seu outro irmão, para ambos uma figura até então desconhecida. Simon se mostra reticente desde o início e não deseja parar sua carreira como lutador de boxe para ir atrás de uma ilusão. Já Jeanne dá um tempo em suas aulas de matemática na universidade e decide atender ao pedido da mãe. 

E o resultado dessa escolha é uma viagem rumo ao inferno com passagem apenas de ida. 

À medida em que se aproxima do paradeiro de seu pai e irmão vão se acumulando as mais diversas experiências trágicas pelas quais a mãe passou em vida e Jeanne começa a entender o porquê dela ter se entregue ao silêncio já no fim da vida. Terrorismo presente em todas as esquinas, o fato dela ter sido obrigada a entregar para a adoção o filho que tanto desejara, fruto de um relacionamento visto como proibido pelos pais ("E ninguém esquece o próprio útero", diz Nawal à sua genitora), a formação dos núcleos de resistência e finalmente a catástrofe horrenda que se abateu sobre ela. 

Jeanne descobre a duras penas que Narwal era "a mulher que canta" e sua música era nada mais nada menos do que uma maneira de anestesiar a realidade dura e cruel do dia-a-dia. Narwal teve que passar sua vida se anulando como mulher e como ser humano, na vã esperança de reencontrar o filho tão amado e poder lhe pedir desculpas. No entanto, o desfecho de sua saga rumo à redenção acaba por se mostrar ainda mais atroz do que tudo o que já havia vivido até então. 

Marieta Severo está soberba na pele da amargurada mãe que sonha diariamente em reconstruir a sua vida ao lado de um pedaço que foi arrancado dela. Outro ponto de destaque são os objetos de cena que entram pelas laterais do palco, dando uma cara de ambiente esquizofrênico, desarrumado, ao lugar. E a trilha sonora, mezzo perturbadora mezzo rock n' roll, cai como uma luva para esmiuçar essa terra insólita onde ficamos com a impressão de que seremos atingidos por uma bomba atômica a qualquer instante, tamanha a virulência e o desrespeito que infecta o ambiente.      

Incêndios me fez lembrar de tudo o de melhor que já assisti do cinema iraniano e do oriente médio de uma maneira geral. Uma mescla de poesia com autodestruição muito bem construída por um texto forte, sem rodeios ou barrigas desnecessárias. E cada palavra está a serviço do sofrimento que invade a vida daquelas pessoas, mãe, filho e filha. 

E se eu continuar falando aqui vou acabar por entregar todo o elán da peça e isso eu não quero de jeito nenhum, pois desejo ansiosamente que mais pessoas vejam o exuberante espetáculo também. E se puderem, emendem na versão cinematográfica de Villeneuve (que, por sinal, foi indicada - merecidamente! - ao Oscar de melhor filme internacional em 2012).

Precisa dizer mais alguma coisa?


sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Este baiano rebelde


Como pode um homem que revolucionou a forma de pensarmos a sétima arte no Brasil ser tão esculhambado, insultado, xingado, menosprezado, vilipendiado? No Brasil, infelizmente, isso pode e não somente se referindo ao cinema, mas de forma geral. Bastou pensar fora da bolha, não seguir a demanda e pronto: lá vai você para o saco dos ressentidos, dos idiotas, dos antipatriotas, etc etc etc. E honestamente... Acho um bom negócio, no final das contas, estarmos fora desse estereótipo que não passa de "bater continência para uma hierarquia ou um sistema que nunca pensou na maioria". 

Refiro-me, no parágrafo anterior, ao cineasta Glauber Rocha que neste mês de agosto está completando quatro décadas da sua morte por problemas pulmonares. O baiano rebelde de Vitória da Conquista aprontou. E como! E justamente por isso o considero até hoje nosso maior expoente audiovisual. 

O problema? Glauber Rocha nunca foi livro de auto-ajuda ou um manual de regras mequetrefe. É complexo, difícil de interpretar, de entrar em sua mente fervilhante de ideias. Contudo, o que seus detratores não conseguem entender, é que essa é justamente a característica mais brilhante de toda a sua carreira. O fato de nos vermos confusos diante de um filme dele é traço de sua personalidade inconstante e, por vezes, inverossímil. E principalmente: de seu radicalismo dirigido a certos segmentos dessa sociedade partida que se acha modelo de alguma coisa. 

Na primeira vez que assisti a um longa dele - e era O leão de sete cabeças, rodado na África - tive a certeza logo de cara de estar diante de um artista diferenciado e de rebuscada compreensão. A priori o longa me pareceu uma grande colagem de fatos, mas depois entendi que eu é que estava completamente equivocado em minha interpretação leviana. Glauber era, isso sim, um provocador. Político, social, do que quer que seja. 

Dois meses depois dessa experiência inicial encontrei num sebo do centro da cidade o hoje cult Revisão crítica do cinema brasileiro, de sua autoria. E fiquei completamente estático com sua visão ímpar sobre a sétima arte nacional. Era a primeira vez que eu via alguém mudar conceitos daquela forma (e muitos deles se encontram atualíssimos até hoje!). O dono do sebo em questão, inclusive, me recomendou Cartas ao mundo, coletânea de correspondências que o diretor escreveu ao longo da vida. Mas esse eu só conseguiria ler uns dois anos depois. 

Entrei no Tempo Glauber, em Botafogo, e lá tive acesso a seus filmes mais famosos. Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (que tem até crítica no you tube do Martin Scorsese) me fizeram até mesmo enxergar o faroeste americano com outros olhos, tamanha a revolução que estava em jogo ali. Contudo, meu filme preferido do diretor continua sendo Terra em transe, talvez pelo fato de eu também enxergar a política partidária com aqueles mesmos olhos descrentes, desconfiados.  

Os curtas Di cavalcanti e Pátio, o extraordinário documentário As armas e o povo, rodado em Portugal após a revolução dos cravos, e o romance Riverão Sussuarana - único escrito por ele - ajudaram a moldar minha opinião sobre o artista que mais parecia uma força arrebatadora da natureza. Mas era preciso saber também o que os outros pensavam sobre sua obra, seu caráter, suas ideias revolucionárias. 

Entram em cena a partir daí os ótimos documentários de Sílvio Tendler Glauber: o labirinto do Brasil e de Eryk Rocha (filho do diretor) Cinema novo e o livro A primavera do dragão - a juventude de Glauber Rocha, do eterno multimídia Nelson Motta. E eu então me dei conta da quantidade de pessoas, políticos, artistas, pessoas comuns, que Glauber incomodou com sua língua ferina e seu método antissistema. 

Ele foi a melhor representação do que eu costumo chamar no país de animal político. Enfrentou quem quer que fosse em nome de sua arte, não tinha o menor interesse em produzir cinema comercial, para vender pipoca e refrigerante nas salas, e pagou um preço alto por se posicionar contra aqueles que querem ver o mundo numa eterna repetição de si mesmo (e nisso se equivaleu aos maiores da história, não tenham dúvidas). 

E saber que lá se vão 40 anos sem um artista desse quilate é realmente devastador. Já prevejo este humilde artigo sendo detonado pelos ressentidos e fascistas, mas quer saber? Eles que se danem! A nossa sétima arte precisa - e muito! - de mais artistas como esse inacreditável baiano que rodou o mundo e falou do país como poucos. 

Resta saber onde encontrá-los neste século XXI do retrocesso e do exibicionismo... 


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Terapia de choque


Desde moleque - mais precisamente, meus sete, oito anos - sou fascinado por tudo o que verse sobre viagens no tempo. Cheguei a ler, na adolescência, o romance A máquina do tempo, de H.G. Wells, umas quatro ou cinco vezes, sempre procurando por informações novas que eu não tivesse encontrado na leitura anterior. E sempre encontrava um elemento novo que aguçava ainda mais a minha eterna curiosidade. O tempo passou, eu me tornei cinéfilo e obcecado com o gênero ficção-científica, que volta e meia dá as caras aqui no meu aparelho de DVD (eu sei... Estamos na era do streaming, mas eu ainda não larguei a mídia física de todo). 

E o mais importante: quanto mais pareça nonsense ou estapafúrdio o tema da ficção, mais interessado eu fico. Na verdade, eu até rezo para que o roteirista complique, dificulte ainda mais a minha experiência, pois é justamente isso que torna a narrativa palatável ao meu gosto particular. 

Dito isto, é com enorme prazer que eu recomendo aos loucos de plantão (como eu) o interessantíssimo podcast Paciente 63, do chileno Julio Rojas e com produção de Rodrigo Vizeu, disponível no site Spotify desde o mês passado. Fiquei sabendo da proposta através do canal Curta! na tv a cabo e fiquei em êxtase após ouvir o último dos dez episódios.   

A trama se passa em 2022 e trata de uma série de sessões de terapia envolvendo a doutora Elisa (voz de Mel Lisboa, que ficou famosa aqui no brasil pela série Presença de Anita) e o paciente que dá título à serie (voz do cantor e ator Seu Jorge, que recentemente interpretou o guerrilheiro Marighella no filme homônimo de Wagner Moura), que foi encontrado desacordado e sem roupas na rua e alega ter vindo do futuro, mais especificamente quatro décadas à frente. 

O paciente, que se apresenta como Pedro, diz à doutora que procura pelo paciente zero, agente responsável pelo início da grande pandemia. A princípio ela até diz ao homem "você chegou atrasado", mas ele a interrompe, exclamando que a verdadeira pandemia que dizimará a sociedade mundial sequer começou. Daí em diante o que nós, ouvintes, iremos vivenciar é uma narrativa sórdida que se propõe a desconstruir o mundo no qual estamos vivendo e no qual ainda iremos viver (se não fizermos mais nenhuma cagada pelo meio do caminho). 

Entre as inspirações de Rojas para criar a história estão um antigo paciente que ele atendia na época em que trabalhava como dentista até a Teoria de múltiplos mundos, de Hugh Everett. Eu, logo de cara, me peguei pensando, enquanto ouvia o relato de Pedro, em duas produções cinematográficas americanas que mexeram muito comigo na época em que as assisti pela primeira vez: Os doze macacos, de Terry Gilliam - e há muito de James Cole (personagem de Bruce Wiliis) na maneira como o personagem principal foi construído - e Efeito borboleta, da dupla Eric Bress e J. Mackye Gruber, com o ator Ashton Kutcher na pele do jovem que viaja por realidades múltiplas. 

Mas cabe aqui também um aparte: não duvido nada que muita gente passe a ler Stephen Hawking, Carl Sagan e Arthur C. Clarke enquanto se delicia com os episódios cheios de malícia e informações interligadas.

Paciente 63 é um grande exemplo de terapia de choque e esmiuça de forma brilhante a relação médico-paciente levando-a à um patamar ainda mais gigantesco. E não somente isso. Cai como uma luva na mentalidade maratonista dos fãs de séries da Netflix, Amazon, HBOmax e outros serviços de streaming porque se debruça sobre um tema que é pertinente ao mundo no qual estamos vivendo nesse conturbado século XXI: a eterna indefinição da sociedade - e do próprio mundo - sobre o que esperar do futuro, em meio a tantas catarses, conflitos e conspirações. 

Termino de assistir a toda série em dois dias e me pergunto se haverá uma segunda temporada (acredito que muita gente se perguntará o mesmo). Caso haja, não vejo a hora de ouvi-la também, pois trata-se de um projeto bem cuidado, estiloso e repleto de curiosidade. 

Eu, que não sou um fã notório de podcasts (na verdade, é raro eu ouvi-los e na maioria das vezes é sempre sobre críticas de cinema), confesso: pretendo dar mais atenção ao formato daqui pra frente, agora que eu sei que tem gente desse calibre produzindo por aqui. 

E como não quero estragar a festa de ninguém nem entregar spoilers por descuido, só me resta dizer: quer saber mais do que isso? Só indo no spotify, então...


quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Shazan e o Irmão Coragem


Como iniciar um texto desses, que já nasce triste no primeiro apertar da tecla do computador?

É fácil perceber - para mim, pelo menos, sempre foi - quando estamos diante de um artista excepcional, que foge do comum e cria uma identidade própria, que se confunde com os veículos para os quais trabalhou. São raros os que conseguem essa façanha e os que conseguem atingem ao Olimpo dos gigantes. E muito por conta disso continuamos acompanhando sua obra. Quando esses seres especiais partem o sentimento de vazio puro e simples não explica de forma exata o que significou a presença deles no planeta terra. 

Em outras palavras: eu me sinto completamente vazio quando um exemplar raro desses nos deixa. 

É com enorme pesar que, entre a noite de ontem e a manhã de hoje, fico sabendo da notícia de que dois desses seres excepcionais nos deixaram. O Brasil e a dramaturgia nacional perdem os atores Paulo José e Tarcísio Meira. E a primeira reflexão que faço ao saber da notícia é: o melhor da nossa cultura está morrendo nesse maldito 2021!

Paulo sempre será, para mim e para a geração a qual pertenço, o eterno Shazan, parceiro de Xerife (vivido pelo já também falecido Flávio Migliaccio), o programa que fez milhares de crianças sentarem em frente à tv. Já Tarcísio sempre terá de carregar, por onde quer que vá, a figura austera e heroica de João Coragem, provavelmente o personagem mais falado da história da teledramaturgia brasileira desde que eu ouvi falar sobre tv a primeira vez. Contudo, iludem-se aqueles que acreditam que ambos se tornaram reféns desses personagens marcantes.

Enquanto Tarcísio fez história na televisão com personagens grandiosos como O Capitão Rodrigo de O tempo e o vento e Renato Villar de Roda de fogo (e esta é certamente a primeira lembrança nítida que eu tenho do ator), Paulo fez de sua persona um sinônimo de nossa sétima arte, seja como Cassy Jones, Macunaíma, Policarpo Quaresma, o narrador engraçadíssimo de Como fazer um filme de amor (só a voz dele já valia um filme) e até mesmo no fim da carreira como o velho palhaço no filme homônimo do ator e diretor Selton Mello. 

Fora da telas é difícil imaginar Tarcísio sem lembrar de sua esposa, Glória Menezes. Afinal de contas, foram mais de seis décadas de um matrimônio que muitos dizem não haver igual nem dentro muito menos fora da ficção. Já Paulo conviveu ao longo de boa parte da vida com o Parkinson e mesmo com todas as limitações provenientes da doença levantou a poeira, deu a volta por cima e nos entregou interpretações memoráveis e únicas.

Ambos viveram mais de oito décadas produtivas, encarnando a alma e a memória cultural deste país que, infelizmente, não dá a mínima para a própria história, o próprio idioma, a própria cultura. E por isso mesmo são insuperáveis em seus respectivos ofícios. Perdemos um para a pneumonia e o outro para a covid, que ainda habita entre nós embora muitos prefiram negar o fato ou viver de festa em festa. Por isso só me resta, enfim, lastimar. 

Não é todo dia que perdemos dois gênios de uma vez só e essa é a primeira vez que eu escrevo um obituário duplo, pois acredito que eles precisavam estar juntos no mesmo texto, tendo em vista que foram tão iguais em talento. E acredito piamente que muitos que lerem este humilde artigo concordarão comigo. 

Ao fim, o que fica para nós, fãs apaixonados, é a história, o legado e a certeza de que sempre poderemos revê-los na telinha ou na telona em reprises inesquecíveis. E por tudo o que fizeram nas telas deixo aqui meu muito obrigado. Por tudo. "Vocês eram foda!".   


domingo, 8 de agosto de 2021

Os kamikazes


Se teve uma coisa que a pandemia do coronavírus trouxe em termos cinematográficos foi a popularização de longas-metragens surreais, desses capazes de explodir a cabeça de qualquer espectador. Que o digam Army of the dead: Invasão em Las Vegas, de Zack Snyder e Godzilla vs. Kong, de Adam Wingard, e suas respectivas ausências de um bom roteiro e o excesso de efeitos especiais e cenas de ação que beiram às vezes o nonsense! 

Entretanto, o ano - que ainda está longe de acabar - e hollywood aprontaram mais uma e entregaram de lambuja para o público fanático por super-heróis e filmes da DC o alucinado O Esquadrão Suicida. Resultado: agora você poderá dizer para as próximas gerações que 2021, no que se refere à sétima arte, foi um ano realmente louco. 

Amanda Waller (Viola Davis, ainda uma das melhores coisas do filme) novamente recruta o grupo de bandidos e desajustados mais perigoso do planeta para mais uma daquelas missões que você sabe de antemão que serão quase impossíveis. E eles, os bandidões, que almejam uma redução significativa em suas penas, lógico que aceitarão.

Desta vez o destino é o Corto Maltês que vive uma espécie de golpe de estado e possui as instalações de um certo projeto estrela do mar (é insano, eu sei...). São mandadas duas equipes, uma delas apenas para distrair a vigilância do país. Como já era de se esperar, muita morte, explosão, sangue jorrando e os poucos que sobrevivem verão suas vidas cruzarem com a outra turma, aquela que saltou em outro ponto do país. E a consequência disso é... Sim, isso mesmo que o seu cérebro está matutando. 

Parece confuso e é. Na verdade, desde a versão original dirigida por David Ayer cinco anos antes, essa era uma das grandes "qualidades" do filme, que se prometia nonsense desde o trailer. O resultado não agradou aos mais fanáticos que viram na presença do diretor James Gunn, da franquia Guardiões da Galáxia, da Marvel, assumindo o projeto uma chance de verem seus sonhos enfim realizados. Mas cá entre nós... Não mudou tanto quanto eu estava esperando, não! 

Arlequina (Margot Robbie) continua sendo a coisa mais engraçada do filme. No lugar do Pistoleiro, vivido por Will Smith na versão original, entra o Sanguinário (Idris Elba) e eu até confesso que achei um avanço. Rick Flagg (Joel Kinnaman) desta vez não lidera o grupo como antes, mas exibe sua macheza quando pode. Entre as novidades do elenco a que mais se destaca é o Pacificador (John Cena) com direito à zoação para o capacete dele. E olha que ainda tem uma doninha - não, é isso mesmo que você leu! -, uma jovem que controla ratos, um louco que atira bolinhas e uma tubarão meio lesado com a voz do Sylvester Stallone.

E o principal: todos eles kamikazes, dispostos a ir até às últimas consequências para realizar a missão combinada enquanto tiram sarro um da cara do outro. Como eu disse antes, o filme mais surreal do ano. 

Para os que ficam procurando correlações entre o projeto e outros filmes, há um clima (eu disse um clima) meio tarantinesco na maneira como os mortos vão se acumulando a cada rajada de balas proferida e uma leve homenagem - e eu disse leve - à Os doze condenados, de Robert Aldrich. Ah! E a trilha sonora, que é ótima, ajuda a compor o clima de exótico que o filme entrega sem medo de ser feliz. Afinal de contas, minha gente, é tudo baseado em histórias em quadrinhos.

Vi algumas pessoas reclamando na internet sobre a ausência de nudez e cenas de sexo (e olha que o filme tem classificação indicativa 18 anos). Mas é a velha hipocrisia norte-americana falando: matar, estraçalhar, estrangular pode. Peitos e bundas, nada feito! Ainda mais em tempos de MeToo. Faltou falar alguma coisa? Ah! Tem a brasileira Alice Braga também no elenco fazendo uma ponta como uma guerrilheira. Pois é... 

Se eu contar mais vai ter spoiler e gente me jurando de morte. Logo, melhor parar por aqui. E apreciar essa paranoia toda enquanto a DC decide o que fará a seguir com o diretor. 


terça-feira, 3 de agosto de 2021

Ouvir música ganhou outra definição


De tudo que eu escrevo na internet nada é mais complicado do que falar sobre música. E por uma razão fácil de explicar: porque é difícil fazer com que meus leitores entendam como eu recebo, ouço a música. Dentre todos os formatos que compõem o segmento cultural, vejo a música como uma disputa territorial, de gerações. Eu posso amar Renato Russo e ter um vizinho que considera o Legião Urbana uma perda de tempo (e acreditem: esse vizinho existe aqui na rua onde eu moro!). E posso achar o Sepultura um atentado contra a música e ser rechaçado - como já fui - nas redes sociais por gente que só conhece rock n' roll e nada mais. 

Entretanto, é inegável que o surgimento da MTV (ou Music Television), mudou completamente os parâmetros da minha - da nossa - relação com a música. Ela deixou de ser simplesmente ouvida para ser vista (e revista e revista e revista) ad aeternum. 

No último domingo a MTV comemorou quatro décadas de existência e, em se tratando de um veículo com proposta - na época - específica, é louvável que ela tenha chegado a tanto. Muitas outras emissoras não tiveram a mesma sorte e olha que começaram antes dela... 

Quando o videoclipe Video Killed the Radio Star, da banda The Buggles, foi exibido em 1º de agosto de 1981, a emissora ainda não sabia, na verdade não fazia a menor ideia de onde poderia chegar. E chegou longe, bem longe. 

Eu lembro de vir correndo do colégio no final dos anos 1980, largar a mochila em cima do sofá e antes mesmo de almoçar ligar a tv para ver os clipes e entrevistas do canal. Minha mãe reclamava que eu tinha preguiça até de tirar o uniforme. Mas ela não entendia. Aquelas pessoas estavam mudando completamente a minha vida, falando a minha língua, pensando com a mesma cabeça que eu. E isso não era pouca coisa, não!

Há lembranças audiovisuais minhas eternas, que moldaram minha formação musical para sempre. E só para fornecer um pequeno aperitivo para os leitores dos meus artigos, vai abaixo uma série de clipes indispensáveis para entender (por baixo) o que significou o canal para mim:

I want to break free, Queen

Freedom '90, George Michael 

Money for nothing, Dire Straits

Você não soube me amar, Blitz

Thriller, Michael Jackson

Take on me, A-HA

Vogue, Madonna

When doves cry, Prince

Kátia Flávia, Fausto Fawcett e os robôs efêmeros

Losing my religion, R.E.M

Nothing compares 2U, Sinead O'Connor

...e isso para ficar no básico. 

Outro ponto fundamental da MTV foi conhecer a legião de VJs que fizeram a minha cabeça naqueles tempos: Gastão, Thunderbird, Zeca Camargo, Astrid, Cuca, Marina Person, Léo Madeira e tantos outros. Muitos deles ainda estão por aí, em outras emissoras. Porém, não mais com a intensidade daquela época. 

E isso sem contar os shows, turnês, as coberturas do Rock in Rio, a série de CDs Acústico MTV (que eu, volta e meia, procuro para ouvir de novo no spotify) e outras informações como, por exemplo, bastidores da sétima arte. Em suma: era uma televisão que falava a língua dos jovens como nenhuma outra. 

Mas - e tudo na vida tem um mas - o tempo passou, o you tube e o vimeo chegaram e a MTV entendeu que as pessoas não queriam mais ver os clipes na sua grade e mudaram a programação, perdendo assim gradualmente o interesse desse que vos escreve. Com a chegada de programas como Namoro MTV, Os piores clipes do mundo ou séries de reality show eu entendi que era hora de procurar um outro lugar para chamar de meu. E assim o fiz. 

Contudo, confesso que sempre haverá um espaço no meu coração (e na minha memória) para relembrar desses pioneiros. E mais: até hoje não vi ninguém fazendo nada que chegasse sequer perto do que esses caras fizeram 40 anos atrás. Demérito da própria tv? Digam-me vocês, se tiverem a resposta. De concreto mesmo somente uma frase: ouvir música, depois da MTV, ganhou outra definição. 

E que saudades da porra eu tenho daquela época!