O ano vai chegando ao fim e com ele aparecem aquelas, por vezes sórdidas, por vezes agradáveis, listas de melhores do ano. Os melhores discos, filmes, livros, peças, exposições, etc etc etc (haja etc). Fim de ano é sinônimo de etc. E por vezes me pego pensando que estou no mundo da lua porque os melhores do ano nem sempre parecem de fato os melhores para mim. Tudo me parece um tanto combinado, um tanto programado previamente para aparecer naquelas listas. Será possível que todos escolham os mesmos artistas, os mesmos trabalhos, os mesmos melhores? É sério isso? Digo: é realmente sério?
Então chego ao segundo parágrafo com um gosto amargo na boa: o de que o ano acabou e por conta disso não há porque esperar por mais nenhuma novidade, nada que me toque de uma maneira um pouquinho diferente que seja. Acabou. "Aceita que dói menos", dirão os alienados, os baba-ovos da indústria cultural, do mercado corporativo, com aquele discursinho típico de quem não pensa com a própria cabeça.
Sinto desapontá-los, meus caros detratores, mas 2019 ainda não acabou no segmento música, pois eu ainda não tinha escutado o último álbum da cantora paulista Mariana Aydar, o excelente Veia nordestina.
Resumindo de maneira bem primária: Veia nordestina é uma grande homenagem a um gênero musical pelo qual eu tenho uma enorme devoção (mais até do que o rock e o samba). Falo do forró. Figuras como Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira sempre fizeram parte da trilha sonora da casa de minha vó, uma fanática pelo ritmo musical. Se não tocasse "xote das meninas" na casa dela, ou tinha alguma coisa de errado ou ela estava doente.
Contudo, aqui Mariana desconstrói o gênero, o mescla com elementos e ritmos eletrônicos sem perder o frescor do original, o tira de sua zona de conforto, levando-o além do óbvio corriqueiro que, a meu ver, vem sendo a tônica de certos segmentos da MPB nos últimos anos.
O álbum abre, com a faixa-título, de forma deliciosa, delimitando o território agreste, o clima de cidade de interior, com poucos habitantes, vocês sabem: aquela velha história da cidadezinha que só tem uma praça, uma igreja, um mercadinho e olhe lá. Eu me senti viajando para dentro desse universo bucólico, mas extremamente engrandecedor por ser a cara do nosso país.
A cantora chama o cavalheiro para a dança em "condução", mas avisa: sem preconceitos! menina dançando com menina não é aberração (uma puxada de orelha na ministra Damaris? Quem sabe!); em "se pendura" fala de encontrar um amor em tempos tão difíceis e melancólicos como o atual e vai logo deixando claro para o amado, cartas na mesa: "se não quiser, tem alguém que queira" e ""não vou prometer que é pra vida inteira"; e coloca até discos voadores na roda, dançando ao som do triângulo em "forró do ET" (muito bem acompanhada pela rainha do gênero, a eterna Elba Ramalho).
O cover de "espumas ao vento" (clássico eterno de Accioly Neto) quase me fez ir às lágrimas. Considero essa canção uma das mais belas já feitas em nosso cancioneiro até hoje.
Porém, Aydar não quer falar somente de alegrias. Ela sabe de antemão que esse universo musical também fala de um povo sofrido que luta para sobreviver. Em "represa" ela fala de raiva, de solidão, de conciliação, de casais que já deram o que tinha que dar; com "xilique" - uma das melhores faixas do álbum - ela se debruça sobre amores não consumados, jura tratar-se de uma história real, porém também pode ser um de muitos causos contados no nordeste, que adora lendas urbanas e ficções as mais diversas (não à toa é de lá que vem nossa melhor literatura); já com "São João do carneirinho" reflete sobre a fé, um tema muito caro à nossa cultura, e que vem rendendo muita intolerância nos últimos anos, e provoca os extremistas em determinado momento com a passagem "quantas formas tem Deus, quantos véus, quantos santos são seus". Achei de uma ousadia espetacular!
Ao lado de Maria Gadú em "triste, louca ou má" fala de rupturas, dessa mulher que não aguenta mais ser a coadjuvante, viver em segundo plano. E manda um recado para as covardes e submissas: nenhum homem, nenhuma casa, nem tua própria carne te define. Em tempos de "meu corpo é político" achei a proposta interessantíssima. É, com certeza, a música mais engajada, mais século XXI do disco.
Mas a cereja do bolo é "na boca do povo" em que desmitifica o senso comum e o discurso dos moralistas, dos machistas, dos fascistas, dessa gente que adora pré-conceituar tudo e todos. E para isso, coloca em xeque figuras humanas e bordões que não saem da cabeça dos que se acham melhores do que o restante da sociedade: o homossexual, a piranha, a frase "bandido bom é bandido morto" (que ganhou força de novo depois das últimas eleições). E tudo cantado num tom irônico que é bem a cara desse ritmo travesso.
E para que não me acusem de encerrar o trabalho de forma vazia, abrupta, a cantora ainda reservou a faixa final para homenagear o grande sanfoneiro Dominguinhos. Resultado: saudade pontuando toda a canção, o nome do artista virando verbo ("domingar") e um batimento cardíaco terminando o disco e deixando um tom de nostalgia no ar.
Precisa dizer mais alguma coisa? Então toma.
Veia Nordestina é a MPB em seu estado mais lúdico, mais agradável, voltando seu olhar para questões que o brasileiro típico parece ter esquecido dentro de alguma gaveta, por preferir se tornar rancoroso e cego às questões contemporâneas. Mais brasileiro do que esse disco nos últimos anos, impossível. E o mais importante: coloca Mariana Aydar (magnífica, coesa!), de uma vez por todas, no panteão de nossas melhores vozes femininas.
Que álbum! Que experiência magistral!
Por que a MPB não consegue ser isso mais vezes ao longo ano? Quem souber me responde aí nos comentários.
P.S (eu não podia deixar ele de fora): a maneira como a dor de cotovelo aparece aqui nesse disco, de forma inteligente, irreverente, os sertanejos universitários - reis do ressentimento - nunca vão conseguir entender, que dirá replicar com o mesmo brilhantismo!