domingo, 28 de março de 2021

1999 foi um ano bom


Entro mais uma vez no canal do you tube Meus dois centavos, do crítico de cinema Tiago Belotti, e me deparo com um vídeo sobre o clássico (que me perdoem os enjoados de plantão, mas sim... para mim é um clássico!) Clube da luta, do diretor David Fincher. E já na abertura ele me ganha de cara com uma introdução exaltando o ano de 1999 como um ano extraordinário para a história do cinema. 

Como preciso de mais detalhes para formar minha própria opinião vou ao Google e fuço tudo que tenha a ver com o ano até dizer chega, críticas, links, crônicas apaixonadas e trailers, muitos trailers. E chego à conclusão de que Tiago está certo: 1999 foi um ano bom para os cinéfilos e acho que eles deveriam agradecer, de joelhos. 

Desde já peço licença ao escritor beatnik John Fante, de quem satirizo o título de um dos seus romances mais famosos, 1933 foi um ano ruim. No caso aqui aconteceu justamente o contrário. E encontro num dos textos que li sobre o período uma frase com a qual concordo ainda mais: "para muitos críticos, 1999 foi o último grande ano do cinema". 

Quando vejo o que empresas do ramo de entretenimento audiovisual como a Marvel, a DC, a Lucas Film, só para ficar nas maiores atualmente, estão fazendo com a indústria do cinema, engessando possibilidades, repetindo fórmulas, perdendo tempo com remakes desnecessários, é triste admitir mas... Parece, sim, ter sido o último. E lembrem-se: eu disse parece.  

E a princípio é preciso priorizar uma palavra fundamental para explicar a excelência desse ano: diversidade. Em 1999 não éramos tão apegados à franquias (pelo menos, não de forma tão doentia) como atualmente. Comédias, ficções-científicas, dramas existenciais, terror e guerra conviviam pacificamente, respeitando o espaço alheio e isso era um deleite para os verdadeiros fãs da sétima arte. 

Em 1999 descobrimos que Cole (Haley Joel Osment) "via gente morta o tempo todo" e nos apavoramos - e deslumbramos - com o plot twist proposto por Shyamalan; vimos os irmãos Wachowsky (naquela época, ainda Andy e Larry, antes da cirurgia que lhes mudou de gênero) ditar o que seriam as cenas de ação do cinema dali para a frente. E depois de Matrix nada mais foi como antes... E voltando a Fincher, sua crítica ao consumismo disfarçada de pura testosterona nos ensinou que o dark, o obscuro e o denunciatório viriam para ficar (quem viu Réquiem para um sonho e Donnie Darko sabe do que eu estou falando).

Almodóvar nos entregou com toda a delicadeza que, às vezes, lhe é peculiar Tudo sobre minha mãe, para muitos sua obra-prima eterna! Wim Wenders, mestre por trás de clássicos como Paris, Texas e Asas do desejo, vai à Cuba e nos presenteia com o lúdico e monumental Buena vista social club. E Martin Scorsese, meu diretor-fetiche desde moleque, voltou um pouco ao universo que o consagrou em Táxi driver e no lugar do táxi nos apresenta ao paramédico, motorista de ambulância em Vivendo no limite (obs: um filme para ser redescoberto urgentemente pelas novas gerações). Sim, os mestres do cinema também deram seu recado. 

Contudo, foi também um ano de grandes surpresas e projetos inusitados. Entre os meus preferidos, Magnólia (do agora meu novo diretor-fetiche, Paul Thomas Anderson) e as angústias de uma geração que nunca soube perder; À espera de um milagre, mistura de Frank Darabont com a genialidade que só mesmo o texto de Stephen King pode nos proporcionar (e olha que ele adaptou o mestre pelo menos outras duas vezes para o cinema!); O informante, de Michael Mann, que chegou a render uma aula universitária em Harvard, tamanho o preciosismo e a competência de quem realizou o projeto e, claro, não podia faltar, Quero ser John Malkovich, que meio que inaugura um período muito louco onde realizadores, diria, esquizofrênicos, botam para fora seus demônios e paranoias pessoais em nome da boa arte. 

Como nem tudo são flores, é preciso também lembrar que 1999 foi, infelizmente, o ano que os cinéfilos viram o último longa do mestre Stanley Kubrick, De olhos bem fechados. E ele já se encontrava bastante debilitado durante as filmagens. Acham que ele arregou por causa disso? Nada. Colocou o erotismo e a crise no casamento em xeque como poucos. Saudades de você, Kubrick! Demais!!!

Como eu sei de antemão que são tantos filmes que eu escreveria aqui cem parágrafos e não conseguiria chegar ao zênite da questão sobre esse extraordinário 1999, deixo abaixo mais uma listinha complementar para iniciados no período:


Garota interrompida, de James Mangold

O mundo de Andy, de Milos Forman

Três reis, de David O. Russell

Beleza americana, de Sam Mendes

Meninos não choram, de Kimberly Pierce

O gigante de ferro, de Brad Bird

Existenz, de David Cronenberg

etc etc etc...


E depois de tanta coisa boa, tanta genialidade, como é que fica para mim não comprar a briga dos streamings em meio a tantas continuações e sagas repetitivas (refiro-me ao formato) que nada mais fazem do que enriquecer quem já é milionário há tempos? Não, sério, não dá. Mesmo. 

E ainda querem acabar de vez com o dvd...


quinta-feira, 25 de março de 2021

Causa mortis


Tom Jobim, mestre da Bossa Nova, dizia que o "Brasil não é para principiantes". Eu, que sempre o achei generoso, digo mais: o mundo não é para principiantes. E muito por nossa própria culpa. Fazemos o que queremos para destruí-lo dia a dia e, no final das contas, dizemos para os demais que tudo não passa de uma reles teoria da conspiração ou fake news ou, quem sabe, intriga da oposição. Pobres coitados! Não sabem o mal que estão fazendo às suas próprias sobrevivências. 

Em Galáxias, peça de Luiz Felipe Reis (que trabalhou em cima de textos do autor argentino J. P. Zooey, autor de Sol artificial) e que tive o privilégio de assistir online na programação do Festival de Teatro Midrash Cultural, é exposta de forma inteligente e complexa aspectos sobre nossa eterna mania de esfacelarmos o mundo de tempos em tempos. E o principal: em nenhum momento eu senti que o tom do espetáculo tinha como intenção fazer eu encarar a realidade como um elo perdido. Pelo contrário. Os criadores da montagem me ofereceram, isso sim, um sopro de esperança. 

A peça começa com uma dupla de irmãos, Juan (Ciro Sales) e Zoe (Julia Lund), que falam a respeito do suicídio de um cientista um tanto excêntrico (interpretado pelo excelente Leo Wainer), cujo estudo visava desvendar o enigma da existência da vida na terra. Ele se matou enquanto assistia pela tv o lançamento do ônibus especial Columbia. E durante a leitura de seu testamento ele pede que seus vizinhos tentem descobrir a causa de sua morte. 

A partir daí o que se vê é uma série de reflexões interessantíssimas sobre nosso papel nisso que chamamos corriqueiramente de mundo. Vida, morte, prazer, trabalho, ética, fé, religião, ontem, hoje, amanhã (caso ele exista), tudo se mescla num espetáculo que, em alguns momentos, lembra um grande congresso acadêmico. 

O cenário é composto de um grande cubo, que aberto dá lugar à residência de Juan e Zoe. Ao lado, uma banda toca ao vivo. Mais do que isso: interfere diretamente no andamento dos diálogos, às vezes fazendo com que nós, espectadores, precisemos ficar bastante atentos para não perdermos uma vírgula sequer do texto proferido pelos atores. E eu, confesso, vi nessa escolha um certo tom de esquizofrenia por parte da montagem. Aliás, esquizofrenia e claustrofobia são duas instâncias que acompanham o ritmo de toda a peça. 

Adorei as escolhas musicais que embalam os monólogos de cada personagem (mérito de Pedro Sodré), a fotografia luxuosa de Leo Aversa e as projeções em vídeo de inúmeras catástrofes contemporâneas (de responsabilidade de Barbara Werneck) para compor essa alegoria sombria, mas extremamente necessária para encararmos esse mundo que não cansamos de maltratar. 

O conjunto geral mistura ficção científica, realismo mágico, as famosas palestras do TED talks, bem como citações à filmes hollywoodianos recentes que abordaram o tema do derrotismo contemporâneo. 

Em outras palavras: nos vemos diante do retrato vivo do niilismo mundial. Um lugar onde fascistas e ignorantes posam de reserva moral da sociedade, enquanto cidadãos de bem parecem acuados e a vida como nós a conhecemos virou uma versão grotesca de uma balada inútil e artificial, uma "festa que nunca termina" (para citar o título de um longa-metragem do cineasta Michael Winterbottom que, para mim, é a epítome do que virou a sociedade contemporânea). 

Viramos reféns de testes, ordens, subempregos e uma total falta de perspectiva para o dia seguinte. E ainda assim nos orgulhamos de nossa própria rotina e mediocridade interior. Ou seja, "a ignorância é uma benção" virou o mantra do século XXI. E embora, ao final do espetáculo, o cientista morra sem descobrir a resposta para sua pesquisa, me fica a sensação de que na verdade quem realmente morreu foi a sociedade. E por pura ignorância. 

Achou pouco? Então, quando puderem, e a pandemia acabar, procurem Galáxias no teatro mais perto. Porque eu sequer arranhei a superfície do problema. 

P.S longo: duas coisas que eu não posso deixar de falar: a peça termina ao som de "walk on the wild side", do cantor Lou Reed, um artista que devotou a sua obra à esmiuçar o submundo da sociedade (e não consigo imaginar outra canção que exemplifique melhor o declínio e o tédio da atual geração). E, em muitos momentos, enquanto degustava o texto apresentado, fiquei pensando em Fausto Fawcett e suas músicas loucas, mas não menos ácidas e relevantes para entendermos no que o atual século se transformou. Entenderam o tom do que os espera? Pois é. Soturno, mas sem perder a ternura. 


domingo, 21 de março de 2021

O inimigo do meu inimigo é meu amigo


O gênero policial mexe comigo. Mesmo. Desde que eu me entendo por cinéfilo reservo uma parte do meu tempo a desfrutar da nobre arte da criminologia e seus personagens sórdidos e maquiavélicos. E quando ainda por cima esse gênero vêm mesclado com o mais puro terror - e não me refiro ao terror como sinônimo de jumpscares ou criaturas sobrenaturais, e sim àquele capaz de nos fazer ficar paralisado, incomodado diante do medo - aí então eu me rendo de vez. E é preciso deixar claro para os leitores desta humilde crítica: poucos até hoje conseguiram me deixar desse jeito, pois é preciso talento (e muito) para tal. 

Dito isto, é com enorme prazer que vejo o hoje clássico O silêncio dos inocentes, do diretor Jonathan Demme, chegar a três décadas de existência sem perder o seu glamour e mesmo sua elegância (sim, o longa é de uma elegância assustadora!). 

O longa de Demme nos conta a história da jovem agente do FBI, Clarice Starling (Jodie Foster), que investiga o paradeiro do serial Killer Buffalo Bill, responsável pelo assassinato de inúmeras jovens. E para isso ela precisará recorrer à ajuda de um outro serial killer: o ardiloso, mas não menos estiloso, Hannibal Lecter (Anthony Hopkins, naquela que eu considero até hoje a melhor interpretação de um vilão na história de hollywood). 

Embora tenham modus operandis completamente distintos - Hannibal é charmoso, meticuloso, aprecia cada momento que tem com suas vítimas, e não se nega a saboreá-las quando precisa (daí o apelido de "canibal"); já Buffalo é mais visceral, animalesco e está realmente interessado é na pele de suas vítimas, com a qual faz roupas um tanto quanto mórbidas - Clarice acredita piamente que somente o Doutor trancafiado na ala de segurança máxima poderá ajudá-la a encontrar o seu assassino. Em outras palavras: ela meio que recorre ao velho ditado "o inimigo do meu inimigo é o meu amigo" para resolver esse mistério. 

Uma importante informação cabe aqui para os marinheiros de primeira viagem que nunca viram o filme: não deixem de perceber e levar em consideração a relação tensa entre Hannibal Lecter e o chefe de Clarice no FBI, o agente Jack Crawford (Scott Glenn). Trata-se de uma linha tênue importantíssima para nós, espectadores, entendermos o que Lecter fez no passado de tão assustador. Repito: não percam esta entrelinha vital. 

Já quando o assunto são os bastidores do filme, isso por si só renderia um longa próprio. Antes de O silêncio dos inocentes, o diretor Michael Mann já havia introduzido o personagem Hannibal Lecter no seu longa de 1986 Caçador de assassinos, que é uma adaptação do romance Dragão Vermelho, livro anterior de Thomas Harris, criador do personagem, e trazia o ator Brian Cox na pele do psicopata. Contudo, o filme foi um fracasso retumbante de bilheteria e os estúdios acreditavam que seria perda de tempo voltar a esse universo. 

Entre os atores de peso associados ao projeto, temos o ator Gene Hackman - que chegou a comprar os direitos de adaptação de O silêncio dos inocentes (e houve até a possibilidade de que ele dirigisse o projeto) -; Sean Connery, que recusou interpretar Hannibal e a belíssima Michelle Pfeiffer, que pediu uma cachê muito acima do teto da produção para incorporar Clarice. Entretanto, confesso aqui, acho que a desistência dos dois fez muito bem ao filme. Não acredito que a produção tivesse o mesmo impacto ou repercutido por tantas décadas com a dupla (que chegou a dividir tela em A casa da Rússia). Ambos me parecem, à primeira vista, escolhas melhores para outro tipo de cinema e não uma película criminal cheia de elementos assustadores. 

O filme ganhou cinco oscars (filme, diretor, ator, atriz e roteiro adaptado) e juntou-se à Aconteceu naquela noite, de Frank Capra e Um estranho no ninho, de Milos Forman, como os únicos longa-metragens na história da premiação até hoje a faturar as cinco principais estatuetas. E olha que o filme de Demme chegou a ser considerado, à época, um azarão. Tanto que teve seu lançamento adiado para que a Orion Pictures, que produziu o longa, divulgasse seu carro-chefe: o também vencedor do Oscar Dança com Lobos, de Kevin Costner. 

O custo de produção ficou abaixo dos 20 milhões de dólares (para uma arrecadação de quase 280 milhões ao redor do mundo). A participação de Hopkins em todo o longa não chega à meros 25 minutos (e, mesmo assim, ele está tão avassalador em sua criação que parece dominar toda a trama, tanto que acabou por definir a imagem moderna do psychokiller como a conhecemos até hoje). E segundo o seu criador, o escritor Thomas Harris, a história era meio que baseada no relacionamento do criminologista Robert Keppel e do serial killer Ted Bundy, que o ajudou na investigação dos crimes do assassino de Green River. Em suma: aquele tipo de projeto que você pensa na hora "tem tudo para dar errado, não importa o quanto eu deseje realizá-lo; ninguém vai querer ver isso. Simplesmente não vende". E então você quebra a cara, pois a sétima arte também é uma caixinha de surpresas. 

E ao fim, o que ficou de legado para os fãs mais apaixonados, é: uma obra-prima do cinema criminal (mas que muitos, embora os mais incrédulos teimem em negar, veem como um filme de terror - e há razões para isso!), que entrega uma das interpretações mais extraordinárias da história do cinema (pergunte a qualquer nerd cinemaníaco quais os maiores vilões da história do cinema e a grande maioria dirá: Darth Vader, Hannibal Lecter e mais oito. Podem me cobrar!) numa época em que a década de 80 mal acabara e ainda nos fazia pensar em seus Freddies, Jasons e companhia ltda. Logo, foi uma retomada do próprio cinema americano. 

E isso, em se tratando de um indústria como hollywood, nunca será pouca coisa...

P.S: lembro-me até hoje do final do longa quando Hannibal liga para Clarice do orelhão (ela está na cerimonia de formatura) e diz que está indo embora. Podem até me chamar de sádico, mas que eu torci para ele se dar bem no final, ah eu torci!           


quinta-feira, 18 de março de 2021

A nova cara da arte


Quando comecei a me interessar pelo mundo das artes plásticas (eu tinha, acho, por volta de uns 18 ou 19 anos) a primeira coisa que eu entendi logo de cara é que era preciso entender a vida que aquelas pessoas levavam e, principalmente, qual era base da formação cultural delas. Qualquer fragmento mínimo ou necessário, qualquer vício de comportamento, tique, deslize, referência, plágio, como quiser chamar, era de fundamental importância para nós, amantes da arte, entendermos o porquê de suas obras serem daquele jeito. 

E isso serve para qualquer artista do meio que se preze: Gauguin, Van Gogh, Picasso, Pollock, Basquiat, Monet, Gaudí, Goya, Velázquez, Da Vinci, Dalí, até mesmo o recente fenômeno Bansky e suas "provocações urbanas". Todos, sem exceção, já me deixaram encucados, tentando entender onde eles buscaram matéria-prima para seus trabalhos que entraram para a história. E quem já possuiu uma tela deles na parede de sua casa ou em alguma galeria provavelmente, em algum momento, já se pegou pensando nisso também. 

Mas isso, meus caros leitores, é coisa do passado. Sim, pois o lugar da arte daqui para frente, a depender dos novos especuladores, marchands e galeristas, não será na parede da casa de alguém ou mesmo num museu ou centro cultural. Não, senhor! A partir de agora vocês verão suas telas no computador. E não adianta reclamar. 

Encontrei na última semana uma série de matérias, tanto no jornal El País como na Folha de São Paulo, a respeito de Mike Winkelmann (mais conhecido por seu nome artístico Beeple) e a sua tela Everydays: the first 5000 days, produto de um trabalho realizado ao longo de 13 anos fazendo um desenho por dia no seu computador. Para tal façanha ele se utilizou do programa Cinema 4D. 

Na verdade, uma correção: eu me referi à Everydays como sendo uma tela. Nada disso. A obra foi arrematada por 69,3 milhões de dólares numa leilão da Christie's (um recorde que fez com que Beeple entrasse para a lista dos três artistas vivos mais valorizados da história da arte, atrás apenas da dupla Jeff Koons e David Hockney) no formato NFT. E desde já, para quem nunca ouviu falar da expressão, explico resumidamente: tratam-se de certificados digitais colecionáveis. Importante detalhe: também foi a primeira vez que uma peça foi vendida na casa de leilões usando uma criptomoeda (no caso, a Ether). 

A princípio pensei comigo: "esse cara, que se diz artista, deve ser uma modinha efêmera, sem graça, ou alguma bomba da vez". Logo, é preciso localizar o seu trabalho e tirar minhas próprias conclusões. E o encontro facilmente. Afinal de contas, trata-se de uma figura, que embora não entenda absolutamente nada do mercado tradicional de arte (informação essa que ele próprio já confirmou numa entrevista), se tornou um nome promissor nas redes sociais, tanto que já possui mais de 2 milhões de seguidores no Instagram. 

Vou até seu site oficial e fico deslumbrado. É preciso dizer isso em favor do trabalho de Beeple: o cara sabe desenhar. E muito. Contudo, para os mais conservadores, que amam as pinturas clássicas e sabem por a mais b o mal que a fotografia produziu como legado às artes, fazendo com que o rigor estético e o detalhismo dessem lugar ao abstracionismo e um sentimento de vazio, é preciso alertar: é tudo digital. Logo, é preciso um outro olhar diferenciado para essa "nova arte". 

A matéria da Folha diz que o trabalho de Beeple tem "uma estética distorcida e apocalíptica'. E eles estão cobertos de razão. Lembrei-me, imagem a imagem, de todas as grandes obras de ficção científica com que eu me deparei em toda a minha vida (1984, Fahrenheit 451, Neuromancer, Akira, Blade Runner, etc). E é como se tudo tivesse sido reinventando à luz da contemporaneidade e da globalização. São mais de cinco mil desenhos sobre as temáticas mais diversas, viajando de Mickey Mouse à Donald Trump nu, com direito à Buzz Lightyear, Pikachu, Ursinho pooh e até mesmo o ditador da Coréia do Norte, Kim Joon-un.  

Winkelmann trabalha em sua casa diante de dois aparelhos de tv ligados e sem som, normalmente em canais de notícia como CNN e Fox News. E muito por conta disso analistas de arte deste século  veem seu trabalho artístico como um comentário visual abalizado pela cultura da internet (algo, às vezes, meio relacionado aos fabricantes de memes, outro fenômeno forte desta era em que vivemos). Só que, por outro lado, seu trabalho também tem uma apelo bruto e ostensivo, quase como uma mistura de cartum político com a estética videogame. Parece confuso para muitos, eu sei, mas... Mais atual e século XXI do que isso, impossível! É praticamente um mashup cultural.

E não me parece que a moda é passageira, não! Muitos expoentes do mundo da arte contemporânea já falam em mudança de paradigma para o mercado. Parece que finalmente os artistas digitais estão começando a ser reconhecidos pelo seu trabalho. Sim, tem quem queira comprar esta nova forma de arte e mais: pagar uma fortuna por ela. Até a marca Louis Vuitton já se utilizou das estampas de Beeple em sua linha de bolsas. Pois é... O rapaz com cara de nerd e formado em ciência da computação que eu vi na foto está podendo. Mesmo. 

Entretanto, é preciso dar tempo ao tempo e ver onde Beeple e seus seguidores (acreditem: eles aparecerão, pois o assunto agora está na crista da onda) irão parar. Trata-se ainda, a meu ver, da ponta do iceberg. E lógico que os tradicionalistas terão muito do que reclamar ou desqualificar desse novo formato. De certo mesmo? Que a arte continua se transformando o tempo todo. E que o mundo produzido por ela nunca mais será o mesmo. 

Para quem quiser saber mais sobre Beeple, fuçem aqui: https://www.beeple-crap.com/


domingo, 14 de março de 2021

Menino de ouro


Se existe algo que eu não suporto em hollywood - na verdade, em nenhum cinema do mundo - é a eterna mania de inventarem artistas fake ou celebridades efêmeras, que em nada acrescentam no quesito qualidade para a sétima arte. E na grande maioria das vezes eles (ou elas) atraem mais problemas do que soluções. Procurem em qualquer tabloide tendencioso ou site de internet obscuro a respeito das vidas e carreiras de Shirley Temple, Lindsay Lohan, Haley Joel Osment (para quem não ligou o nome à pessoa, é o garotinho que "ouve gente morta o tempo todo" em O sexto sentido) e tantos outros e tirem suas próprias conclusões.

Pois bem: essa semana enfim consegui assistir o longa Honey Boy, de Alma Har'el, e me peguei pensando exatamente nisso, de novo. E o meu primeiro interesse nesse projeto, do qual fiquei sabendo no youtube através de um vídeo da série Hollywood Roundtable, foi saber que o roteiro era escrito pelo jovem ator Shia LaBeouf tomando como base sua própria infância. E nesse momento me peguei indagando: "será que ele realmente falou de si, sem disfarces ou estereótipos?". 

E não é que fui pego de surpresa por um drama amargo, doloroso, mas não menos necessário para que entendamos o quão complicada é a vida das celebridades e fenômenos de bilheteria que começam cedo na indústria? Confesso: tem o meu respeito o ator. 

E é preciso aqui fazer um aparte: não faço parte do público que curte o ator Shia LaBeouf. Na verdade, o vi como um bad boy, como um astro problema, desde que assisti o primeiro longa com ele no elenco (tratava-se de Eu, robô, no qual atuava ao lado de Will Smith, que também considero uma outra grande invenção da mídia e dos estúdios de hollywood). Digo mais: ele sempre me vendeu uma aura de irresponsável e arrogante. Tanto que sua carreira acabou indo pelo caminho que tomou. 

Esclarecido isto, nos deparamos - no longa - com o jovem rebelde transformado em Otis (vivido pelos atores Noah Jupe, na infância e Lucas Hedges, já aos 22 anos), uma jovem promessa do cinema americano que viveu uma vida extremamente barra-pesada. E cabe aqui uma visão geral dos fatos: o divórcio dos pais, o pai violento e opressor, a casa e a condição de vida onde moravam, as inúmeras exigências de produtores e diretores, que muitas vezes o viam como um reles escravo ou empregado do sistema, etc. O resultado desta equação, lógico, não poderia ser outro: uma catarse das mais perturbadoras e insanas. 

A diretora, inteligentemente, intercala a sua narrativa em dois tomos, contrapondo o momento mais duro da convivência de Otis com o pai, James, um antigo palhaço de rodeio (que é interpretado pelo próprio Shia) com o rapaz, já adolescente, vivendo num centro de reabilitação após causar um acidente de trânsito que quase lhe tirou a própria vida. 

O grande legado que Honey Boy me trouxe como experiência cinematográfica ao fim da projeção foi a constatação - que eu já tinha, por sinal - de que o cinema norte-americano precisa urgentemente parar com essa mania de fabricar "fazedores de bilheteria" a todo momento, como se a indústria fosse composta única e exclusivamente de artistas moldados pela vontade dos estúdios e/ou das bilheterias (estas, aliás, cada vez mais difíceis de serem conquistadas). 

Tempos atrás, assisti uma entrevista com o ator Brad Pitt (na época ele estava nos sets de filmagem do longa Seven - os sete crimes capitais, de David Fincher). Ele falara sobre fama, mulheres, suicídio e, no entanto, o que mais me chamou a atenção naquele dia foi quando ele mencionou seu desapontamento com a indústria de cinema por querer vendê-lo unicamente como galã e nada mais. E ele nunca quis fazer somente isso da sua carreira. "Imagine o quanto isso é frustrante", disse Brad em certo momento. E eu o entendi na hora. 

Brad teve a coragem de se reinventar, deixou o peitoral sem camisa dos dias de Thelma e Louise e Lendas da paixão para trás, procurou projetos melhores, tornou-se um interessante produtor de sucessos de crítica e bilheteria e já ganhou dois Oscars. Porém, mais do que tudo isso, ele se recusou a ser moldado pelo sistema. 

E Honey Boy é o melhor exemplo do exato oposto disso. Aqui, vemos exposto (e, em alguns casos, de forma covarde) o quanto os estúdios e a própria família são capazes de exigir de um garoto ainda precoce um turbilhão de desafios. E não à toa eles acabam sucumbindo ao mundo da vaidade e do dinheiro por conta disso. Alguém aqui realmente se esqueceu do caso Macaulay Culkin? Pois eu não. 

Logo, recomendo aqui aos fãs de cinema que sabem de antemão que hollywood não é meramente uma fábrica de ilusões e reconhecem que ela é capaz de passar como um rolo compressor por cima de qualquer um que não saiba lidar com as desventuras do sucesso e da fama, que procurem pelo filme de Shia e Alma. Pois precisamos parar, o quanto antes, com essa mentalidade, do "esse vai ser o próximo menino de ouro da indústria. Podem apostar!". Acreditem: isso nunca fez realmente bem ao cinema mais famoso do mundo. E logicamente não é agora que começará.


quinta-feira, 11 de março de 2021

Cogito ergo sum


Quando ainda me perguntam o que eu venho achando do mundo e das pessoas que vivem nele eu quase sempre respondo: "é uma questão de sobrevivência e, enquanto eu estiver lendo e pensando por minha própria cabeça, é uma luta que ainda vale a pena". Ou seja, não consigo me imaginar distante do conhecimento nesse campo de batalha. Não é simplesmente uma escolha ou um hobby, mas uma necessidade biológica, como beber água ou almoçar. Não consigo me ver dentro de uma realidade diferente desta. 

Duas semanas atrás eu me deparei com uma matéria na Folha de São Paulo que falava sobre os 30 anos de publicação do romance O mundo de Sofia, do escritor Jostein Gaarder, e eu imediatamente me peguei relembrando de quando o li pela primeira vez e, principalmente, da série de lacunas impressionantes que ele deixou em minha cabeça. Provavelmente não estava, na época, habilitado para entender 10% do conteúdo daquelas páginas. Mais: não tinha ainda a formação desejada para captar sua essência, tendo em vista meus pouco mais de 15 anos. E ainda assim, saí da experiência transformado. 

Passadas três décadas tomo a decisão de relê-lo e com que alegria descubro o quanto Gaarder nos entregou uma obra brilhante, sedutora e que não perdeu um segundo sequer de sua relevância cultural. E tudo isso falando de filosofia! 

Acompanhamos a saga de Sofia Amundsen, uma garota de apenas 14 anos, que começa a receber em sua caixa de correio uma série de cartas um tanto quanto curiosas, trazendo perguntas sobre o sentido da vida e dela própria existir no mundo. Na primeira perguntam-lhe quem é tu, na segunda de onde vem o mundo e na terceira um convite para acompanhar um curso de filosofia. Detalhe: ela não faz a menor ideia de quem lhe mandou essas correspondências, mas mesmo assim embarca nessa viagem rumo ao conhecimento. E foi, sem sombra de dúvidas, a melhor decisão que ela poderia ter tomado.  

Feita e escolha, ela começa a enveredar pelo extraordinário mundo de pensadores que marcaram - e marcam até hoje! - a história da humanidade. Seu professor, Alberto Knox, se apresenta e vai dos mitos ao helenismo nos fazendo devorar cada minuto de Thor, Loki, Odin, Asgard, os vikings, Zeus, Apolo, Hércules, Hera, Homero, os filósofos da natureza, o oráculo de Delfos (com a eterna provocação "conhece-te a ti mesmo!"), Heródoto, Tucídides, Hipócrates e finalmente a trinca grega Sócrates, Platão e Aristóteles. Em suma: um aulão básico de sabedoria. 

Mas é claro que para Knox nos apresentar apenas os gregos é insuficiente em suas intenções e por isso ele segue em frente: esmiuça os indo-europeus e os semitas, dá voz à Jesus Cristo e seu apóstolo Paulo, apresenta a Idade Média, contrasta as visões religiosas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino e passeia pelo Renascimento e o Barroco. Mas isso é apenas preparar o território para a cereja do bolo.

Chega a filosofia moderna e com ela o seu fundador, René Descartes, e o "Discurso do método"; Espinosa correlaciona Deus e a natureza, fazendo uma leitura crítica da Bíblia; Locke funde pensamentos e ideias à sensações; Hume descarta totalmente tudo o que se une à ilusão; Berkeley chama a filosofia e a ciência de inimigas da concepção cristã do mundo; Kant defende sua "Crítica da razão pura"; Hegel chama de espírito do mundo a soma das manifestações humanas; Kierkegaard confronta o romantismo com o individualismo e o sistema com o indivíduo; Marx defende a luta de classes; Darwin chama o ser humano de resultado de uma evolução biológica intensa e Freud reflete sobre o mundo como uma tensão entre homem e o ambiente que o rodeia. 

E quando você, leitor, está prestes a dizer "ufa! quanta coisa!" o autor, ainda insistente, tem tempo para se debruçar sobre a contemporaneidade e, junto com ela, Nietzsche, Heidegger, Sartre e Simone de Beauvoir. Sim. Preparem-se, meus caros leitores, pois trata-se de uma leitura que exige fôlego e paciência, já que há muito sobre o que pensar e debater (algo que a nossa sociedade anda precisando - e muito!). 

Ao fim da leitura me pego pensando no quanto a obra tem o seu lado cogito ergo sum (ou em bom português: penso, logo existo). É um convite àqueles que desejam urgentemente fugir do mundo contemporâneo caótico e imerso no retrocesso. Há, é claro, um lado mais fofo e comercial da história, no qual Sofia encontra personagens históricos e literários de importância, como Noé, ursinho Pooh, Alice, Tom e Jerry, Uncle Scrooge e tantos outros, mas isso é apenas um mero detalhe best-seller. E me vi refletindo em alguns momentos sobre a possibilidade de estar diante de uma metaficção por ser a própria Sofia uma história dentro de outra história ainda mais complexa. Mas deixo essa discussão para os catedráticos e acadêmicos de plantão.          

O que importa mesmo aqui é: fiquei feliz de ler O mundo de Sofia, não somente por estarmos vivendo um tempo de pandemia, mas também porque o mundo anda um tanto habitado por ignorantes contumazes e fabricantes de falsas verdades e ideologias, e é preciso combater essa gente com conhecimento, pois somente ele - a meu ver, pelo menos - é capaz de enfrentar a alienação de frente e com unhas e dentes.  

Se você, como eu, também quer enfrentar esse desafio, procure pelo romance de Jostein Gaarder. Não, acreditem! É de fato um romance e não um livro acadêmico. Porém, é também um pouco mais do que isso. E é desse um pouco mais que estamos precisando. O quanto antes. 


domingo, 7 de março de 2021

A maldição púrpura


O cinema de terror sempre esteve povoado de personas insólitas (psicopatas, serial killers, palhaços e bonecos assassinos, etc), pragas científicas, figuras sobrenaturais e outros algozes quiçá ainda mais terríveis e, por que não, inexplicáveis à nossa vã filosofia. Contudo, houve um tipo de diretor muito comum nos anos 80 e 90 que soube se apropriar bem daquilo que o gênero sobrenatural tinha de mais alucinante e completamente fora do que chamamos costumeiramente de realidade. 

Tem quem chame essas produções hoje em dia de trash ou filmes B, mas acreditem: elas fizeram um enorme sucesso de público entre os fãs da nobre arte de dar sustos. E às vezes com narrativas que são uma ode ao nonsense. 

Esta semana, por exemplo, me deparei no you tube com uma cópia dividida em episódios do filme A bolha assassina, remake de 1988 do diretor Chuck Russell para o clássico cinquentista de ficção científica de Irvin S. Yeaworth Jr, que tinha em seu elenco o astro Steve McQueen. E qual não foi a minha surpresa ao ver, mesmo três décadas depois e hoje vacinado contra todos os delírios e distorções da narrativa, que eu ainda me divirto - e muito - com a película! 

A bolha assassina, embora seja um projeto anterior ao sucesso comercial que Russell faria seis anos depois com a comédia O máskara (que eternizaria o humorista Jim Carrey), traz em seu bojo todos os elementos do que aquela geração cinéfila considerava um ótimo entretenimento. Quer ver só?

O longa conta a história de um meteoro que cai numa cidadezinha de interior nos EUA e traz em seu núcleo uma substância gosmenta e púrpura capaz de aumentar de tamanho à medida que se alimenta de seres humanos. Não, é isso mesmo que você leu! Ela chega ao centro da cidade após ficar presa no braço de um morador de rua que é levado, por dois adolescentes, ao hospital mais próximo. A partir daí esperem por muita matança, correria, desespero e, claro, não sejam exigentes com o roteiro. 

Há uma subtrama mal explorada - e normalmente, nos filmes de terror desse período, elas sempre existem! - sobre uma equipe de cientistas contratada pelo governo para transformar a tal bolha numa arma de guerra. Aliás, bem a cara da hollywood daquela época. E também há a figura de um padre apocalíptico que vê no nêmesis púrpura o prenúncio do fim dos tempos. Mais do que isso: o diretor chega a preparar o terreno para uma possível continuação (que, claro, nunca existiu). 

De concreto mesmo parece que somente os jovens Brian Flagg (Kevin Dillon) e Meg Penny (Shawnee Smith), interessados em destruir de uma vez por todas a malévola criatura. Entretanto, há muito pelo qual se divertir também, vide o inusitado da situação. Que o digam o casal de namorados num encontro romântico no carro e a dupla de garotos dentro do cinema para ver o último lançamento de terror do momento. Mais anos 80 do que isso, impossível!

Mas como eu disse em parágrafo anterior: não sejamos exigentes. E esse era justamente o maior barato para quem assistia cinema naqueles tempos. Pergunte a qualquer um que você conheça que viveu o mesmo período. Eles certamente lhe dirão: "eu daria tudo para viver isso de novo".

A bolha assassina é a cara do terror que se produzia no final dos anos 80 e início dos 90: ilógico, surreal, extraordinário em suas intenções, cheio de clichês os mais inverossímeis possíveis, prometendo relações sexuais que nunca iria entregar (pelo menos, não do jeito que nós realmente queríamos) e com desfechos totalmente loucos, quando não contraditórios. Some tudo isso rapidamente e o que vocês terão é: diversão, diversão e mais diversão. Pronto. Só falta juntar a pipoca e o refrigerante para concluir o programa da noite. 

P.S: tenham agora, os distintos leitores deste texto, a dignidade de admitir: quantos de vocês viram essa pequena joia pela primeira vez no antigo Cinema em Casa, do SBT? Ah! Vai ter gente escondendo a idade. Ah se vai!!!


quinta-feira, 4 de março de 2021

O último ato de amor


Tem quem pense que a arte em geral, e principalmente as artes plásticas em específico, se destine a objetivos ambiciosos ou mesmo que ela precise de grandes motivações para existir. Ledo engano! Às vezes, basta um pequeno gesto ou aproximação para que nós, meros espectadores e amadores no quesito avaliação, nos encantemos e queiramos analisar a obra em questão mais profundamente. 

Vejam o caso de O grito, de Edvard Munch, por exemplo. Um mero indivíduo com as mãos segurando o rosto enquanto grita na frente de um mirante e foi suficiente para virar referência na cultura pop. E nem por isso deixou de suscitar debates. 

Com O beijo, do pintor Gustav Klimt, óleo sobre tela de 1,80m x 1,80m criado entre 1907 e 1908, acontece praticamente a mesma coisa: de onde vêm tantas opiniões referentes à um simples casal que se ama e, por isso, se beija? Parece tão simples enxergar isso quando vemos a tela, mas na prática são muitas - e distintas - análises. 

A principal delas se refere a uma briga entre Apolo (Deus da beleza) e Eros (Deus do amor e do erotismo) que, inconformado, transforma sua amada, Dafne, em madeira. Segundo parte da crítica a tela representaria o último momento em que Apolo beija Dafne em vida. Contudo, nem toda a crítica converge para esta mesma opinião. 

Sim, digo isso porque há intelectuais que preferem acreditar que o casal ilustrado na tela seria o próprio Klimt e Emilie Flöge, sua eterna musa e companheira de vida. E há ainda um terceiro grupo que prefere acreditar que a modelo Red Hilda, que posara para Klimt em outros trabalhos, seria a referência para a mulher vista na tela. 

De concreto mesmo somente o que vemos na tela: um casal de apaixonados enrolados numa espécie de manta amarelada cheia de enfeites que lembram pedras preciosas, enquanto o homem beija a mulher na face direita. E alguns intelectuais preferem acreditar que o beijo não é recíproco, pois a mulher estaria tentando afastá-lo com as mãos (o que refuta, para alguns estudiosos, a temática da alegoria do amor). Isso sem contar os que defendem a possibilidade de que a mulher esteja morta e sua cabeça, decapitada. Sim, foi isso mesmo que vocês leram! 

A pintura, que faz parte do apogeu do período dourado do artista, une pinceladas polidas e verticais com contornos, produzindo uma textura real e ímpar e é visível no trabalho a influência dos mosaicos bizantinos e da gravura japonesa, além da utilização de elementos como lâminas de ouro e estanho (algo que o pintor repetiu em outras obras). O resultado dessa mistura é uma perspectiva cromática.

Tem quem classifique Gustav Klimt como precursor do simbolismo e tem quem o veja como modernista. De preciso mesmo, apenas que fez parte do período secessionista, que contrapôs o realismo, o naturalismo e o positivismo, preferindo ser movido por ideais românticos (e cabe aqui uma dica: procure a obra do pintor e vasculhe a presença do amor em seus trabalhos. Vocês ficarão surpresos!). 

O quadro foi comprado pelo Museu Belvedere, em Viena, antes mesmo de ter sido finalizado, por inacreditáveis 25 mil coroas (um recorde para o período). O que mostra o prestígio do autor, que era bastante celebrado naquela época. 

No final, em meio a tantas opiniões e controvérsias, o que vemos é uma grande ode à sensualidade e ao erotismo. Ou, para os apaixonados de plantão, um último ato de amor desesperado em meio a um mundo que mais parece uma comédia dos erros distorcida, produto de uma sociedade cheia de ódio e revanchista ao extremo.  

Em 2013, o artista Tamman Azzam replicou a obra em uma parede de um edifício bombardeado em Damasco, na Síria, como uma forma de protesto contra a guerra. Isso mostra que mesmo passado mais de um século, a tela continua suscitando debates e reflexões as mais diversas sem não necessariamente ter uma ligação direta com a temática amorosa (o que em nada desmerece o trabalho de Klimt, que viveu uma vida amorosa intensa e cheia de revezes). 

E como vocês, leitores, deveriam terminar este humilde artigo que terminou prematuramente de propósito? Vasculhando a vida deste mestre do mosaico. Podem apostar: vocês vão se surpreender. E muito.