quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Um livro muito além dos próprios leitores


Tem pessoas que preferem acreditar que um livro é apenas um livro, que se trata apenas de papel, que não muda o mundo ou mesmo a humanidade (já estudei, inclusive, com um rapaz que defendia isso com uma naturalidade absurda). Cá entre nós: para mim isso é papo de gente presunçosa e babaca que não gosta de ler. Mais: acha literatura uma grande perda de tempo. Que bom seria se essas pessoas pensassem o mesmo dos campeonatos de futebol milionários, cheios de atletas esnobes que não estão nem aí para o resto da civilização, ou da política partidária. Talvez o mundo hoje fosse outro...

Enquanto isso não acontece, é preciso deixar claro aos fãs do mercado editorial: há livros, sim, que são mais do que meros livros. Qualquer pessoa que já tenha lido, pelo menos uma vez na vida, Dom Quixote, Os miseráveis, A Odisseia, On the Road, Crime e Castigo, só para ficar no meu básico indispensável, sabe do que eu estou falando e com folga. E em alguns casos, como certa ocasião disse o crítico Antônio Candido, eles têm o poder de mudar o mundo mesmo sem ser lidos. E nesse caso me refiro particularmente à Ulisses, obra seminal do autor irlandês James Joyce, que completa 100 anos em 2022 (quer dizer: alguns estudiosos irão dizer que há discrepâncias a cerca deste centenário, mas oficialmente é isso!).

Ulisses nos apresenta Leopold Bloom, o Homero do século XXI (referência direta do personagem), numa rotina que à priori parece bem simples: ele sai de casa, realiza pequenas tarefas e ao fim do dia, retorna para o seu lar, acompanhado do parceiro Stephen Dedalus. O dia em questão é 16 de junho de 1904. Mas não se enganem, caros leitores! A obra em si, sua simplicidade, é - isso sim - um grande desafio que povoa a cabeça de milhões de leitores ao redor do mundo há um século. E não à toa muitos não conseguiram terminá-lo até hoje. 

Escrito durante um período de sete anos (1914-1921) e tendo alguns trechos publicados num jornal literário como se fosse uma espécie de folhetim - uma prática bastante comum da época -, o romance de Joyce segue dividindo opiniões e encantando os amantes da boa (e complexa) literatura. Já foi chamado de genial, revolucionário, ímpar, mas também de embuste, charlatanice, incógnita, perda de tempo, esnobe e difícil em demasia. Virginia Woolf se recusou a publicá-lo em sua editora e ainda o classificou como nada menos do que uma catástrofe literária. Parece louco pensado hoje, um século depois, e é. Em suma: num artigo que li no Estadão ao pesquisar para escrever este texto encontrei a melhor definição para Ulisses. Ele continua sendo o romance mais paparicado, temido e mistificado da literatura. 

E em tempos de fake news na internet isso só aumenta. O contingente de pessoas que compram o livro para tê-lo apenas como enfeite em suas prateleiras é absurdo. Entretanto, ele é mais do que a mera leitura em si e o fato de ser uma narrativa difícil, cheia de armadilhas, acaba meio que contribuindo para que aqueles que nunca a leram ou não passaram da introdução sejam perdoados. Até esses, os não-leitores, foram afetados pelo espírito da época criado por Joyce. E a prova disso é que muitos intelectuais que estudam sua obra dividem a literatura mundial em A.U e D.U (em outras palavras: antes e depois de Ulisses).

Entre os admiradores da obra figuras notáveis como T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ernest Hemingway, Vladimir Nabokov e Ezra Pound, este último o maior padrinho e principal responsável pela viabilização da livro. Já entre seus detratores, que odiaram o livro ou o acharam desnecessário, constam também grandes nomes como George Bernard Shaw, E. M. Forster, Paul Claudel. E em meio a tantas divergências, uma certeza: trata-se de um trabalho que suscitou, suscita e ainda suscitará os debates mais diversos (e esse é, sem sombra de dúvidas, o seu maior legado para a história da literatura mundial). E quem diria que um romance que foi acusado de fazer a literatura entrar em colapso chegaria tão longe!

Entre as façanhas oferecidas por Joyce com o romance estão a maneira como revolucionou a forma do romance moderno; o uso do fluxo de consciência nos personagens (não uma invenção sua, mas certamente ele o personalizou com estilo); a escrita de longos parágrafos sem pontuação; a concentração da história em um único dia (algo não muito comum naquele período); o estabelecimento, de uma vez por todas, da liberdade de se escrever, publicar e ler qualquer coisa que se queira e o uso de palavras consideradas chulas, até então ausentes da grande literatura, como “foder”, “gozar” e até mesmo a grafia no texto da genitália feminina. O que, logicamente, rendeu muita censura e perseguição ao autor. 

Considerado obsceno pelas autoridades antes mesmo de ser publicado, teve pessoas ligadas à obra processadas e alguns chegaram a ir para a cadeia por vender exemplares do romance (que foi até mesmo contrabandeado num esquema parecido com o das bebidas alcoólicas nos anos de lei seca). E não bastasse tudo isso, incontáveis exemplares foram apreendidos e incinerados, numa alusão ao clássico Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que muitos leitores sonsos preferem acreditar que "essas coisas não acontecem na vida real". Eu, que até então pensava que o processo envolvendo o poema O Uivo, de Allen Ginsberg, taxado de ser pornográfico, era monstruoso em demasia, aqui tive a certeza de que já aconteceu coisa muito pior envolvendo autores. E Joyce é mais uma dessas vítimas que não cansam de surgir de tempos em tempos. 

Pelo outro lado positivo, o do legado, das conquistas, duas certezas: a quantidade de autores cujas ideias jamais teriam existido sem a influência desse irlandês tão controverso. Jose Saramago, J. M. Coetzee, Roberto Bolaño, Samuel Beckett, Thomas Pynchon, Jorge Luis Borges... Todos. cada um à sua maneira, existiram influenciados por Joyce e sua magnífica obra. E Ulisses é, da maneira mais rasteira que consigo enxergá-lo - pois creio que ele merecia uma alcunha melhor do que essa, mas me faltam palavras para descrevê-lo com exatidão (como disse em parágrafo anterior: é uma narrativa difícil) - um livro além dos próprios leitores. Mas tem gente que não entende isso e prefere enxergá-lo como uma reles verborragia sem sentido. 

E antes que me perguntem o que faltou escrever, eu não posso deixar de mencionar o Bloomsday, realizado todo ano na Irlanda, em 16 de junho, para homenagear o protagonista Leopold Bloom. Uma festa que reúne anualmente milhões de leitores do livro e já virou parte do calendário cultural do país. Sim, você que não conhece ou nunca leu Ulisses, não leu errado, não! O romance virou um feriado. Para vocês verem a força dessa narrativa que atravessou um século mexendo com a cabeça das pessoas.

E agora? Vai continuar chamando o romance de esnobe, difícil, presunçoso, mesmo depois de ter lido tudo isso? Daqui pra frente você está por sua conta e risco, então. Só não venha me dizer depois que eu não te falei do livro, tá bom?


domingo, 20 de fevereiro de 2022

Não se pode dar um preço ao amor


Nada é mais doloroso e implacável na vida de qualquer ser humano do que a culpa e o ressentimento. Passamos a vida acreditando que nossas escolhas são as melhores possíveis tendo em vista o horizonte que vislumbramos, mas não estamos isentos de amar de forma equivocada, de culpar o outro injustamente ou mesmo de fracassar em nossas intenções. E nem sempre conseguimos consertar nossos erros (e não somente isso: há quem prefira a terrível zona de conforto de frases hipócritas como "eu faria tudo de novo"). 

Esta semana, como faço de tempos em tempos, andei procurando um longa-metragem que abordasse os relacionamentos amorosos de uma forma não tão padronizada. Não queria uma reles love story ou uma comédia romântica e sim uma história que desconstruísse a ideia imaginária que temos do amor idealizado, algo que sempre me irritou, por exemplo, em hollywood e seus romances açucarados em demasia. E eis que me deparo com Veneza, novo longa do diretor Miguel Falabella, e uma grata surpresa cinematográfica desse início de 2021 (que, confesso, deveria ter assistido no ano passado). 

Baseado na peça de Jorge Accame, Veneza se passa dentro de um prostíbulo cuja dona, Gringa (Carmen Maura, em uma interpretação irretocável), não consegue esquecer o homem que amou e dispensou de forma amarga para continuar no mundo da prostituição. Ela passa os dias em tormento, lembrando do que viveram e de uma promessa: que um dia iria à Veneza para reencontrar Giacomo (Magno Bandarz) e pedir perdão pelo que fez. Suas funcionárias não aguentam mais o desespero da pobre mulher, mas a mais compadecida de todas é Rita (Dira Paes), que ao lado de Tonho (Eduardo Moscovis), uma versão rústica do "homem da casa", promete levá-la ao país, nem que seja a última coisa que ela faça. 

Contudo, o que eles ganham no estabelecimento mal dá para pagar as contas. E mais do que isso: como acreditar realmente, num lugar como aquele, onde o amor é comercializado da maneira mais gratuita possível, que a história da Gringa possa ser crível? Para muitas deles, este tipo de sentimento é simplesmente inverossímil ou ilusório. Elas foram doutrinadas a acreditar que, na vida, tudo não passa de um grande negócio. 

Mas após irem a uma apresentação teatral dentro de um circo mambembe, Tonho descobre uma maneira de levarem a Gringa à Veneza sem precisarem sair do país e, nesse momento, a película ganha contornos de ilusão, chegando a me fazer pensar em alguns momentos nos filmes do cineasta italiano Federico Fellini e em Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues (cuja caravana Rolidei, muito mais do que uma mera trupe circense, era um grande receptáculo das catarses humanas). E nesse sentido Falabella realiza seu melhor e mais maduro filme como diretor de cinema. 

Há uma frase dita por um dos membros do circo no início da sessão que pautou meu pensamento durante toda a narrativa: "não se pode dar um preço ao amor". E esse é exatamente o mote que define a angústia da Gringa. Ela culpou seu amado por tê-la transformado numa mercadoria barata, mas demorou demais a perceber que também se vendeu para atender a seus próprios interesses. E quando se deu conta era tarde demais para corrigir a situação, pois a vida passou por ela como um rolo compressor (e a vida, assim como amor, não são ciências exatas, que definimos a nosso bel prazer). 

Veneza é, de forma interessantíssima, um grande experimento sobre o lúdico e o onírico que volta e meia perseguem a humanidade, embora muitos prefiram a certeza imposta pela caretice cotidiana e a velha mania do "se arriscar não é seguro e a vida é por demais implacável com quem a desobedece". E o resultado disso são pessoas amargas, infelizes ou desesperadas (como é o caso da nossa protagonista), tentando reconstruir os cacos que se quebraram, acreditando na possibilidade de uma redenção. 

No segmento final, enquanto embarcamos juntos no sonho e na imaginação da Gringa, que acredita piamente ter tido a chance de consertar seus erros, me peguei pensando na minha própria vida e se eu teria também uma segunda chance para resolver uma história mal resolvida do passado. E nesse momento me dei conta de que o filme de Falabella atingira o seu objetivo.

Para quem se acostumou a ver o ator, dramaturgo, diretor e apresentador do Vídeo Show criando seus personagens cômicos em produções como Sai de baixo, Toma lá dá cá e Polaróides urbanas - seu primeiro longa para a sétima arte - achei este novo trabalho de um requinte e de uma ousadia raras vezes vista no cinema nacional, que muitas vezes adora perder tempo com produções meia-boca e de gosto duvidoso. Em suma: ele acertou em cheio contando uma história simples, sem arroubos ou grandezas. E nosso audiovisual anda precisando de mais opções como esta!

Tempos atrás, o vi dando uma entrevista, não me recordo exatamente em que canal de tv ou programa, em que ele dizia ter a pretensão de transpor algumas de suas próprias peças para o cinema, dentre elas Império (que eu adoro). Espero ansiosamente que ele cumpra a promessa, pois me deparei com um artista seguro, que sabe o que quer e conhece bem o seu próprio trabalho. E é de pessoas assim que se faz uma grande arte. 

P.S: pouquíssimas vezes eu vi um elenco feminino tão bem escalado quanto aqui. Carmen Maura (eterna musa Almodovariana), Dira Paes, Carol Castro, Daniele Winits, Maria Eduarda de Carvalho, Maria Paquim, Georgina Barbarossa, Camila Vives... O cast é um colírio para os olhos, tanto pela beleza quanto pelo talento. E só mesmo quem for muito louco - ou gostar demais de perder tempo com as bobagens audiovisuais do Leandro Hassum e da Ingrid Guimarães - vai perder a chance de ver essa produção que é uma bola fora da curva dentro do nosso cinema. E este que vos escreve adora bolas fora da curva.   


sábado, 19 de fevereiro de 2022

Somos corpos e sonhos


Os ociosos que me desculpem, mas vivemos numa civilização onde o corpo (ou a desconstrução dele) é tudo. Passeie brevemente pelo bairro onde você mora e irá se deparar com duas instituições que ditam a pauta da sociedade cada vez com mais força: as igrejas e as academias. E no segundo caso, o crescimento das chamadas academias fitness - onde seus frequentadores são expostos a uma rotina de exercícios praticamente surreal, às vezes inumana - fez com que surgisse um tipo de ser humano quase robótico, até mesmo no falar. 

E por que estou falando disso nesse arremedo de crítica cinematográfica? Porque esta semana enfim consegui assistir Titane, filme da diretora Julia Ducournau, vencedor da Palma de Ouro no último Festival de Cannes, e me peguei pensando exatamente no quanto queremos transformar nossas vidas com a mesma vitalidade com que deformamos nossos corpos. 

No longa francês, acompanhamos a saga da jovem Alexia (a extraordinária Agathe Rouselle) desde pequena, após sofrer um acidente de carro que fez com que ela precisasse realizar uma cirurgia e colocar uma placa de titânio na cabeça. Contudo, ao invés dela nutrir medo ou pânico pelo automóvel que mudou completamente a sua vida, ela meio que desenvolve uma relação mórbida com ele, de adoração irrestrita. 

Os anos passam e ela começa a trabalhar se apresentando como dançarina exótica em feiras automotivas. Como se trata de uma mulher lindíssima, começa a atrair a atenção dos piores tipos de homens possíveis e quando é atacada por um desses exemplares que não se cansam de existir desde que o mundo é mundo (ou seja: os homens que não conseguem ouvir a palavra não do sexo oposto), ela reage e o mata. Mais do que isso: aquilo dispara um gatilho dentro dela e meio que se torna uma reação habitual de sua parte. Ela transforma a violência em parte da sua vida. 

Porém, após um de seus crimes inexplicáveis ter sido desmascarado e ela, reconhecida por um retrato falado, Alexia precisa assumir uma outra identidade para sumir por uns tempos e escolhe para isso a foto do filho desaparecido de Vincent (o também ótimo Vincent Lindon), chefe do corpo de bombeiros, um homem viciado em adrenalina e testosterona. 

Contudo, há um outro problema ainda mais perturbador que a acompanhará durante todo o tempo em que estiver escondida na casa de Vincent: ela - acreditem! é isso mesmo que vocês irão ler - teve relações sexuais com um carro e ainda por cima engravidou dele. Parece absurdo e é. Digo mais: vejo em Titane uma grande sátira à nossa devoção doentia ao capitalismo, que nos faz muitas vezes tomar decisões completamente nonsense (e, ainda assim, as relativizamos, como se elas fossem as mais naturais do mundo).

Agora esse rapaz, que não é um rapaz, precisa se fazer presente (na verdade, resistir é a palavra) num universo extremamente misógino, que vê na maioria das vezes a figura feminina apenas sob a ótica do prazer efêmero, e ainda por cima tendo que conviver e entender um pai cheio de remorsos e que deixa claro a todo momento que falhou na forma como criou o filho e pretende corrigir isso da maneira que puder. Então? Será que ela conseguirá escapar disso um dia e voltar à sua vida normal?

Esqueçam a franquia Velozes e Furiosos e seus carros tunados, pois aqui o carro em questão é meramente coadjuvante (ou, no máximo, catalisador do grande tour de force que viraria a vida de Alexia). A transformação corporal dela, enfaixando os seios, quebrando o nariz, escondendo da forma que for possível a gravidez, é impressionante e me lembrou em alguns momentos os longas do diretor David Cronenberg. 

Sim, pois em A mosca, Crash: estranhos prazeres e Existenz também vemos o que os protagonistas são capazes de fazer com seus próprios corpos quando precisam se autoafirmar, sobreviver ou mesmo buscar um novo caminho rumo ao futuro.

E ao final da projeção, ficou-me apenas uma certeza: a de que eu assisti a um dos longa-metragens mais loucos e insanos - e ainda assim extremamente bem produzido e filmado - que eu assisti na última década. Contudo, é preciso avisar com antecedência: Titane é gosto adquirido e não se destina a todos os públicos. Muito provavelmente os fãs da zona de conforto produzida pelas franquias, remakes e spin offs terão uma enorme dificuldade em comprar essa narrativa. 

Mas que quando você entende o que está em jogo e a representação que ela faz do mundo contemporâneo no qual estamos inseridos de maneira quase indigesta, ela dá um show à parte, ah meus caros leitores, não tenham a menor dúvida: até a ficção e o delírio presentes aqui têm a sua razão de ser. E nós não passamos, no final das contas, de corpos e sonhos. Mas adoramos fingir para os outros que somos bem mais do que isso! 


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O comentarista incomodado


Já cansaram de me perguntar "por que é que você gosta tanto de ler esse cara? Ele vive de provocar os outros, de incomodar!". E eu sempre respondia: "e esse é o maior trunfo dele. Jornalista que não incomoda é como funcionário público que vai na repartição só pra bater ponto. E desses eu quero distância". Estou falando logicamente do cineasta, cronista e jornalista Arnaldo Jabor, que faleceu hoje aos 81 anos, por complicações de um AVC. Ele estava internado no Hospital Sírio-Libanês desde dezembro do ano passado. 

Jabor era um camaleão e se orgulhava disso. Dessas figuras anárquicas que você, leitor ou espectador, fica no aguardo toda vez que ele vai realizar um comentário sobre o que quer que seja. Política, costumes, sexualidade, preconceito, cultura pop, não havia tema ao qual ele não discorresse com categoria e, claro, provocação. 

Porém, antes dele apresentar - junto com Paulo Francis e Joelmir Beting - uma das colunas mais aguardadas da televisão brasileira e escrever muitos dos textos mais ardilosos (e sensacionais) da imprensa nacional no Estadão, na Folha de São Paulo e, posteriormente, em O Globo, ele foi um cineasta de mão cheia. Fez parte da segunda fase do cinema novo, com seus longas cheios de alfinetadas à moral social e à hipocrisia retumbante que nunca abandona o país. 

Um detalhe curioso: há um aspecto na carreira cinematográfica de Jabor que me fez lembrar do cineasta Woody Allen. Ele também foi um grande diretor de atrizes e muitas delas saíram premiadas de seus longas. Que o digam Darlene Glória em Toda nudez será castigada (1973) e Camila Amado em O casamento (1975) - vencedoras do Kikito de melhor atriz no Festival de Gramado - e Fernanda Torres em Eu sei que vou te amar (1986), primeira atriz brasileira a ganhar a Palma de Ouro em Cannes. A produção com Darlene ainda venceria o Urso de Prata no Festival de Berlim.   

Em sua obra audiovisual, onde realizou sete longas, dois curtas e dois documentários, víamos uma admiração (na verdade, uma devoção) clara ao dramaturgo Nelson Rodrigues, bem como inúmeras ironias e questionamentos ao país e à sociedade, com suas famílias retrógradas, afundadas até a cabeça num moralismo babaca e sem sentido. E isso era o que a sua narrativa tinha de melhor: Jabor, até o fim da vida, não fez média com ninguém porque isso simplesmente não lhe interessava. 

Gosto particularmente de dois filmes dele, não necessariamente os mais famosos: Opinião pública (1967), em que mostra a dificuldade do povo brasileiro em enxergar e administrar a sua própria realidade e Eu te amo (1981) em que, através de um casal que marcou um encontro aleatório dentro de um apartamento, ele expõe as aflições e o niilismo de uma geração que acreditou num sonho político que não se concretizou.

Com o desastroso governo Collor e o fechamento da Embrafilme em 1990, Jabor se afastou das telas e passou a escrever crônicas para jornais e também a fazer comentários políticos em programas de TV (Fantástico, Jornal Nacional, etc) e rádio (CBN), mostrando uma outra faceta ainda mais ácida como comunicador. Foi nesse momento que ele ganhou de minha parte o apelido de o comentarista incomodado, pois eu sempre tinha a sensação de que ele iria falar algo que, volta e meia, irritaria alguém. Mas seu discurso nunca era vazio ou persecutório. Ele era, em suma, uma metralhadora verborrágica no melhor sentido da palavra. 

Dos oito livros de crônicas que publicou, dois se tornam best-sellers: Amor é prosa, sexo é poesia (2004) e Pornopolítica (2006), que eu devorei em poucas horas, tamanho o meu fascínio por seu raciocínio ligeiro e brilhante. Contudo, recomendo aos leitores mais enjoados que gostam de fugir do que é consagrado, que procurem pelo seu primeiro livro, Os canibais estão na sala de jantar. Aqui, ele já mostrava o grande reacionário que se tornaria com o passar dos anos. O germe de suas provocações está presente neste volume de forma ainda incipiente, mas genial.

24 anos depois de seu (até então) último longa, em 2010 Jabor dirige A supremacia felicidade. E com ele regressa ao Brasil de ontem para nos dizer que a sociedade continua cafona e enfadonha. E precisa urgentemente mudar. É visível seu sarcasmo ao relatar a condição da mulher, para ele ainda vivendo numa bolha, sempre em segundo plano em relação à figura masculina (e este era um tema que incomodava - e muito! - o diretor). O filme acabou por se tornar um fetiche meu recorrente, pois sempre que ele é reprisado no Canal Brasil eu o vejo novamente. Um despedida soberba que é a cara dessa figura eternamente intrusiva e debochada. 

Por mais que eu saiba que seus filmes e livros estão por aí e podem ser reassistidos e relidos quantas vezes eu quiser, um fato é certo: a imprensa e o cinema nacional perderam uma de suas maiores e mais diletantes vozes. Não será mais a mesma coisa ficar por dentro do que acontece no país sem a coluna - escrita ou falada - do Jabor. E em meio a tanta gente estúpida, que só fala besteira, exalta o nazismo, vive aprisionada às fake news e à desinformação, a vida teve que nos tirar justamente quem sabia o que dizer e quando era a hora. Uma pena. 

Jabor, você não tem ideia da falta que vai fazer na vida de milhares de leitores brasileiros. Vou ser um eterno devedor da sua elegância narrativa e da sua inteligência mordaz. Fica com Deus, mestre!    

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Adeus, status quo!


Eu aguardei até os 44 minutos do segundo tempo - como costumam dizer os comentaristas de futebol - para escrever sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. E por um motivo extremamente importante: porque vivemos uma época de revisões críticas no país como nunca antes na história e muitos intelectuais acreditam piamente que a Semana que marcou época no país e fundou as bases do que viria a ser conhecido como modernismo é alardeada em excesso e não teve um impacto tão nacional quanto muitos cidadãos pensam. 

E isso ficou ainda mais claro para mim ao assistir a entrevista do jornalista e crítico cultural Ruy Castro - autor dos extraordinários O anjo pornográfico, Estrela Solitária e Carmem, dentre outras obras-primas do gênero biográfico - para o programa Roda Viva na TV Cultura. Ele esmiuçou de forma soberba e sem deixar de ouvir atentamente seus entrevistadores (mesmo quando eles discordavam em muitos aspectos) o que foram aqueles cinco dias, de 13 a 17 de fevereiro de 2022, de arte e revolução no Teatro Municipal de São Paulo. 

A Semana de 22 aproveitou-se, logicamente, da industrialização e da migração maciça de estrangeiros para São Paulo na década de 1920 (para muitos, o prenúncio do estado se tornando o maior parque industrial do país) e desejava urgentemente quebrar o conservadorismo vigente no período, promovido pelo parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica. O que aqueles homens e mulheres visavam era um novo ponto de vista estético e uma independência cultural. Em outras palavras: o fim derradeiro do status quo como o conhecíamos até então. E eles conseguiram. 

E a influência das vanguardas europeias disponíveis na época (cubismo, futurismo, surrealismo etc) influenciaram essa postura arrojada e visionária. Era preciso urgentemente romper com o tradicionalismo que mantinha o Brasil - na visão desses artistas - preso a um passado que não tinha mais o que acrescentar. Eles (e elas) acreditavam que se o país permanecesse naquela toada nunca atingiria o seu real desenvolvimento como nação. 

Contudo, relido um século depois o que foram aqueles dias, muitos acreditam que a semana não foi um fenômeno nacional, muito menos agregador de todos os setores da sociedade. Ele era, isso sim, um fenômeno urbano e eminentemente paulista. E a classe elitista da época não apoiou o evento, ao contrário do que muitos pensam. O que, lógico, vem gerando muitas reações negativas por parte de certos segmentos da classe intelectual que preferem acreditar que o grupo abraçou o país como um todo. 

O grupo em questão era eclético: entre escritores (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Manuel Bandeira - que não participou fisicamente da semana -, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho), pintores (Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Cândido Portinari), escultores (Victor Brecheret, Hildegardo Veloso), músicos (Heitor Villa-Lobos, Ernani Braga, Guiomar Novaes) e arquitetos (John Graz, Antônio Moya, Georg Przyrembel) via-se claramente a intenção de criar uma arte nacional, com cara nova, desapegada dos ideais moralistas e enfadonhos - segundo eles - do país de então, mesmo que não seguissem um conceito único. Eram, em suma, vozes distintas buscando um caminho que levasse o país à modernização. 

Desse período fértil, engajado e reacionário surgiram marcos da nossa literatura bem como das artes plásticas. Paulicéia Desvairada, livro de Mário de Andrade e Abaporu, tela de Tarsila do Amaral, são dois gigantescos legados dessa época, bem como o manifesto Pau-Brasil (1924) e o movimento antropofágico (1928). Entretanto, há uma crítica feroz que é feita atualmente ao fato de que a maior parte do que conhecemos, em termos de registro histórico, sobre a Semana de 22 foi escrita por Oswald de Andrade de forma tendenciosa. 

E por que estou mencionando isso? Porque na mesma entrevista concedida por Ruy Castro ele menciona que Oswald acabou se notabilizando como um grande adulterador de fatos e datas desse período. Logo, como acreditar nessa herança cultural, ainda mais num país que atualmente luta arduamente para desmentir seu passado?

Enfim... O principal legado deixado pela Semana de Arte Moderna nesses 100 anos é, não a festa e o ato celebratório em si (muitas homenagens serão feitas nessa semana, seja via televisão ou em museus e centros culturais), e sim a necessidade de perseguirmos a história que ela nos deixou e procurar por incongruências e distorções (coisa que, aliás, nosso país sempre adorou administrar). Portanto, nos preparemos para ter senso crítico e duvidar de muita coisa que será publicada sobre o tema ao longo do ano. Sim, vai ter muita gente tentando se apropriar do centenário para "inventar a sua versão dos fatos" e isso é extremamente perigoso e descartável, principalmente para quem - como eu - adora ler e ficar por dentro dos fatos.  

E ao fim deste humilde artigo-homenagem, ainda me fica à mente uma curiosa questão: se hoje estamos rediscutindo a Semana de 22 da forma como estamos, e pelo que a sociedade vem se mostrando ao longo do século XXI, imagina então o que irão falar no próximo centenário, em 2122? E esta resposta eu não só não tenho como dar, como certamente não estarei aqui para presenciar tudo isso. O que, cá entre nós, é uma pena, pois a minha curiosidade é imensa e inesgotável.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

E no fim sobrou apenas o charlatanismo


Eu nunca me esqueço da primeira vez que ouvi a frase: "no fim, somente as baratas sobreviverão ao inferno e à explosão nuclear" e me lembro do riso nervoso que dei ao ouvir a declaração. Realmente, baratas são seres terríveis e você tem a legítima sensação de que elas não morrem nunca e sim proliferam, de forma ininterrupta. Contudo, há uma outra classe que, passe o tempo que for, estejamos nós no século XL, eles nunca deixarão de existir. Falo dos golpistas, charlatães, estelionatários, gente que devota sua vida a enganar os outros. 

Eu às vezes me pergunto se nós, cidadãos de bem, vivemos tanto quanto eles, pois à primeira vista o que eu vejo é uma multidão de cafajestes que só faz crescer a olhos vistos, entra ano sai ano. E eis que o diretor Guillermo del Toro se propõe a contar uma história de cunho meio noir com seu O beco do pesadelo, recém-indicado ao Oscar de melhor filme, e acaba me fazendo pensar em outras questões completamente diferentes (digamos, mais ácidas).  

No novo longa de Del Toro acompanhamos a saga de Stanton Carlisle (Bradley Cooper), que chegou aquela etapa da vida em que percebe a duras penas que trabalho duro e ética não são suficientes para salvar o patrimônio da família. Como adendo a essa descoberta, o fato dos EUA ainda viver o resquício do caos da chamada grande depressão, que devastou o país após a quebra da Bolsa de Nova York. Como único recurso, ele põe fogo na própria fazenda e parte rumo a uma nova vida. 

E a princípio ele encontra essa nova realidade num circo mambembe, repleto de figuras as mais detestáveis e oportunistas possíveis, mas também o amor - ou o que ele pensava ser o amor - na figura de Molly Cahill (Rooney Mara). Ao conhecer Pete (David Starthairn), um golpista que já teve seus dias de glória e que agora vive de pequenos golpes, ele aprende a arte do chamando mentalismo e vê nesse aprendizado seu passaporte para o sucesso. 

Cansado de uma vida pela metade e de ser colocado para escanteio a todo momento, ele - acompanhado de Molly - vai para a cidade e se torna um mentalista famoso e conceituado. Seus truques, que a plateia considera um dom divino, são capazes de transformá-lo na atração do momento. Mas ele, no fundo, como todo golpista que se preze, deseja mais. E quando conhece a ardilosa terapeuta Lilith Ritter (Cate Blanchett), ele se depara com a chance de dar o golpe perfeito. 

Ela o apresenta ao alto escalão dos seus clientes, homens ricos, mas completamente sem alma, desesperados por um fiapo de esperança que os console das perdas sofridas ao longo da vida. E essa é a chance de Stanton conseguir fazer sua independência financeira de vez. Entretanto, o que ele se esqueceu de levar em conta é que normalmente, no mundo onde homens como ele habitam, você está sempre rodeado de pessoas tão ruins ou piores do que você mesmo, e isso pode gerar consequências altamente destrutivas. 

Stanton é um homem que nunca teve o amor do próprio pai e reagiu a isso de forma extremamente brutal e vingativa. Ele é o exemplo vivo do que a vida pode fazer com você quando guardamos nossos traumas e os transformamos em força motriz para seguir em frente. O resultado dessa equação é sempre desastroso. E para quem vive segundo suas próprias regras, acreditando que os demais não passam de futuras vítimas a serem descartadas, o que sobra ao fim são as agruras do próprio charlatanismo, que nunca oferece uma zona de conforto agradável. 

Para quem esperava uma produção mais police novel, O beco do pesadelo é meio decepcionante. Na verdade, a narrativa é um tanto irregular em alguns momentos. Tive a sensação, na segunda parte do longa, de já ter assistido àquele filme antes dirigido de forma mais brilhante. O segmento do circo me pareceu mais coeso e ele poderia ter centrado a película toda nele. Entretanto, ao contrário do que andei lendo nas redes sociais e nos portais de cinema, que consideraram o filme o mais fraco da carreira do diretor, confesso que ele ainda me agradou mais do que alguns dos últimos projetos dele (principalmente A mansão escarlate e A forma da água). Podem até me chamar de louco, mas achei que faltou disciplina artística. O projeto em si não era um equívoco. Longe disso. Ele apenas deveria ter tomado um outro caminho. 

Dentro do caminho proposto, ficou-me a impressão de ter visto uma grande alegoria sobre a maldade humana e suas consequências nefastas. E o problema é que esse cinema já vem sendo mostrado em excesso nos últimos tempos em hollywood, daí um pouco da minha decepção. Eu esperava um novo caminho, algo mais original. Mas tudo bem. Não se pode acertar sempre. Nem sempre é possível tirar um novo O labirinto de fauno da cartola!

Ainda assim, recomendo aos fãs do diretor que vejam o longa, que possui uma direção segura, é bem produzido e tem um elenco interessantíssimo (que ainda conta, além dos atores já citados, com Willem Dafoe, Toni Collette, Richard Jenkins, Mary Steenburgen e o eterno parceiro Ron Perlman, de Hellboy).

P.S: O filme de Guillermo del Toro é um remake do clássico O beco das almas perdidas (1947), do diretor Edmund Goulding. E eu recomendo aos fãs da boa sétima arte que o vejam, pois o original me pareceu bastante superior à esta versão aqui. Isso, é claro, se você - como eu - também curte cinema em preto-e-branco.   


sábado, 5 de fevereiro de 2022

O sátiro por excelência


Eu sei que vai parecer clichê a muitos leitores, mas quem diria que um reles filho de tapeceiro, órfão desde criança, chegaria tão longe produzindo teatro num dos países mais esnobes (à época) e intelectualizados da Europa em pleno século XVII. Refiro-me, obviamente, a Jean-Baptiste Poquelin, que provavelmente você, caro leitor, conhece mais pelo pseudônimo que o consagrou: Molière. 

Assim como Shakespeare na Inglaterra, Molière é um fenômeno inegável das artes cênicas e aqui no Brasil, repleto de grandes comediógrafos, ele é certamente um capítulo à parte. Mestre da comédia satírica, esmiuçou como poucos à seu tempo a personalidade e o caráter humano, tornando sua obra um grande estudo de caso sobre o assunto. "Por trás de cada gargalhada, me disse certa vez um senhor que conheci no teatro Cacilda Becker, no Catete, e grande fã do dramaturgo, "é preciso estar atento a fina ironia, ao deboche calculado, direcionado a uma denúncia feroz sobre o que acontecia naquela sociedade de outrora". E ele foi preciso ao dizer isso. 

E eis que este mestre incontestável chega, em 2022, ao seu aniversário de 400 anos e não fosse a lastimável pandemia que ainda nos assola estaríamos vendo um grande enxame de montagens sobre a sua obra em todos os cantos do país.

Molière nasceu em 15 de janeiro de 1622 numa França de grande importância política para a Europa. E se dependesse do Rei Luís XIV e do Cardeal Richelieu a área cultural do país receberia a mesma atenção, tanto que o teatro naquele período vivia o seu apogeu. Contudo, a profissão do ator era muito marginalizada e excomungada, tanto pela opinião pública quanto pela igreja. O rei, apoiador e patrocinador de Molière, bem como financiador de várias companhias, chegou a assinar uma lei proibindo a desqualificação da profissão de ator, por considerar a atitude do povo e do clero um absurdo. 

Molière poderia ter seguido os passos do pai profissionalmente e alguns historiadores e pesquisadores de sua obra, dizem que ele teria se formado em Direito e depois iniciado a carreira no teatro, mas ficou claro desde o princípio que o seu negócio eram os palcos, tanto que desde novo era visto com frequência nos tablados. E eu tenho uma opinião bastante pessoal sobre esse aspecto: acredito que ele tenha se identificado com o lugar desde cedo, pois ali encontrou o microcosmo fidedigno do que era a sociedade daquele tempo, com suas contradições e disparates. 

Com os irmãos Joseph e Louis Béjart, Molière fundou a companhia L’Illustre-Théântre, onde se apresentou durante dois anos. Mas como não conseguiu bater de frente com as companhias de renome - a do Hotel de Bourgogne, Marais, etc - acabou contraindo dívidas severas, que chegaram inclusive a levá-lo preso durante um período. Acham que foi o suficiente para pará-lo? Nada! Após uma soberba montagem de uma peça de Racine, ganhou não somente elogios do Duque Filipe de Orléans, irmão do rei, como o monarca acabou assumindo o grupo do qual Molière fazia parte sob sua tutela, dando-lhe o nome de Troupe du Roi (ou Trupe do Rei).

Seu primeiro sucesso nos palcos vem com As Preciosas Ridículas, onde ele é pura ousadia ao apresentar uma farsa com elementos prosaicos, onde rostos enfarinhados e máscaras coloridas caricaturavam personalidades importantes e expunham-nas ao ridículo. Quem viu o resultado do espetáculo na época, diz que não foi à toa que ele ganhou do escritor Boileau o apelido de "O contemplador", tamanha sua facilidade em retratar os cidadãos da elite.

Contudo, com o passar das gerações e o aumento do prestígio de Molière, tem quem prefira Tartufo e a genialidade do falso devoto que se aproxima da família cristã para expor suas depravações (que escandalizou a igreja do período, tanto que ela conseguiu tirar o espetáculo dos palcos por um tempo) ou O Avarento, retratando a paradoxal condição do personagem central, cuja única real paixão que possui é pelo dinheiro e, no entanto, desejoso ao mesmo tempo de amor e respeito. Tempos atrás, aliás, houve uma montagem aqui no Brasil com o ator Tônico Pereira, verdadeiramente sublime!

Um detalhe providencial que me veio à mente agora: talvez algumas fãs do teatro Molieriano do sexo feminino prefiram os problemas morais e as virtudes e defeitos humanos de Escola de mulheres, ainda mais em tempos de feminismo cada vez ganhando mais força ao redor do mundo. Logo, fica a dica desta peça também.  

Em meio a proibições, escândalos (casou-se com uma mulher 20 anos mais nova, em pleno período de puritanismo na França) e acusações de imoralidade, Molière foi um vitorioso das artes e soube enfrentar quem quer que fosse para ver suas ideias visionárias defendidas a qualquer preço. No final das contas, de irônico mesmo em sua trajetória fica sua morte (em 17 de fevereiro de 1673), ocorrida enquanto representava o protagonista de O doente imaginário. Até hoje poucos tabloides ou investigadores souberam dizer o que casou de fato o colapso que o matou em sua casa, em Paris. 

Mas se eu disser que no mundo do qual Molière faz parte, dos gênios rebeldes e irascíveis, que não levam desaforo para casa, até mesmo este final é óbvio (tem até quem chame de clichê, como eu mencionei no primeiro parágrafo), vocês acreditam ou vão ficar putos comigo e dirão que eu estou me repetindo sobre isso? Enfim... Vida longa ao mestre e que venham os 500 anos o quanto antes!


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

A musa do Antonioni


O que seria do cinema mundial sem suas mulheres extraordinárias e da impressão que elas deixaram viva nas telas? Essa é uma das muitas perguntas sobre a sétima arte e a paixão que ela nos provoca que eu jamais serei capaz de responder. Apenas admirar, estupefato, o que elas - as musas, divas, estrelas, etc - fazem comigo toda vez que aparecem na exuberância de seus sorrisos e corpos e figurinos impecáveis. Um colega meu, também doente por cinema, me disse uma vez: "o cinema acaba, mas minha paixão por Sophia Loren, Marilyn Monroe e Elizabeth Taylor jamais!". E ele está coberto de razão. Elas são figuras imortais, únicas, inigualáveis. 

Hoje o cinema italiano e mundial perdeu uma dessas figuras insubstituíveis, eternas, daquelas pessoas que você pensa toda vez que a revê nas telas: "essa não podia morrer de jeito nenhum". Até que ela morre e ficamos inconsoláveis. Aos 90 anos, a atriz Maria Luisa Ceciarelli (ou simplesmente Monica Vitti) faleceu. 

Mais: a noticía ainda vem acompanhada de uma outra que me deixou ainda mais estarrecido. A de que ela nas últimas duas décadas sofria do Mal de Alzheimer. Aquilo me destruiu. Como assim, aquela mulher gigantesca, que me deixou boquiaberto com sua beleza que beirava a indecência, teve de passar por isso? Nesse mesmo momento me vêm à mente o filme Amor, de Michael Haneke, e a interpretação magistral de Emmanuelle Riva, e eu imagino todo o sofrimento pelo qual ela, Monica, teve de passar. E isso é por demais triste. 

Ela iniciou sua carreira artística ainda muito jovem em produções amadoras e depois cursou a Academia Nacional de Artes Dramáticas em Roma. A partir de então, veio a consagração e o reconhecimento de grandes diretores. Entre os cineastas de prestígio que tiveram a honra de dirigi-la nomes como Mario Monicelli, Franco Rossi, Roger Vadim, Tinto Brass, Ettore Scola e Vittorio di Sica, em obras que vão do drama à comédia. 

Entretanto, ela ficou realmente conhecida do grande público na história do cinema mundial por sua parceria de longa data com o diretor Michelangelo Antonioni em clássicos da década de 1960 como A aventura (1960), A noite (1961), O eclipse (1962) e O deserto vermelho (1964), chegando a ficar rotulada por parte da crítica como "a musa do Antonioni". Mas ela tinha luz própria e soube se reinventar ao longo da carreira.  

Acho praticamente impossível - como fã de quadrinhos e tirinhas de jornal desde moleque - não me lembrar de Monica por sua encarnação de Modesty Blaise, no longa homônimo de Joseph Losey de 1966, inspirado nas tirinhas de Jim Holdaway, Muitos antes de DC e Marvel duelarem por bilheterias milionárias e exaltarmos a beleza de atrizes como Gal Gadot, Amy Adams e Scarlett Johansson, a musa italiana já dava o seu recado em uma produção bem mais modesta baseada em comics. E pra quem nunca viu o longa até hoje, fica a dica: vocês não fazem a menor ideia do que estão perdendo!

Ao longo de quase quatro décadas atuando, Monica acabou meio que personificando a figura da mulher traída, vingativa ou até mesmo a vigarista, apta a dar o golpe em quem desse brecha. Exemplo máximo dessa fúria incontrolável e desse deboche extremamente bem articulado nas telas foi Assunta Patanè, sua personagem em A garota com a pistola, de Mario Monicelli (1968), no qual após ser enganada pelo amante, decide procurá-lo a qualquer custo, para matá-lo. E ainda digo mais, mesmo que me chamem de exagerado: ela foi, à sua maneira, uma Catherine Tramell (vivida por Sharon Stone em Instinto Selvagem) do cinema europeu. E com folga.

Por suas atuações, Monica ganhou sete troféus no Globo de Ouro Italiano, cinco prêmios de Melhor Atriz no David Di Donatello Awards e foi indicada ao BAFTA por A Aventura. Contudo, independente de seu reconhecimento junto à crítica e à Academia, acredito que seu maior legado para o cinema tenha sido a persona que ela construiu nas telas (muito mais do que suas interpretações dramáticas). Diferentemente de atrizes como Bette Davis, Maggie Smith e Shirley MacLaine, que criaram um estilo de interpretação, Monica era a imagem viva de como a Itália queria se mostrar para o mundo através da sétima arte. 

Em outras palavras: ela era o rosto e o corpo que definiram o país cinematograficamente durante décadas. E pouquíssimas atrizes conseguiram atingir o mesmo patamar.   

Seu último crédito no cinema, segundo o IMDb, data de 1992 num longa produzido para a televisão. Portanto, são três décadas sem notícias da musa. Quer dizer: os fãs autênticos sabiam que desde 2000 ela estava casada com o pianista e compositor Roberto Russo, com quem mantinha um relacionamento desde 1973, e vivia reclusa. Mas no quesito profissional, eu não sabia mais por onde ela andava há tempos, antes da triste notícia de hoje. 

Uma pena. Temos perdido artistas notáveis e ímpares em demasia nos útimos tempos. Sidney Poitier se foi, Jean Paul Belmondo se foi, nosso mestre Paulo José se foi, o diretor Peter Bogdanovich - de A última sessão de cinema - se foi. Agora Monica. E com isso a sétima arte empobrece aos olhos de quem ama o verdadeiro cinema. Que os deuses da sétima arte, por favor, deem um tempo, porque nós não aguentamos mais tantas despedidas!  

P.S: eu jamais iria poder ir embora sem dizer ao final "obrigado por tudo, Monica. Por cada segundo, por cada sorriso e pelo seu eterno sex appeal. E fica com Deus!"