Tem pessoas que preferem acreditar que um livro é apenas um livro, que se trata apenas de papel, que não muda o mundo ou mesmo a humanidade (já estudei, inclusive, com um rapaz que defendia isso com uma naturalidade absurda). Cá entre nós: para mim isso é papo de gente presunçosa e babaca que não gosta de ler. Mais: acha literatura uma grande perda de tempo. Que bom seria se essas pessoas pensassem o mesmo dos campeonatos de futebol milionários, cheios de atletas esnobes que não estão nem aí para o resto da civilização, ou da política partidária. Talvez o mundo hoje fosse outro...
Enquanto isso não acontece, é preciso deixar claro aos fãs do mercado editorial: há livros, sim, que são mais do que meros livros. Qualquer pessoa que já tenha lido, pelo menos uma vez na vida, Dom Quixote, Os miseráveis, A Odisseia, On the Road, Crime e Castigo, só para ficar no meu básico indispensável, sabe do que eu estou falando e com folga. E em alguns casos, como certa ocasião disse o crítico Antônio Candido, eles têm o poder de mudar o mundo mesmo sem ser lidos. E nesse caso me refiro particularmente à Ulisses, obra seminal do autor irlandês James Joyce, que completa 100 anos em 2022 (quer dizer: alguns estudiosos irão dizer que há discrepâncias a cerca deste centenário, mas oficialmente é isso!).
Ulisses nos apresenta Leopold Bloom, o Homero do século XXI (referência direta do personagem), numa rotina que à priori parece bem simples: ele sai de casa, realiza pequenas tarefas e ao fim do dia, retorna para o seu lar, acompanhado do parceiro Stephen Dedalus. O dia em questão é 16 de junho de 1904. Mas não se enganem, caros leitores! A obra em si, sua simplicidade, é - isso sim - um grande desafio que povoa a cabeça de milhões de leitores ao redor do mundo há um século. E não à toa muitos não conseguiram terminá-lo até hoje.
Escrito durante um período de sete anos (1914-1921) e tendo alguns trechos publicados num jornal literário como se fosse uma espécie de folhetim - uma prática bastante comum da época -, o romance de Joyce segue dividindo opiniões e encantando os amantes da boa (e complexa) literatura. Já foi chamado de genial, revolucionário, ímpar, mas também de embuste, charlatanice, incógnita, perda de tempo, esnobe e difícil em demasia. Virginia Woolf se recusou a publicá-lo em sua editora e ainda o classificou como nada menos do que uma catástrofe literária. Parece louco pensado hoje, um século depois, e é. Em suma: num artigo que li no Estadão ao pesquisar para escrever este texto encontrei a melhor definição para Ulisses. Ele continua sendo o romance mais paparicado, temido e mistificado da literatura.
E em tempos de fake news na internet isso só aumenta. O contingente de pessoas que compram o livro para tê-lo apenas como enfeite em suas prateleiras é absurdo. Entretanto, ele é mais do que a mera leitura em si e o fato de ser uma narrativa difícil, cheia de armadilhas, acaba meio que contribuindo para que aqueles que nunca a leram ou não passaram da introdução sejam perdoados. Até esses, os não-leitores, foram afetados pelo espírito da época criado por Joyce. E a prova disso é que muitos intelectuais que estudam sua obra dividem a literatura mundial em A.U e D.U (em outras palavras: antes e depois de Ulisses).
Entre os admiradores da obra figuras notáveis como T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ernest Hemingway, Vladimir Nabokov e Ezra Pound, este último o maior padrinho e principal responsável pela viabilização da livro. Já entre seus detratores, que odiaram o livro ou o acharam desnecessário, constam também grandes nomes como George Bernard Shaw, E. M. Forster, Paul Claudel. E em meio a tantas divergências, uma certeza: trata-se de um trabalho que suscitou, suscita e ainda suscitará os debates mais diversos (e esse é, sem sombra de dúvidas, o seu maior legado para a história da literatura mundial). E quem diria que um romance que foi acusado de fazer a literatura entrar em colapso chegaria tão longe!
Entre as façanhas oferecidas por Joyce com o romance estão a maneira como revolucionou a forma do romance moderno; o uso do fluxo de consciência nos personagens (não uma invenção sua, mas certamente ele o personalizou com estilo); a escrita de longos parágrafos sem pontuação; a concentração da história em um único dia (algo não muito comum naquele período); o estabelecimento, de uma vez por todas, da liberdade de se escrever, publicar e ler qualquer coisa que se queira e o uso de palavras consideradas chulas, até então ausentes da grande literatura, como “foder”, “gozar” e até mesmo a grafia no texto da genitália feminina. O que, logicamente, rendeu muita censura e perseguição ao autor.
Considerado obsceno pelas autoridades antes mesmo de ser publicado, teve pessoas ligadas à obra processadas e alguns chegaram a ir para a cadeia por vender exemplares do romance (que foi até mesmo contrabandeado num esquema parecido com o das bebidas alcoólicas nos anos de lei seca). E não bastasse tudo isso, incontáveis exemplares foram apreendidos e incinerados, numa alusão ao clássico Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que muitos leitores sonsos preferem acreditar que "essas coisas não acontecem na vida real". Eu, que até então pensava que o processo envolvendo o poema O Uivo, de Allen Ginsberg, taxado de ser pornográfico, era monstruoso em demasia, aqui tive a certeza de que já aconteceu coisa muito pior envolvendo autores. E Joyce é mais uma dessas vítimas que não cansam de surgir de tempos em tempos.
Pelo outro lado positivo, o do legado, das conquistas, duas certezas: a quantidade de autores cujas ideias jamais teriam existido sem a influência desse irlandês tão controverso. Jose Saramago, J. M. Coetzee, Roberto Bolaño, Samuel Beckett, Thomas Pynchon, Jorge Luis Borges... Todos. cada um à sua maneira, existiram influenciados por Joyce e sua magnífica obra. E Ulisses é, da maneira mais rasteira que consigo enxergá-lo - pois creio que ele merecia uma alcunha melhor do que essa, mas me faltam palavras para descrevê-lo com exatidão (como disse em parágrafo anterior: é uma narrativa difícil) - um livro além dos próprios leitores. Mas tem gente que não entende isso e prefere enxergá-lo como uma reles verborragia sem sentido.
E antes que me perguntem o que faltou escrever, eu não posso deixar de mencionar o Bloomsday, realizado todo ano na Irlanda, em 16 de junho, para homenagear o protagonista Leopold Bloom. Uma festa que reúne anualmente milhões de leitores do livro e já virou parte do calendário cultural do país. Sim, você que não conhece ou nunca leu Ulisses, não leu errado, não! O romance virou um feriado. Para vocês verem a força dessa narrativa que atravessou um século mexendo com a cabeça das pessoas.
E agora? Vai continuar chamando o romance de esnobe, difícil, presunçoso, mesmo depois de ter lido tudo isso? Daqui pra frente você está por sua conta e risco, então. Só não venha me dizer depois que eu não te falei do livro, tá bom?