Adoro cineastas que fujam do convencional, que experimentem, que na sua obra dialoguem com seus demônios interiores, que reconstruam a todo momento o seu processo criativo, que fujam de si mesmos à procura do, às vezes, inatingível. Isso sim é a verdadeira sétima arte.
E dentre os nomes que mais chamam a minha atenção nesse sentido há um documentarista nacional que eu trato como um verdadeiro fetiche: João Moreira Salles. Há anos quero assistir à Santiago, seu projeto mais pessoal, e não consigo encontrá-lo em lugar nenhum. Para minha felicidade o canal curta esta semana atendeu minhas preces e o exibiu. Desde já adianto minha impressão: sublime!
Salles vai de encontro às memórias do mordomo de sua família, um homem de extraordinária memória e sabedoria. Procura-o, já aposentado, em seu apartamento, e começa a gravar uma série de depoimentos mágicos. Ele próprio se intitula "um homem que viveu no passado". Roda seu filme. Mas, infelizmente, não consegue montá-lo. Algo o impede de realizar a decupagem. Bloqueio criativo? Quem dera fosse fácil assim explicar a mente dos diretores de cinema!
Passam-se 13 anos que as filmagens foram realizadas e só restam ao diretor 9 horas de registro audiovisual bruto e 30 mil páginas transcritas pelo próprio Santiago onde estão reunidas histórias sobre a aristocracia mundial, uma paixão eterna deste homem. E ele, Salles, tenta mais uma vez montar o filme. Mais do que isso: ele precisa recomeçar do zero. E é justamente esse aspecto o legado mais importante do documentário.
Enquanto Santiago narra suas façanhas, relembra as festas, o período que conviveu de perto com presidentes (JK e João Goulart o tratavam como um igual, segundo diz), reza em latim - um dos momentos mais poderosos do longa -, toca castanholas, confessa seu fascínio pelo boxe e o amor pelas flores e madonas, o diretor luta consigo mesmo para dar sentido e coerência a todo este material extraordinário.
A voz de Salles pontua toda a trama e realça seus dilemas, explica seus erros e escolhas passadas que o levaram a não concretizar o filme 13 anos antes. E é interessante e reflexivo - para mim então, cinéfilo de carteirinha desde os 10 anos, nem se fala! - acompanhar o trabalho do documentarista, que tenta entender onde falhou, porque escolheu o caminho A e não o B. Recomendo de olhos fechados esta pequena jóia para estudantes de cinema. Trata-se, em suas entrelinhas, de um making of poderosíssimo.
Ao final da exibição na tv a cabo chego a duas conclusões distintas: 1) é o primeiro filme de João Moreira Salles que eu vejo que não mantém uma relação, digamos, direta com questões pertinentes ao Estado ou a política partidária. Como eu disse antes: seu projeto mais pessoal, que o fez lembrar a todo momento de sua infância e de seus pais, ambos já falecidos. E 2) o documentarista estreita de vez as relações entre ficção e realidade sem tornar a experiência fílmica caricatural ou falsa.
É daquelas produções que me fazem pensar o quanto o povo brasileiro é completamente louco por não valorizar a sua própria produção audiovisual. Como assim não admirar tamanha beleza estética ou apuro narrativo? Só mesmo um ignorante relegaria tal projeto à condição de esquecimento ou deboche.
Indico Santiago com toda a devoção que somente os fãs mais apaixonados do cinema são capazes de reconhecer para os cidadãos brasileiros sobreviventes que ainda acreditam na força da nossa sétima arte (ao contrário daqueles que torcem doentiamente pelo fim das leis de incentivo e de órgãos como a Ancine).
É de mais reflexões e exercícios de estilo como esse que nossa indústria cultural anda precisando. Urgentemente.