terça-feira, 29 de agosto de 2023

A guerra tem muitos pontos de vista


Há anos ouço falar do quadrinista Joe Sacco e da grande fusão que ele vem fazendo entre jornalismo e nona arte, mas por algum motivo que nem eu mesmo sei explicar ainda não tinha lido nenhum trabalho dele. Como pude ser tão relapso! Deparo-me com um exemplar antigo da graphic novel Uma história de Saravejo sendo vendido (melhor: doado) por módicos 15 reais e leio tudo de uma sentada só. 

Resultado: uma das mais extraordinárias experiências que eu já tive lendo sobre a guerra e seus interesses escusos. 

Sacco se debruça sobre os dias finais do conflito dos Balcãs, mas poderia ser qualquer outra guerra: Vietnã, Coréia, do Golfo, etc... Pois, ao fim da leitura, percebemos que essa é uma realidade comum a todos os conflitos. Em toda guerra há sanguessugas, interesseiros, pessoas escusas e infames que lucram - e muito - com a dor e a morte alheia. Pior: às vezes se intitulam sobreviventes, de forma quase heroica. 

Neven, o interesseiro em questão, é a fonte do jornalista e "protagonista" dessa história, alter-ego de Joe. Quer extrair dele até o último centavo que puder e, quando possível, meter o pé do país.

Mora dentro de destroços junto com uma tia, e não vê mais futuro na Bósnia (simplesmente porque o país contrariou o caminho que ele considera o mais adequado, visão de mundo típica de extremistas e daqueles que adoram se esconder atrás do patriotismo à serviço da falta de conhecimento sobre tudo). Se precisar, inventa até conflitos e mortes que nunca ocorreram para engrandecer ainda mais o seu relato. 

O que interessa para ele é ser visto pelos demais como um herói incompreendido, uma voz importante dentro de uma nação cheia de discórdias (políticas, sociais e religiosas) e a total falta de esperança por dias melhores. 

Em alguns momentos me peguei pensando em qual seria o impacto se o álbum fosse a cores, mas depois voltei atrás: o cinza, mesclado ao preto-e-branco, explicam melhor essa sensação de niilismo e desesperança promovida pela guerra (por todas as guerras, é bom que se diga!).

Ao fim o que precisamos levar em consideração é que a guerra tem muitos pontos de vista, em alguns casos os mais sórdidos possíveis. E ainda tem ingênuos e idiotas que veem no conflito armado uma solução para o que quer que seja. Vou morrer sem entender essa gente que consegue enxergar um lado vencedor da guerra. Não é à toa que o mundo está do jeito que está. 

Quanto à Joe Sacco, brilhante a cada página desenhada: preciso encontrar agora os outros trabalhos dele. A lenda sobre sua arte realmente procede. Quadrinhos pode até não ser literatura, mas como é bom se deparar com artistas desse gabarito de vez em quando. A nona arte e os leitores agradecem!


quinta-feira, 24 de agosto de 2023

50 anos de um épico da soul music


Quando penso no cantor e compositor Marvin Gaye (e acreditem: eu penso nele com bastante frequência, principalmente em tempos como os de agora, tão carentes de boa música), na mesma hora eu digo: "ele era a alma da Motown". E era. Fruto de um lar disfuncional com uma velha rixa com o pai, chega a ser inacreditável que ele tenha conseguido construir uma carreira tão sólida como a que construiu.

Na primeira vez que ouvi o álbum What's going on eu fui ao delírio na segunda faixa. E só para constar: poucas coisas produzidas no mercado fonográfico merecem realmente a alcunha de obra-prima como este projeto. Certa vez ouvi um diretor da Rede Globo dizendo que a voz do cantor Milton Nascimento poderia ser a voz de Deus. Marvin seria a versão made in USA dessa frase. 

Com Let's get it on, seu álbum seguinte, o que poderíamos esperar? Que a qualidade seria inferior, que ele dificilmente repetiria a mesma façanha... Ledo engano! Marvin entregou tudo - de novo - e agora sai uma notícia que vai deixar os fãs do artista ainda mais enlouquecidos: a de que o disco terá uma versão ampliada, com versões alternativas das faixas e instrumentais nunca antes ouvidas. Meu Deus! Milagres ainda existem. 

A obra original é constituída de meras 8 faixas e não fiquem putos! Cada uma delas vale mais do que qualquer mega-álbum duplo de alguma banda de metal rock, cheio de B sides e outtakes. 

Se é possível eleger faixas favoritas (além, é claro, a que dá título ao trabalho) eu recomendo de olhos fechados "Keep gettin' it on", "Come get to this" e "Distant lover". Mas o ideal mesmo é procurar um box com todo o cancioneiro  extraordinário dele.

Importante: ouvir (e reouvir) Marvin Gaye de tempos em tempos é também relembrar de toda a geração talentosa da qual ele fez parte (Curtis Mayfield, Stevie Wonder, Barry White, The Jacksons 5, The supremes, Aretha Franklin, Isaac Hayes, etc etc muitos etcs, um mais genial do que o outro). O diferencial, no final das contas, está no fato dele ser the voice (sorry, Sinatra, mas eu tinha que dizer isso...).

E poder testemunhar o quanto esse épico da soul music continua tão influente nos dias de hoje, mesmo com tanta gente ouvindo tanta coisa ruim à velocidade da luz hoje em dia, ainda é um alento!

Logo, fica aqui meu apelo (se você, caro leitor, cometeu a temeridade de ainda não ouvir esse disco): pare tudo o que estiver fazendo neste exato momento e procure-o em algum lugar, Spotify, Deezer, Youtube, um vinil emprestado de algum colega da faculdade, procurem! procurem! Pelo amor de Deus, procurem! 

Vocês NUNCA MAIS se relacionarão com a música da mesma maneira. Falo por experiência própria. Let's get it on é uma fenda no tempo na história da indústria fonográfica. E acredito que assim permanecerá mesmo depois que eu não estiver mais na terra. 

Parece louco, exagerado? Vai ouvir, então, pra tirar a prova dos nove.


segunda-feira, 21 de agosto de 2023

3 décadas depois... E ainda soberbo!


Idolatramos a humanidade de tempos em tempos, simplesmente porque não queremos enxergá-la como ela verdadeiramente é na maioria das vezes. Quer dizer: refiro-me a nós, reles mortais. Já os artistas, que para mim sempre se encontram em outra categoria à parte, o argumento não é bem esse, não! E em se tratando particularmente dos escritores, dos ficcionistas, essa ilusão fica ainda mais distante.

Irvine Welsh, por exemplo. Ele sempre teve uma gigantesca facilidade em narrar a banalidade humana, com cada dose precisa de sarcasmo inclusa. Prova viva disso é seu livro mais famoso, Trainspotting (uma expressão que, em escocês, tem a conotação de "atividade sem sentido" ou "algo totalmente inútil"), que completa 30 anos de publicação hoje. 

Retrato ímpar de uma sociedade insana que busca na avidez pelo poder seu modus operandi, o livro se tornou bem mais conhecido por aqui após a adaptação cinematográfica realizada pelo diretor Danny Boyle em 1996 (e um segundo longa lançado em 2017).

Acompanhamos a vida desregrada daqueles escoceses com tamanha adoração (refiro-me a certos cinéfilos alienados) sem levar em consideração o quão trágica e inumana é aquela mesma vida. 

Drogas em excesso, mulheres fúteis, falsas amizades, golpes que tem tudo para dar errado - e, em muitos momentos, eles próprios sabem disso e mesmo assim não dão a mínima e seguem em frente, pois a vida é uma só, não tem ensaio - e um sistema (seja a polícia ou o Estado) que só servem para corroborar cada decisão mal tomada de cada um deles. Assim é o universo por trás de Trainspotting.

E quem diria que após três décadas nós ainda estaríamos falando desse bando de desajustados, amorais, indecentes e beberrões, não é mesmo?

Com o romance de Irvine (que eu li por volta dos meus 16 anos) desenvolvi uma certa relação mórbida com autores e narrativas que analisavam o caos de perto, como quem vê tudo aquilo se autodestruir a partir de uma lupa. E acreditem: definiu parte de quem eu sou hoje como leitor. Provavelmente, se não tivesse dado uma oportunidade ao livro, hoje estava por aí corroborando essa modinha sacal de auto-ajuda e young adults (que eu costumo rotular de "livros para desmiolados"). 

Confesso que gostaria de ouvir algumas opiniões vazias dessa geração pão com ovo, fruto do politicamente correto, sobre a obra. Certamente devem estar excomungando tudo! E não é à toa: tanta gente imbecil querendo censurar palavrões em livros e cenas de nudez em filmes, imagine então lendo Irvine Welsh, um porra-loca (brilhante, mas porra-loca) por natureza. 

Quem não pertencer a essa trupe (desde já meus parabéns), recomendo a leitura. De preferência, se puderem, comecem hoje ainda. E procurem os outros romances dele também. O cara é foda!


sexta-feira, 18 de agosto de 2023

De Niro, 80


Todo dia uma novidade boa nesse mundo da cultura pop!

Ainda nessa pegada das homenagens leio que o ator Robert de Niro comemorou ontem 80 anos de idade. Uma carreira que raros artistas em hollywood conseguiram equivaler. Matt Damon, quando lhe entregou o Cecil B. DeMille Award durante a cerimônia do Globo de Ouro, disse que Robert era o maior ator vivo em atividade na indústria americana de cinema. E certamente não mentiu.

Difícil saber por onde começar ao falar de sua filmografia. A grande maioria dos fãs sempre lembrará da parceria dele com o diretor Martin Scorsese (um dueto que promete, ainda esse ano, The killers of the flower moon, que estou ansioso pela estreia!). Entretanto, ele colaborou com muitos dos gigantes da indústria: Bernardo Bertolucci, Sergio Leone, Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Alan Parker, Terry Gilliam, Michael Cimino, Elia Kazan, Michael Mann...

De padre à chefão da máfia, de motorista de táxi disposto a perpetrar o maior atentado terrorista dos EUA ao pugilista prepotente; de dono de cassino à Lúcifer; de Al Capone à fã obcecado pelo ídolo, de Jimmy Hoffa à pretenso comediante capaz de tudo pela fama... De Niro é um grande cronista da América, capaz de realizar façanhas inacreditáveis e construir biotipos físicos inigualáveis.

Entre seus longas que povoam minha mente de tempos em tempos, não tem como não destacar O poderoso chefão II, Taxi Driver, A missão, Os intocáveis, O franco-atirador (longa pelo qual eu tenho uma devoção eterna; provavelmente o filme com ele que eu mais assisti até hoje), Touro indomável, Cabo do medo, Fogo contra fogo, 1900, O rei da comédia, Tempo de despertar, Caminhos perigosos, Ronin... Procure seu perfil no IMDb: são mais de 120 créditos em que encarna um pouco de tudo.

E isso trabalhando numa era de grandes nomes da indústria, como Gene Hackman, Jack Nicholson, Dustin Hoffman, Al Pacino, Clint Eastwood, Robert Duvall, Marlon Brando, Donald Sutherland, Tommy Lee Jones, John Cazale e tantos outros. E olha que eu nem contei em detalhes os dois Oscars de melhor atuação que ele ganhou e os longas - Desafio no Bronx (1993) e O bom pastor (2006) - que ele dirigiu. Ou seja: não é pouca coisa!

Já nos últimos anos muita gente vem reclamando (de forma quase recorrente) de suas escolhas de carreira, incluindo uma série de comédias B extremamente questionáveis, de mau gosto mesmo, mas - a meu ver - nada que abale o legado que ele construiu. Afinal de contas, lendas continuam sendo lendas mesmo quando dão passos em falso aqui e ali.

E se por um lado ainda aguardo pelo menos mais um momento épico dessa grande estrela nas telas, por outro bate uma certa apreensão por saber que se aproxima também o fim de um ciclo. De Niro chegou naquele ponto x da carreira em que os grandes atores começam a preparar sua despedida, sair de cena. E volta e meia me pergunto: será que ele vai contrariar a regra e fazer como Clint Eastwood, que passou dos 90 ainda na ativa? Espero sinceramente que sim. 

E tenho certeza que os fãs, diretores e hollywood em geral vão concordar comigo!


quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Millôr, 100 anos


Ninguém fez humor na literatura brasileira como ele. E poucos brincaram tanto com o texto, com tamanha astúcia e talento, como ele fez ao longo das décadas. Quando faleceu, aos 88 anos, eu senti o golpe, como acredito que todo mundo que é fã da boa escrita sentiu. Quem? Millôr Fernandes, é claro!

Se vivo fosse ainda, hoje estaria completando seu centenário e logo de cara eu imagino a grande piada que ele ia escrever em algum jornal ou tabloide de renome sobre o acontecimento. Tudo que ele se propôs a fazer em vida, fez bem: seja como tradutor, dramaturgo, prefacista de livros alheios, cartunista, chargista, poeta...

Autodidata por natureza - embora tenha sido aluno do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro entre 1938 e 1942 -, fez do sarcasmo não somente uma das características primordiais da sua obra, como também um projeto de vida. Afinal de contas, segundo ele, ninguém aguenta 24 horas de um Brasil careta, sacal e antipático. E somente a ironia combinada com a provocação fazia o público refletir sobre a realidade. Quando o alvo de suas críticas bem humoradas eram o poder constituído e as forças armadas a sátira era o melhor caminho. E eu conheci pelo menos dois militares de carreira que adoravam lê-lo. 

E o seu pseudônimo que melhor representou essa verve mista de fúria e deboche foi, com certeza, Emmanuel Vão Gogo. Com ele não dá pra inocentar ninguém, nem ficar em cima do muro. Era dá ou desce!

Entre seus livros indispensáveis, aqueles que deveriam figurar na estante de qualquer leitor que admirem a sua cara-de-pau notória recomendo: Pif-Paf (1964), A maconha ou a vida (1968), O livro vermelho dos pensamentos de Millôr (1973), O livro branco do humor (1975), O homem do princípio ao fim (1978), Eros uma vez (1987) The cow went to swamp: A vaca foi pro brejo (1988)... e deixo as reticências de propósito para avisar que, provavelmente, se você tiver a chance, vai quer ler tudo.

E não somente nos livros, mas também nos veículos onde trabalhou: O cruzeiro (Onde começou cedo, aos 14 anos), Veja, O pasquim, Correio da manhã, Diário popular (em Portugal), O guri (publicação dos Diários Associados voltada para o mercado de quadrinhos), revista A cigarra, Diário da noite, TV Itacolomi, TV Tupi... Ufa! Não parava esse Millôr. E que bom para nós, leitores, saber disso.

Tornei-me leitor assíduo de William Shakespeare por causa das traduções dele. E, quando morando no Méier (onde vivi por quase duas décadas), soube que ele era cria do bairro, entrei na loucura de procurar saber em que rua ficava a casa onde ele morou. Pois é... Fã é maluco, eu sei.

Mas a cereja do bolo, o documento seminal para entendermos sua mente fervilhante de ideias é, com certeza, A bíblia do caos (publicada em 1994), onde cria um compêndio definitivo para entendermos de forma coloquial - e não menos brilhante - o que se passa na alma do povo brasileiro. Cheio de frases antológicas, retrata o país da maneira mais escrachada (e por isso mesmo, atual) que eu já vi até hoje como leitor. Vejam abaixo alguns momentos e tirem suas próprias conclusões:

"Brasil: um país governado por um gigantesco tour-de-farsa";

"Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim";

"Sempre que te derem um pontapé, ofereça a outra nádega";

"O pior mudo é o que quer falar";

"O intelectual é a empregada doméstica dos poderosos";

"Poligamia é uma espécie de ângulo equilátero";

"Fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar";

"Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados";

"O ser humano é inviável";

"Sexo é a única atividade que pode dar prazer a duas pessoas que se detestam";

"O homem tem a idade da mulher que está com ele".

Para quem quiser saber muito mais sobre essa figura ímpar da nossa cultura popular, recomendo o site https://ims.com.br/titular-colecao/millor-fernandes/, repleto de boas e curiosas tiradas.

Ah, Millôr, você não faz ideia da falta que um cara como você está fazendo na imprensa de hoje... Se você soubesse!!! Ou talvez você saiba e foi somente eu que enlouqueci (de novo) nesse blog. Tudo de bom pra você aí em cima, mestre.


terça-feira, 15 de agosto de 2023

A Barbie brasileira


É difícil ser famoso em qualquer lugar do mundo e o motivo é mais do que óbvio: você vira uma mercadoria que precisa ser remodelada, retransformada e reiniciada ao sabor dos acontecimentos do seu país. Você precisa, em poucas palavras, ser o reflexo exato do que as grandes mídias, produtores e empresas entendem que deva ser a cultura desse país. 

Peguem, então, um lugar como o Brasil - contraditório por natureza - e o estrago está feito. E ninguém passou por isso nesse país melhor do que Maria da Graça Meneghel, a Xuxa. 

Ela foi modelo, posou pra Playboy, virou símbolo sexual, trabalhou no polêmico filme Amor, estranho amor, de Walter Hugo Khoury em 1982 (longa que ela própria escondeu do público por muitos anos), namorou Pelé e Ayrton Senna e foi o grande nome da programação infantil brasileira durante décadas, onde ganhou o carinhoso apelido de "A rainha dos baixinhos". 

E agora, na série Xuxa: o documentário, da Globoplay, tenta passar a limpo, aos 60 anos, uma trajetória de sucessos e polêmicas (bem... em parte). E digo isso porque como todo trabalho biográfico com a participação em demasia do biografado na produção, há sempre lacunas incômodas e que persistirão por mais décadas. E Xuxa, é bom que se diga, já disse e fez muitas coisas - a meu ver - no mínimo, discutíveis. 

Lembro de ver, no auge da carreira da loira, uma menina negra sendo impedida de entrar numa de suas lojas da grife Bicho comeu... O assunto rendeu pano pra manga na época. Outro caso de enorme polêmica foi o famoso "Dicionário do X" que alguns educadores do país acharam uma iniciativa equivocada por tratar-se o público-alvo de crianças em processo de alfabetização. E cito esses dois casos só para tocar a ponta do iceberg.

Contudo, como disse no parágrafo de abertura, Xuxa era mais do que um símbolo, era uma marca a ser vendida diariamente. E como vendeu! Mas havia um preço alto a pagar: não pode engordar, não pode cortar cabelo, não pode engravidar, não pode pensar com a própria cabeça... E sua produtora, Marlene Mattos, era o expoente vivo da tv que se fazia naquela época, uma programação de ritmo ditatorial. Fizeram sucesso, sem dúvida, mas a um preço abusivo em muitos aspectos. 

"Então qual o maior problema da série, meu caro?", perguntaram-me. O fato de Xuxa, então a Barbie made in Brasil num país onde a maioria da população pertencia à outra etnia, ser produto de um país que não existe hoje mais da mesma maneira. Os anos 1980 deixaram boas lembranças e um grande imaginário popular, mas foram engolidos por uma nova realidade e por uma sociedade que decidiu - na verdade, vem decidindo - rediscutir absolutamente tudo. Inclusive ela, Xuxa. 

Talvez se ela começasse sua jornada no Brasil de hoje, mais intempestivo e disposto a brigar por cada pequeno espaço, não testemunhássemos o mesmo sucesso. Talvez ela fosse famosa, mas não teria se transformado na figura mítica que se tornou. Será isso mesmo ou foi só esse espectador analítico em excesso que vos fala que enxergou demais?

Deixo para vocês, leitores que assistiram também a produção, que emitam um parecer melhor (ou mais abrangente) do que o meu. Mas, sério... ficou-me essa impressão de ela ter se resumido a um produto do seu próprio tempo.

No entanto, não é disso também que se trata esse mundo mágico que convencionamos chamar de "classe artística", cheio de invenções que se sucedem num loop temporal interminável? Não sei... Pareceu-me que a carreira dela não precisava desse campo minado que só faz gerar discussões babacas e tendenciosas que nada acrescentam à cultura pop, nem de hoje nem de ontem. Enfim...

Famosos, né! Veem uma brecha para o oportunismo e o resultado é quase sempre dúbio. Depois reclamam!


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

...e o pancadão permanece vivo!


Não se sabe ao certo até hoje - na verdade, a origem de movimentos e vanguardas é sempre uma questão complicada, que envolve várias interpretações - se foi a dupla Keith “Cowboy” Wiggins e Grandmaster Flash que provocaram um amigo que acabara de ingressar no exército norte-americano ou se foram os irmãos DJ Kool Herc e Cindy Campbell num evento no bronx, que deram o pontapé inicial a esse legado. Mas uma coisa é certa: nenhum dos quatro realmente imaginava que aqueles pequenos gestos refletiriam de forma tamanha e criaram toda essa estrutura gigantesca dos dias de hoje.

Enfim... Lá se foram 50 anos em que o hip-hop deu as caras nos EUA, a princípio como representação das comunidades jamaicanas, latinas e afro-americanas desse país que sempre vende sua pureza ao mundo, mas esquece de suas misturas e mestiçagem. 

Da marginalização (o começo foi bastante difícil, com represálias dos mais distintos setores do país) ao, então, sinal de desrespeito e, finalmente, se desdobrando em ritmos como o Trap, o Lo-fi e até mesmo o funk, aqui no Brasil. O hip-hop é um grande caldeirão de referências, estilos, moda e temáticas as mais diversas. E esse sempre foi o forte dessa cultura: poder mesclar intenções, posturas, sonoridades, etc. 

Já aqui no país o berço do gênero aconteceu em São Paulo, onde surgiu nos anos 1980 através dos encontros na rua 24 de maio e no Metrô São Bento. Nascia ali a origem do que convencionamos chamar com o tempo de pancadão. E ele ainda corre solto, mais vivo do que nunca. 

São muitos os pilares do movimento: os DJs com suas bases, colagens rítmicas, Beat-Juggling e o famigerado breakbeat; o rap, cheio de rimas, improvisos e muito ritmo; o beatbox (ou seja: a percussão vocal, a arte de produzir seus próprios sons e fazer disso um estilo); os MCs - ou mestres de cerimônia -, os porta-vozes do hip-hop, responsáveis tanto por animar a festa quanto reportar os dilemas e experiências do gueto americano; o break dance, que surge como consequência da onda de música negra que toma os EUA de assalto nos anos 1960 (principalmente com a soul music); e finalmente o grafite, em forma de pinturas, desenhos, caricaturas ou mesmo mensagens sobre absolutamente qualquer assunto, feitos à base de spray, rolo ou pincel em muros e paredes.  

E entre o sem número de ícones do hip hop ao longo de cinco décadas (e eu poderia citar uns dez paraágrafos iguais a esse) você, certamente, sempre irá ouvir falar de artistas como Future, Nas, Jay-Z, The Notorious B.I.G., Nate Dogg, Warren G., Outkast, Jim Jones, Nicki Minaj, Foxy Brown, Dr. Dre, Kendrik Lamar, Mobb Deep, Lil’ Kim, 2Pac, Snoop Dogg, Kanye West, Lil Wayne, J. Cole... e, claro, muito mais. A lista é estratosfericamente gigante! 

E, assim como o movimento punk, que também nasce da ousadia de quem não se via representado na mídia, não restam dúvidas de que, pela coragem de seus idealizadores e de quem se mantém vivo, matando um leão por dia, sempre nas trincheiras, não demora muito e estarei aqui (assim espero!) comentando o centenário deles. 

Duvida? Melhor não, hein! Olha tudo o que eles (e elas) já construíram e o quanto o mercado fonográfico e cultural ainda está aberto para eles. Vejo vocês em 2073 (já um oitentão de respeito e ainda querendo escrever sobre cultura pop, se Deus permitir...ha! ha! ha!).


quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Homenagem é pouco!


Vejo Caetano Veloso às lágrimas, pura emoção, num vídeo do youtube, enquanto ouve a regravação que Xande de Pilares fez de seu hit "Gente". A canção faz parte do álbum Xande canta Caetano no qual o ex-vocalista do grupo Revelação gravou apenas sucessos do cantor baiano, um dos fundadores do tropicalismo. 

Na mesma hora penso: "eu quero ouvir esse disco agora, e com calma!".

Permaneço no youtube e digito o nome do álbum. Logo aparece uma playlist com as dez canções. E desde já adianto: podiam ser cem, mil. Que trabalho magnífico! Muito se fala aqui no Brasil que só fazemos homenagens depois que o artista, o ícone, morre. No caso do disco de Xande falar de homenagem (e em vida, ainda por cima) é até pouco. 

Xande canta Caetano é das melhores coisas que o samba brasileiro (não! que a música brasileira) já produziu há, no mínimo, uma década - e com folga. E tudo se deve não somente ao cancioneiro do mestre baiano, como também ao talento de seu intérprete, antenado com a história mas sem perder a audácia e o conceito de moderno. 

Se a música citada no primeiro parágrafo fosse um reles single, já explicaria (e muito) o talento do rapaz suburbano que lutou com unhas e dentes para colocar seu nome na história da MPB com a qualidade que colocou. Mas não. Ele é apenas a ponta do iceberg de um trabalho sublime, muito bem conduzido e produzido ao lado de artistas gigantescos (como Pretinho da Serrinha e Hamilton de Hollanda).

Quando ouvi "Qualquer coisa", "Tigresa" e "Lua de São Jorge" quase passei mal. Ao fim de "O amor" - inspirado pelo poema de Vladimir Maiakovski - quem estava chorando era eu, Caetano! E olha que ainda tinha "Trilhos urbanos" que remete imediatamente a minha eterna paixão: o cinema. Precisa mais? Se eu disser que precisa, você pode me bater. 

E um detalhe que eu não posso deixar de mencionar aqui, caros leitores: se puderem, assistam os clipes de cada música avulsa também. São de um requinte, uma coragem, um desabafo em meio a tanta coisa errada que vivemos nesse país nos últimos anos, que vocês não fazem ideia. Eles são, sem mudar uma vírgula, a cara do Brasil. 

Ao fim da audição - que, como disse antes, podia ser maior, ah como eu queria! - fica a sensação de uma fusão irretocável. A sílaba, a poesia, o vernáculo e o deboche linguístico de caetano com a malandragem, a gentileza, o charme e a malícia de Xande. Disse há poucos dias, quando ouvi Afrodhit, da cantora Iza, que aquele era o disco do ano. Mas agora... Depois de ouvir esse aqui...

Olha, Iza! Vai se páreo duro, hein! Mas quem ganha com isso, e demais, é a nossa música. Pronto. Terminou de ler aqui? Agora vai lá ouvir, vai! 


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

O pai do terror - e mais um pouco


O cinema mundial (e não somente hollywood) perderam hoje um dos seus maiores e mais talentosos artistas. Aos 87 anos morreu o diretor William Friedkin. E eu nem sei se vou conseguir escrever este breve post sobre ele (tendo em vista que quanto mais se fala sobre sua obra, mais ficam lacunas intransponíveis a serem decifradas). Ele era um camaleão da sétima arte e, muito provavelmente, teremos que passar o resto da vida para entender o seu legado - que, claro, é gigantesco.

Na verdade, o título deste post nem sequer explica a superfície do que foi a carreira desse mestre, contemporâneo da nova hollywood e de diretores como Scorsese, Coppola, Spielberg, De Palma e companhia. 

A grande maioria dos fãs certamente se lembrará dele mais pelo irretocável O exorcista, que completa 50 anos em 2023. Para mim, sem sombra de dúvidas, o maior filme de terror já feito na indústria de cinema norte-americana, e também uma excelente porta de entrada para conhecermos sua filmografia. 

Outro capítulo à parte de sua obra é o também monumental Operação França, vencedor de 5 Oscars em 1972, com Gene Hackman e Roy Scheider. Até hoje não consigo deixar de lembrar da famosa cena de perseguição que marcou época. E embora eu seja suspeito para falar do gênero policial (pois sou um fã praticamente doentio), considero esta produção um exemplar quase definitivo para entendermos o que é cinema criminal nos EUA. 

Friedkin flertou com as temáticas mais diversas e, sempre que pôde, surpreendeu com suas escolhas de projeto. Foi assim com Comboio do medo (1977), adaptação do romance O salário do medo, de Georges Arnaud (e que já tivera uma adaptação aclamada em 1953 pelo diretor Henri-Georges Clouzot); o drama criminal Parceiros da noite (1980), que esmiuça de forma profunda a cena gay americana e, principalmente, Viver e morrer em Los Angeles (1985), se não me falha a memória, o primeiro longa que eu chamei de cult assim que me tornei cinéfilo e frequentador assíduo das saudosas videolocadoras. 

Mas deixo aqui um pequeno conselho para os marinheiros de primeira viagem acerca do seu trabalho: deem também uma chance aos filmes menos lembrados (aqueles que, infelizmente, não repercutiram tanto ou não fizeram uma esplêndida carreira nas bilheterias). Aposto como irão se surpreender - e muito!

Tanto que forneço aqui umas dicas valiosas: 1) Os rapazes da banda (1970): provavelmente o melhor filme sobre a temática homossexual que eu assisti até hoje; 2) Caçado (2003): Benicio del Toro e Tommy Lee Jones num duelo mortal que explica como poucos o quanto o FBI e as forças especiais são capazes de criar máquinas de matar sem o menor critério ou ética e 3) Possuídos (2006): drama interessantíssimo sobre as consequências devastadoras do conflito americano no Oriente Médio. Último filme que vi com a atriz Ashley Judd depois que ela sumiu por causa dos escândalos de assédio perpetrados pelo produtor Harvey Weinstein.

E isso, meus caros leitores, mexendo apenas no óbvio. Espero sinceramente que vocês possam ir mais além. O diretor, com certeza, merece. 

No mais, deixo aqui minhas condolências e fico com a certeza de que mais uma vez o cinema americano perdeu um gigante. Já a renovação na indústria se encontra anos-luz de estar à altura de tantas perdas desse quilate nos últimos anos. A continuarmos desse jeito prevejo um futuro melancólico para os verdadeiros fãs da sétima arte de respeito.     

sábado, 5 de agosto de 2023

Empoderamento puro


A cantora Iza é un fenônemo engraçado na música popular brasileira dos últimos anos. Surgiu sem querer fazer concorrência com Anittas e Ludmillas da vida, criticou no início da carreira essa moral Valeska Popozuda de "agredir verbalmente as inimigas" e conquistou sua legião de fãs com "Bonde do pesadão". Virou jurada do The Voice, foi madrinha de bateria da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, se apresentou no Rock in Rio e virou símbolo sexual de muita gente. 

E agora, depois de um divórcio chato, complicado, entrega seu melhor álbum da carreira. Parece pouco para certos despeitados, mas - acredite! - não é. 

Afrodhit é empoderamento feminimo puro, da raiz do cabelo à ponta dos pés. E eu não consegui desgostar de uma canção sequer. A moça canta o que quer, do jeito que quer, com uma voz poderosa que é própria dela e que não tem concorrentes no atual cenário musical brazuca. Mais do que isso: expõe seu direito ao amor livre, de ser quem estiver afim de ser. Nas palavras da própria cantora, é "o álbum mais feminino da minha carreira". Não tenham a menor dúvida disso!

Com colaborações de uma galera da pesada (Djonga, Russo Passopusso - da banda BaianaSystem -, Mc Carol, L7, King e até a americana Tiwa Savage) constrói discursos poderosos e totalmente antenados com essa mulher brasileira dos últimos anos. E, nesse sentido, seu trabalho ecoa um pouco do espírito proposto pela saudosa Elza Soares em A mulher do fim do mundo

Já no quesito sonoridade, prepare-se para se deslumbrar do início ao fim com uma batida que reflete o melhor do R&B e da american music recente. E que me perdoem os fãs da Anitta, mas esse tempo todo que ela passou no exterior ela ainda não apresentou algo que sequer chegue perto disso que eu ouvi aqui. 

É possível ouvir o subúrbio, o som do gueto nas faixas, sem perder a capacidade de soar moderno, à frente do seu próprio tempo. Uma exuberância que, inclusive, anda em falta em muitos segmentos da atual MPB. Eu, pelo menos, ando de saco cheio dessa patacoada de sertanejo (com universidade ou sem) e releituras cansativas e enfadonhas. 

Entre as minhas faixas preferidas, destaco "Boombasstic" (uma explosão sonora das mais brilhantes!), "Que se vá", "Sintoniza" (a química entre Ela e Djonga é surreal), "Terê" (que fez eu me lembrar imediatamente, pelo nome, de "Cadê Tereza", de Jorge  Benjor; e pela narrativa proposta, do poema "Essa nega Fulô!", de Jorge de Lima), "Batucada" e "Nunca mais".

E no caso da última faixa citada, um aparte: andaram questionando a cantora por seu desabafo em alguns momentos do disco, teve quem a chamasse de ressentida por conta da separação com o marido. Na boa... Fim de relacionamento envolve ressentimento, dúvida e ela tem todo o direito de pôr para fora suas cicatrizes. Ainda mais por se tratar de um trabalho artístico. A arte, muitas vezes, vive disso. 

Portanto, Iza, danem-se os críticos chatos e os recalcados. A carreira é sua, as músicas também. Você tem todo o direito de expor e se expor. Como grande artista que é. 

Agora parem de encher a paciência da moça - e a minha - e vão ouvir o álbum (que é o que mais interessa nessa história aqui!).