Idolatramos a humanidade de tempos em tempos, simplesmente porque não queremos enxergá-la como ela verdadeiramente é na maioria das vezes. Quer dizer: refiro-me a nós, reles mortais. Já os artistas, que para mim sempre se encontram em outra categoria à parte, o argumento não é bem esse, não! E em se tratando particularmente dos escritores, dos ficcionistas, essa ilusão fica ainda mais distante.
Irvine Welsh, por exemplo. Ele sempre teve uma gigantesca facilidade em narrar a banalidade humana, com cada dose precisa de sarcasmo inclusa. Prova viva disso é seu livro mais famoso, Trainspotting (uma expressão que, em escocês, tem a conotação de "atividade sem sentido" ou "algo totalmente inútil"), que completa 30 anos de publicação hoje.
Retrato ímpar de uma sociedade insana que busca na avidez pelo poder seu modus operandi, o livro se tornou bem mais conhecido por aqui após a adaptação cinematográfica realizada pelo diretor Danny Boyle em 1996 (e um segundo longa lançado em 2017).
Acompanhamos a vida desregrada daqueles escoceses com tamanha adoração (refiro-me a certos cinéfilos alienados) sem levar em consideração o quão trágica e inumana é aquela mesma vida.
Drogas em excesso, mulheres fúteis, falsas amizades, golpes que tem tudo para dar errado - e, em muitos momentos, eles próprios sabem disso e mesmo assim não dão a mínima e seguem em frente, pois a vida é uma só, não tem ensaio - e um sistema (seja a polícia ou o Estado) que só servem para corroborar cada decisão mal tomada de cada um deles. Assim é o universo por trás de Trainspotting.
E quem diria que após três décadas nós ainda estaríamos falando desse bando de desajustados, amorais, indecentes e beberrões, não é mesmo?
Com o romance de Irvine (que eu li por volta dos meus 16 anos) desenvolvi uma certa relação mórbida com autores e narrativas que analisavam o caos de perto, como quem vê tudo aquilo se autodestruir a partir de uma lupa. E acreditem: definiu parte de quem eu sou hoje como leitor. Provavelmente, se não tivesse dado uma oportunidade ao livro, hoje estava por aí corroborando essa modinha sacal de auto-ajuda e young adults (que eu costumo rotular de "livros para desmiolados").
Confesso que gostaria de ouvir algumas opiniões vazias dessa geração pão com ovo, fruto do politicamente correto, sobre a obra. Certamente devem estar excomungando tudo! E não é à toa: tanta gente imbecil querendo censurar palavrões em livros e cenas de nudez em filmes, imagine então lendo Irvine Welsh, um porra-loca (brilhante, mas porra-loca) por natureza.
Quem não pertencer a essa trupe (desde já meus parabéns), recomendo a leitura. De preferência, se puderem, comecem hoje ainda. E procurem os outros romances dele também. O cara é foda!
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